Prezado leitor,
A decisão em caráter liminar, ordenando soltar Bruno Fernandes de Souza, conhecido como “goleiro Bruno”, e sua intenção de “recomeçar a vida” divulgada pela imprensa, a despeito de ainda se desconhecer o paradeiro do corpo da vítima, de cuja morte ele teria participado, impeliram-me trazer à tona a história, ou melhor, o relato que se segue. Estritamente verídico, trata de igual forma de um assassínio, a princípio, sem cadáver; e a busca pelo corpo, por meio, inclusive, da colaboração premiada, tão em evidência em tempos de operação Lava Jato. Também, discorre tangencialmente sobre tráfico de drogas e vicissitudes relacionadas à apuração de um crime de homicídio. O nome das pessoas envolvidas foram trocados. Local e data omitidos, o que, ao nosso sentir, não compromete a exposição dos fatos e de suas circunstâncias, mas, sim, contribui para a sua compreensão. A abundância de frases e termos entre aspas em itálico tem uma razão de ser; reproduz literalmente excertos dos autos judiciais em que atuei como promotor de Justiça.
Homicídio sem cadáver: um crime sem fimArtigo originalmente publicado no site migalhas.com.br, em 31.03.2017, sob o título TRÁFICO DE DROGAS EM CÉLULAS: Desaparecimento, tortura e morte de um “aviãozinho” e a ocultação de seu cadáver. …
Ricardo Rangel de Andrade
Marilda compareceu à delegacia de polícia para comunicar o desaparecimento de seu filho, Danilo Mendes Chaves, “branco, de olhos verdes, estatura pequena”, com 13 anos de idade e conhecido pelo apelido de Danilinho, pois “era miudinho, parecia ter 11 anos”. Ele estudava de manhã e à tarde costumava frequentar uma quadra de esportes situada próxima ao colégio. Saiu de casa dizendo que ia para essa quadra “e não retornou mais”. Há mais de 24 horas ausentara-se sem dar notícias e era a primeira vez que fazia isso. “Quando chegava mais tarde, Danilinho ligava avisando”. Desta vez, não ligou. Ela já o tinha procurado, sem êxito, “por toda a redondeza, casa de parentes e amigos, hospitais”, dentre outros lugares. Danilinho “era um garoto tranquilo”, mas mudou o seu comportamento quando começou a usar drogas. Ele “usava drogas, há cerca de um ano”.
Registrada a ocorrência, não houve a imediata instauração de inquérito policial para apurar o desaparecimento. Rotina que se verifica em casos de adolescentes e/ou crianças desaparecidas. Desconfia-se, inicialmente, delas, considerando-as responsáveis pelo próprio sumiço. Uma presumida desconfiança decorrente de outra: envolvimento com o tráfico de drogas; ou melhor, um “vício” enraizado na prática policial, de modo que Marilda prestou depoimento um mês e cinco dias mais tarde. Perante a sociedade, Danilo já transitava do status de desaparecido para o de esquecido.
Desesperada, Marilda “virou uma investigadora”. Exibia fotos de seu filho a qualquer pessoa que encontrasse na rua, bem como nos bares, lojas, supermercados, praças, quadras de esporte, repartições públicas etc. Perguntava para todo mundo se alguém tinha visto Danilinho. Obstinada, peregrinou por bocas de fumo na esperança de obter notícias dele. Contatou extraordinário número de traficantes. Compareceu a Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar as causas, as consequências e responsáveis pelo desaparecimento de crianças e adolescentes no Brasil (CPI – Desaparecimento de Crianças e Adolescentes). Instava, quase que diariamente, a polícia a realizar diligências. Enfim, ela foi a força motriz – psicológica/espiritual e causal – das investigações. E isso fez a diferença. Sempre faz, nesses casos. Impulsionou e movimentou a burocracia estatal, tirando-a de uma crônica passividade.
A partir dessa busca autônoma e independente por parte de Marilda, colheram-se informações úteis. Averiguou-se que a casa de um ex-presidiário, próxima a dela, havia sido alugada para Remilton Nazário Ribas, 20 anos, e Sandro Silas da Mota, 23 anos. Essa casa contava com “5 ambientes, paredes e piso em cimento”. Havia um quintal nos fundos e também “tinha uma mureta baixa na frente com um portão, para a comercialização de drogas”. No local, Remilton e Sandro fabricavam as drogas e sempre “portando uma arma de fogo, tipo revólver”, viviam “comercializando e consumindo drogas”. Ou seja, fizeram “do local uma boca de fumo”. O aluguel era pago “parte em dinheiro e parte em drogas”. Muitas pessoas viam uma movimentação atípica “de pessoas entrando e saindo da casa de Remilton”. Após o desaparecimento de Danilinho, “ainda por um mês, continuaram essas movimentações”.
Ao redor de Remilton e Sandro gravitava uma pequena legião de crianças e adolescentes que “funcionavam como aviõezinhosAviãozinho: usuário que presta favores a traficantes, fazendo a entrega de droga por dinheiro ou em troca de uma pequena porção dela para o próprio consumo., em troca de drogas para consumo próprio”. Levavam drogas (maconha, cocaína, merlaVariação (subproduto) da pasta de coca, da qual se obtém também a cocaína e o crack. Tem uma consistência pastosa e em sua composição costuma-se adicionar cal virgem, querosene e solventes em geral, como o ácido sulfúrico (ácido de bateria). e crack) para os compradores e retornavam com o dinheiro, que era entregue aos traficantes. Além disso, compravam matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação da droga, principal e “constantemente” barrilha (nome comercial dos carbonatos de sódio e potássio), em uma loja que vendia produtos para piscina. Danilinho, levado por amigos e primos, “passou a frequentar a casa de Remilton”. No início, Remilton dava um valor superior ao necessário para comprar barrilha, como que testando Danilinho e outros usuários. Adquirida a confiança, Remilton “recrutou Danilinho para ser seu avião”. Em bem pouco tempo, Danilinho já praticava furtos para sustentar o vício e havia adquirido “o hábito de carregar um vidrinho de colírio na mão”.
Descobriu-se que Remilton, desde os 13 anos de idade, era “viciado em cheirar cocaína”, além de “fazer uso de maconha”. Tinha diversas passagens pela polícia. Havia sido preso e processado outras vezes por tentativa de assassinato e disparo de arma de fogo (desferiu um tiro na janela do quarto da ex-namorada). Também, era acusado de ter matado, junto com Sandro, o dono de um bar. Quando ficava doido, dava tiros à toa e às cegas. No decorrer das investigações acerca do desaparecimento de Danilinho, Remilton chegou a ser preso em flagrante por tráfico de drogas. Policiais militares encontraram e apreenderam na sua casa produtos e insumos químicos destinados à preparação e produção de drogas. Sandro, por sua vez, além do crime de assassinato contra o proprietário do bar, era dado a cometer assaltos à mão armada. Desde a adolescência “usava crack, maconha e merla” e sempre esteve envolvido com roubos de carro. Em certa ocasião, Sandro, preso em flagrante roubando uma casa de material de construção, atribuiu-se falsa identidade na delegacia, pois era foragido pela prática de outro crime. Deu o nome de seu irmão, Roberto, que não tinha passagem pela polícia. Ou seja, incriminou o irmão.
Aprofundadas as investigações, constatou-se que “uma semana antes do desaparecimento de Danilinho, Remilton e Sandro andavam procurando pelo mesmo no bairro”. Danilinho havia comprado drogas de Remilton e, em razão disso, devia a ele a importância de R$ 25,00: “Danilinho pegou droga com Remilton e a consumiu, em vez de comercializá-la”, contraindo, dessa forma, uma dívida. O próprio Remilton, segundo testemunhas, comentara com outras pessoas que Danilinho, de fato, lhe devia dinheiro: “Danilinho havia pego uma porção de pasta base e que faria dar conta da droga”. Na realidade, “o papo que rolava no bairro no meio da malandragem era que Remilton havia matado Danilinho e enterrado o corpo”, em razão de dívida de drogas.
Um usuário que supostamente “tinha visto Remilton e Sandro matarem Danilinho”, durante o jantar em casa, “começou a comer, parou e empurrou o prato para o lado e começou a chorar”. A mãe dele “perguntou o que estava acontecendo”. Em resposta, ele, desesperado, implorou por ajuda: “mãe me tira daqui, que eu serei o próximo”. Disse que se abrisse a boca alguém de sua família também morreria. Ela o mandou para outra cidade, mas quando ele voltou, aproximadamente oito meses depois, foi assassinado. Outro dependente declarou que viu Danilinho ser torturado por Remilton no dia em que desapareceu. Do depoimento desses dois usuários, que também prestavam serviço como aviõezinhos, inferia-se que Danilinho estava morto.
Uma vizinha da casa alugada por Remilton e Sandro relatou que “sentiu um cheiro forte como se fosse de banha queimando e ouviu barulhos muito estranhos”. Comentava-se que o corpo de Danilinho tinha sido “enterrado no quintal da residência onde estava, ou seja, na casa onde Remilton residia”, mas que “passado dois ou três dias o corpo teria sido removido ou retirado pelos autores (Remilton e outros)”. Uma ligação anônima para a polícia alimentava notícias como essa: “olha, você está na direção certa, mas o corpo foi retirada da casa de Remilton alguns dias após o crime em um carro…”. Esse carro, inclusive, teria sido visto por diversas pessoas “estacionado nas proximidades” da casa. Uma testemunha chegou a afirmar que viu um corpo sendo retirado da casa de Remilton. Policiais estiveram por diversas vezes na casa de Remilton. “Fizeram vistoria in loco e aparentemente não detectaram nenhum indício de crime no local”. Até mesmo a antiga residência de Remilton foi objeto de exame, mas “nenhum dos cômodos apresentava sinais de reforma recente, não havendo nenhuma deformação no piso que pudesse caracterizar tipo de ocultação de qualquer objeto ou corpo”. Do lado de fora da casa, o terreno era “revestido com camada grossa de cimento”. Num determinado ponto, “que aparentava a camada de cimento ser mais recente”, foi removido. Fez-se um buraco de aproximadamente 80 centímetros de largura. Nada foi encontrado. Por outro lado, pessoas diziam que Danilinho estava vivo e que o viram neste ou naquele lugar. Boatos e informações desencontradas não faltavam acerca do paradeiro ou destino de Danilinho que, todavia, continuava desaparecido. Já se iam mais de dois anos e Marilda “até aquele presente momento não tinha nenhuma informação a respeito do paradeiro de seu filho desaparecido”.
Diante de tudo isso, a polícia resolveu, “mesmo sem a localização do cadáver da vítima”, encerrar as investigações, mas, com base em alguns indícios convergentes, indiciou Remilton e Sandro, responsabilizando-os pelo desaparecimento e morte de Danilinho. Indiciar alguém é mais que suspeitar. É considerá-lo provável autor do crime. O Ministério Público, ainda que se valendo de um juízo de verossimilhança, que poderia não corresponder à verdade, chegou a mesma conclusão, até porque, em sentido contrário, sempre que alguém praticasse um homicídio conviria ocultar o corpo para não ser responsabilizado. Um incentivo à destruição e ocultação de cadáver. Seguiu-se a abertura de uma ação penal contra Remilton e Sandro. Processados, eles tornaram-se réus. “Há, portanto, escala de menos para mais, em relação à posição averiguada da autoria, a saber: suspeito, indiciado e réu penalPitombo, Sérgio M. Moraes. Inquérito Policial: Novas Tendências. SP: Edições Cejup, 1986, p.42” Daí, porém, à próxima escala – a de condenado – há uma distância considerável.
Prova-se a existência de um homicídio com a realização de exame cadavérico (autópsia). Logo, a princípio, não existe homicídio sem cadáver (bradava o defensor dos réus: “Sem corpo não há crime, pois qual seria a certeza da morte?”). Na falta do corpo, apenas excepcionalmente admite-se que a morte de alguém seja provada por outros meios (p. ex., testemunhas). Foi o que aconteceu. Duas testemunhas disseram que Danilinho estava morto. Supõe-se que testemunhas digam a verdade. E as histórias por elas contadas “tinham forte pretensão de veracidadeTaruffo, Michelle. Uma simples verdade: O Juiz e a construção dos fatos. Madrid: Marcial Pons, 2012.”, pois frequentavam, como usuários e aviõezinhos, a casa alugada por Remilton e Sandro. Estiveram nessa casa no mesmo dia e após o desaparecimento de Danilinho. Ademais, geralmente, nos casos de desaparecimentos associados ao tráfico de drogas impõe-se a lei do silêncio – definida por Leonardo Sciascia, “profundo conhecedor do fenômeno representado pela criminalidade organizada”, como “solidariedade pelo medo”. As testemunhas morrem num ritmo mais acelerado que o andamento das investigações. Um estado de aflição provocado por meio de ameaças pairava sobre os aviõezinhos. E um pensamento único os dominava: eles podiam ter o mesmo fim. Traficante e usuário de drogas, “Remilton, além de ser perigoso e andar armado, costumava ameaçar pessoas que deviam dinheiro de drogas para ele”.
No entanto, novas escavações realizadas na casa alugada por Remilton e Sandro, visando à localização do corpo de Danilinho e comprovar de forma cabal, a sua morte, restaram, mais uma vez, infrutíferas. Mães pediam que fossem ouvidas como testemunhas no lugar dos seus filhos, temendo que eles, ao prestarem depoimento, fossem mortos. Ao término da instrução preliminar – momento em que cabe ao juiz decidir se submete ou não os réus (no caso, Remilton e Sandro) ao julgamento perante o tribunal do júri –, não havia vestígios da passagem e tampouco da morte de Danilinho na casa. O corpo não fora encontrado no local. Pelo contrário, havia prova negativa. As escavações indicavam, em princípio, que não existia corpo nenhum enterrado ali. As duas testemunhas que tinham relatado até então a suposta morte de Danilinho faleceram antes mesmo do início do processo, de forma que o juiz não colheu diretamente o depoimento delas.
De novidade, somente as prisões de Remilton e Sandro, que foram decretadas e cumpridas, e o comportamento indisciplinado deles no estabelecimento prisional, onde foram recolhidos. Remilton desacatou e ameaçou carcereiros: “vocês vão tudo tomar no cu, comigo eu resolvo é na rua, eu com uma quadrada destas na rua arrumo para vocês”, “essa raça tem tudo que morrer mesmo”, “iria matar todo mundo” e que “metia bala”. Para o agente prisional, que fazia a entrega de marmitas, falou: “você é um folgado, você não sabe trabalhar, quando você moscar (vacilar, dar mole) na rua, vou te pegar”. Tentou fugir mais de uma vez, e em uma das tentativas serrou a grade da área destinada ao banho de sol dos detentos. Com Sandro foi encontrada uma serra escondida dentro de uma bíblia.
Pairava, como uma nuvem, uma questão central e aparentemente insolúvel: onde estaria o corpo de Danilinho? Uma situação emblemática a resultar na absolvição sumária de Remilton e Sandro ou no encerramento do processo por falta de provas, até porque, em tese, Danilinho poderia estar vivo. Essa era a expectativa. O juiz, em meio a lamúrias e despejando conhecimento livresco – desde e conforme o mais singelo manual até os maiores tratados de Direito Penal –, discorreria sobre a impossibilidade de submeter os réus ao tribunal do Júri, dando vezo à incompetência policial e à falta de estrutura do Estado para o esclarecimento do fato. Passivo e neutro, colocar-se-ia como uma vítima do deficiente sistema de Justiça Criminal, isentando-se de qualquer culpa ou responsabilidade por mais um crime sem solução, como se a administração da Justiça não lhe dissesse respeito, a verdade dos fatos fosse irrelevante e ele, o juiz, tivesse padecido com a situação mais que a própria vítima e os familiares dela. Lamentaria, ao final, o desperdício de tempo e de recursos.
Todavia, excepcionalmente, não foi o que aconteceu.
Calhou do juiz pensar diferente. Fugindo à regra, em seu livre convencimento, de forma racional, ponderou a possibilidade de que Danilinho pudesse estar vivo. Mas não era provável. E “nenhuma norma é aplicada de maneira correta a fatos errados: como lembrou Bentham, a falsidade é a serva da injustiçaTaruffo, Michele. Uma simples verdade: O Juiz e a construção dos fatos. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. ”. O processo serve à busca da verdade dos fatos, e não para tão somente por fim a uma controvérsia. Não indiferente a isso, o juiz atribuiu à verdade um valor positivo e sua busca “uma condição necessária para a justiça da decisãoTaruffo, Michele. Uma simples verdade: O Juiz e a construção dos fatos. Madrid: Marcial Pons, 2012, p. 160.”. Em consequência – e acolhendo o conhecimento outrora transmitido de que, “o verdadeiro sentido da independência dos magistrados residia no fato de que também queriam dormir um sono tranquiloSchirach, Ferdinand Von. Crimes. RJ: Record, 2009, p. 112.” – determinou que os réus, Remilton e Sandro, fossem julgados pelo tribunal do júri.
Remilton e Sandro, desprotegidos de uma interpretação indulgente da lei a que estavam acostumados, não puderam se valer da própria torpeza: destruir e ocultar o cadáver e, por conta disso, ficarem impunes. Uma nova perspectiva se abriu, a colaboração premiada: “uma causa de diminuição de pena para beneficiar réu que colabora com a investigaçãoBottino, Thiago & Rangel, Tânia. “STF entende que a delação premiada não depende das intenções do réu”. Folha de S. Paulo. 29 de novembro de 2012: A6. Impresso.”.
Instituto controverso, de um lado estão os que repudiam a colaboração premiada, considerando-a uma forma de “extorsão premiada”. Um “vício de cárater”, sintetizado na seguinte frase: ‘abre o bico acaba o pau, vira ganso que eu te solto’Dias, José Carlos. “Extorsão ou delação premiada”. Folha de S. Paulo. 26 de agosto de 2005: A3. Impresso.“. Sua utilização, portanto, esbarraria “em princípios morais. Trair é feio. Não se ensina às criançasCarvalho Filho, Luís Francisco. “Delatores e bruxas”. Folha de S. Paulo. 18 de janeiro de 2014: C2. Impresso.”. De outro, aqueles que veem tal instituto da colaboração premiada como um instrumento necessário e fundamental para combater a criminalidade: rompe uma solidariedade que é baseada e forjada no temor e no terror. E diante de uma solidariedade oca e criminosa, não se fere, em nome da moralidade, qualquer nobre sentimento ou virtude daquele que é, antes de solidário, um cúmplice.
Em causa, porém, o fim do martírio/calvário a que Marilda inelutavelmente estava sujeita, pois, a despeito de todas as evidências, uma mãe não é obrigada a acreditar, como as outras pessoas, que seu filho está morto. É antinatural: contraria os instintos maternos, de maneira que quanto mais passava o tempo, maior ia-se tornando o seu sofrimento e tormento.
Feita a proposta, Sandro, mesmo ameaçado na prisão por Remilton, “para que não contasse a verdade”, aceitou colaborar, até porque, em certa ocasião, “Remilton chamou Sandro para fumar um baseado e nesse momento falou ‘você está conversando demais’, que quando Sandro abaixou a cabeça para enrolar o cigarro de baseado sentiu ao seu lado a arma próxima a sua cabeça e logo em seguida o disparos que lhe atingiu (sic) na nuca; o barulho fez com que perdesse parte da audição (…) a bala ficou alojada em seu crânio”.
Toda a verdade, então, em seu realismo mais cruel, veio à tona: Remilton pediu a alguns de seus aviõezinhos que levassem Danilinho até a casa utilizada como boca de fumo, “pois queria matá-lo”. “Enquanto todos estavam noiando”, Remilton entregou sua bicicleta a um adolescente de apelido Pastor, ordenando-lhe que buscasse o “de menor”, em uma alusão ao Danilinho. Vinte minutos mais tarde, Pastor retornou sem Danilinho. Disse que Danilinho se recusou à acompanhá-lo, pois havia reconhecido a bicicleta de Remilton. Um mero contratempo, pois, logo depois, um dependente, Amaral, apareceu “com o propósito de comprar R$ 5,00 de ‘merla’”. Remilton “levou uma fala” com ele e o convenceu a buscar Danilinho. “Forneceu a droga para Amaral que fez uso dela ali mesmo e ainda devolveu os R$ 5,00 dizendo que fosse lá, trouxesse ele e que ainda iria lhe dar mais droga. Que daí Amaral foi buscá-lo utilizando a sua própria bicicleta (…) Em menos de dez minutos. Amaral retornou à casa de Remilton, trazendo o ‘de menor’ no cano da bicicleta (…). Tão logo Danilo entrou, Remilton disse que queria ‘levar umas falas’ com o mesmo, determinando que ele se sentasse na calçada da porta da despensa, nos fundos da casa”. Remilton falou, ainda, que “Danilo foi quem estourou o mocó, ou seja, a pessoa que havia roubado a droga”.
Em seguida, “Remilton usando um cano da caixa d’água, passou a encher um balde plástico de cor branca com água (…) e de posse de uma arma de fogo tipo espingarda de dois canos (…) escalou todo mundo”. Falou que era para eles verem “como se mata um cabrito”. E, sem demora, partiu “para cima de Danilo” agarrando-o “pelo pescoço com as duas mãos”, ao tempo em que dizia: “o que você fez não se faz com malandro”. Depois de esganá-lo, “Remilton e Sandro entrelaçaram uma corda no pescoço de Danilo e cada qual puxava por uma ponta, vindo portanto à enforcá-lo (rectius: estrangulá-lo)”. Ato contínuo, Remilton repassou a arma de fogo para o Sandro, que ficou “com a missão de vigiar o portão”, e o instruiu a manter pessoas afastadas do local: “fala para todos que procurarem por droga que no momento não temos”. Remilton, então, “imergiu a cabeça de Danilo no balde com água, afogando-o”. Danilo desfaleceu: “Danilo era franzino e não conseguiu se debater para se livrar de Remilton, vindo a desfalecer muito rápido”. Desmaiado, pensaram que ele “havia morrido”. Remilton tornou a pegar a arma com Sandro e determinou que colocassem “Danilo em um quarto nos fundos em cima de uma cama sem colchão, tendo Sandro amarrado a porta com um arame, já que a mesma não tinha fechadura, vindo até Remilton dizendo que o ‘presunto’ estava lá em cima da cama. O deixaram ali”. Fizeram uso de mais drogas. Porém, quando Danilinho acordou e “tentou se levantar para fugir, foi novamente dominado e esfaqueado” por Remilton. “Havia sido cavado um buraco para colocar o lixo e o entulho que tinha no quintal e ali colocaram o corpo e depois atearam fogo, cujo combustível foi adquirido em um posto próximo do local”. Prontamente, “colocaram terra por cima”. Depois de tudo, Remilton advertiu: “caso algum deles abrisse a boca ele faria o mesmo que acabara de fazer com Danilo”. Outro adolescente presente, conhecido por Zé Doido,“assistiu ao ato sem tomar atitude para salvar Danilo pelo fato de temer Remilton, pois este sempre andava armado”. Falava, contudo, para quem se dispusesse a ouvir, que “tinha ajudado a matar Danilo, botado fogo no corpo e que não estava nem aí pra nada”. Meses depois Zé Doido foi assassinado. À mingua de um epitáfio, Remilton vociferou: “é isso que acontece com quem pega droga e não paga”. Por fim, Sandro contratou uma pessoa “para realizar um serviço de construção/elevação de um muro na residência” alugada por ele e Remilton.
Nos denominados “tribunais do tráfico”, o poder punitivo é exercido sem limites e com desprezo a preceitos morais. A lei é a inexistência dela. O julgamento é sumário e arbitrário. As decisões de seus líderes imprevisíveis, exceto pela onipresente e desmedida crueldade nos castigos impostos. O veredicto, inapelável. Quem comete um simples erro – “vacilo” no jargão delinquencial – pode ser punido com a pena de morte. Não existe pena sem tortura e a execução deve ser de conhecimento de todos, tendo caráter infamante. Os amigos e parceiros são, se necessário, testemunhas de acusação e carrascos. À vista disso, indaga-se: essa é a Justiça apregoada e reivindicada por organizações criminosas – ou criminais, como queiram -, tais quais o Primeiro Comando da Capital – PCC e o Comando Vermelho – CV, por meio de lemas como “Paz, Justiça e Liberdade”? Qual a distância entre o que clamam e o que praticam, sobretudo contra os próprios integrantes da facção acusados de traição ou, por qualquer motivo, não mais dignos de confiança?
Quanto ao corpo de Danilinho, a informação era de que tinha sido enterrado no quintal da casa utilizada para o tráfico de drogas. Na mesma casa, onde, por duas vezes, houve escavações, sem êxito. Mas, desta vez, por meio da confissão de Sandro, obteve-se a indicação precisa do local: uma cova rasa ao lado do muro, a quatro metros de distância da casa, e na direção de um pé de goiaba. Essa exatidão resultou no sucesso da exumação: “Na parte dos fundos foi encontrada uma ossada, possivelmente humana (…) grande parte da ossada estava presente como: parte dos ossos da costela, coluna dorsal, o crânio, a mandíbula, o fêmur, a base do quadril e alguns outros pequenos ossos pertencentes à estrutura humana”. Junto com a ossada, havia “alguns fios tipo elétricos, algumas peças de pano, tipo bermuda ou de blusa”; e “de acordo com o médico legista, que acompanhou a diligência, a ossada se tratava de uma criança”.
Em suma, da confluência de antagônicas posições no plano do convencimento – ceticismo de Marilda acerca da morte de seu filho e entendimento do juiz em sentido diametralmente oposto – soube-se, enfim, o destino de Danilinho.
Designados dia e hora para julgamento de Remilton e Sandro, o laudo de DNA da ossada, imprescindível para confirmar a identificação dos restos mortais como sendo de Danilinho, não estava pronto. O exame pericial “estava em andamento”, mas “devido a problemas no equipamento”, a confecção do laudo fora interrompida. “Até o término do reparo e substituição da peça nenhuma análise genética” poderia ser realizada. Esse empecilho durou mais de um ano. Na mesma época, o Governo do estado desembolsou, em tempo recorde, R$ 2,5 milhões para reformar a sede social de um clube, com a finalidade de receber, numa manhã de terça-feira, um único treino da seleção brasileira de futebolFernandez, Martín & Rangel, Sério. “Governo de Goiás paga R$ 2,5 mi por único treino da seleção”. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2013/06/1289239-governo-de-goias-paga-r-25-mi-por-unico-treino-da-selecao.shtml. Acesso em 20.03.2017..
Isso resultou em um dilema: o julgamento deveria ser realizado antes ou após a feitura do laudo de identificação do cadáver (exame de DNA)? Se antes, as chances de Remilton ser absolvido seriam bem maiores devido à inexistência de prova cabal da morte de Danilinho (p. ex., poder-se-ia alegar que o corpo era de outra pessoa). Na hipótese de se esperar a confecção do laudo, haveria a soltura de Remilton, que tinha direito – como todo o réu tem – de ser julgado em um tempo razoável. A demora do processo, sem ter dado causa ou contribuído para isso, implicaria soltá-lo. Dali para a frente, aguardaria, em liberdade, o julgamento.
Preferiu-se correr o risco de vê-lo absolvido a processado em liberdade, com base na convicção de que, caso Remilton fosse solto, voltaria a se dedicar a atividades criminosas; e o seu processo arrastar-se-ia indefinidamente, dado a mutação pela qual passaria de processo de réu preso para processo de réu solto, muito mais moroso, quando não esquecido. Julgado, Remilton foi condenado a 17 anos de reclusão.
Aproximadamente quatro anos depois do desaparecimento de Danilinho, a casa onde ele foi torturado, morto, queimado e enterrado, continuava do mesmo jeito e utilizada para a mesma finalidade: consumo e tráfico de drogas. Aliás, na oportunidade da exumação dos restos mortais de Danilinho, já haviam sido encontradas sete latas de alumínio e artefatos para uso de drogas com resquícios de cocaína. Nada mudou. A fungibilidade é a característica mais rudimentar presente no tráfico de drogas. Outro traficante assumiu o lugar de Remilton, assim como outros usuários substituíram os antigos aviõezinhos, que morreram em sua maioria. Dos restantes não se têm notícias.
Na escala hierárquica do tráfico, Remilton ocupava um posto em um nível bastante inferior. Estava na base de uma estrutura piramidal; e “como a maior parte dos traficantes, ganhava mais ou menos o mesmo que receberia se estivesse trabalhando no McDonald’sHart, Carl. Um Preço Muito Alto. SP: Zahar, 2014, p. 59”. Liderava um pequeno grupo de, no máximo, dez pessoas que se dedicava a consumir e traficar drogas. Uma célula. A parte de um todo que é o tráfico. Ou seja, a sua partícula mais elementar. São nas células que os usuários/dependentes são atendidos e compram drogas. E na divisão de cada célula, o tráfico se multiplica viral e exponencialmente.
“’O homicídio é a morte de um homem por outro’, eis a mais antiga e a mais seguida das suas definições”Oliveira, Olavo. O delito de matar. SP: Saraiva, 1962, pág. 5. . A vítima do homicídio é “alguém”, qualquer pessoa humana com vida. No desaparecimento envolto em assassinato essa morte é provável e presumida. A certeza recai sobre o sumiço. Importa, assim, para os familiares da pessoa desaparecida, acima de tudo, desvendar o que realmente aconteceu com ela. Privadas de informações sobre a sua localização ou de seus restos mortais, sofrem permanentemente os efeitos angustiantes de tal infortúnio, ou seja, sofrem diretamente as consequências do desaparecimento. Portanto, nesses casos, parece que também podem ser consideradas vítimas – de jure et de facto (de direito e de fato) -, enquanto não esclarecido o destino ou paradeiro da pessoa desaparecida.
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