Vamos fundamentar a resposta em uma infração penal que gera, na prática, essa tormentosa discussão: será que o jogo do bicho permanece contravenção penal?
Três correntes divergem sobre a possibilidade de o costume abolir infração penal:
1ª corrente: admite-se o costume abolicionista, ou revogador da lei. Para esta corrente, embora o costume não tenha o condão de criar crime ou contravenção penal, é capaz de revogar a lei nos casos em que a infração penal não mais contraria o interesse social, deixando de repercutir negativamente na sociedade. Considera-se, nessas hipóteses, que a ausência de reprovação social corresponde à revogação formal e material da norma penal incriminadora, dispensando-se, inclusive, a edição de lei revogadora por parte do Congresso Nacional.
CONCLUSÃO: para esta corrente, jogo do bicho não mais deve ser punido, pois a contravenção foi formal e materialmente abolida pelo costume.
2ª corrente: é inadmissível o costume abolicionista. Entretanto, quando o fato já não é indesejado pelo meio social, a lei não deve ser aplicada pelo magistrado. Isto significa que a lei, materialmente revogada, depende apenas da revogação formal por outra lei emanada do Congresso Nacional. Até o advento desta lei revogadora, a conduta, apesar de formalmente típica, não deve ser punida, dada a ausência de eficácia social da infração penal.
CONCLUSÃO: para os adeptos desta corrente, jogo do bicho, apesar de formalmente contravenção, não serve para punir o autor da conduta, materialmente abolida.
3ª corrente: somente a lei pode revogar outra lei. Não existe costume abolicionista e, enquanto determinada lei estiver em vigor, terá plena eficácia. Esta corrente prevalece, sobretudo, por disposição expressa da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, que dispõe, no seu art. 2º: “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue”. Nessa linha intelectiva, a título de exemplo, não se pode alegar que a venda de CDs e DVDs piratas permite a sobreposição do costume à norma, revogando o artigo 184, §2º, do CP, que incrimina a violação de direitos autorais. Nesse sentido, inclusive, têm decidido o STFHC 98.898 – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – DJe 20/04/2010. No mesmo sentido, decidiu o Pretório Excelso que o princípio da adequação social não incide sobre a manutenção de casa de prostituição, dada a necessidade de lei para revogação do delito e, portanto, a insuficiência dos costumes para operarem este efeito (HC 104467 – Rel. Min. Cármen Lúcia – DJe 09/03/2011). e o STJSúmula 502: “Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no artigo 184, parágrafo 2º, do Código Penal, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas”..
CONCLUSÃO: para quem se filia a esta corrente, jogo do bicho permanece infração penal, servindo a lei para punir os contraventores enquanto não revogada por outra lei.
Material extraído da obra Manual de Direito Penal (parte geral)