Foi publicada no Diário Oficial da União de hoje a EC 96, acrescentando o Parágrafo 7º ao art. 225 da Constituição Da República, com a seguinte redação: “para fins do disposto na parte final do inciso VII do Parágrafo 1o deste artigo, não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1o do art. 215 desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”.
Pois bem, o inciso VII do Parágrafo 1o do aludido dispositivo legal veda, expressamente, submeter “os animais a crueldade”. Com a novel EC, fica afastada a alegação de crueldade em razão de maus tratos de animais que participem de eventos esportivos reconhecidos como manifestações culturais, integrantes do patrimônio cultural do País, como um bem imaterial.
A norma constitucional derivada se coloca, de certo modo, em rota de colisão com a orientação jurisprudencial do STF – que, em duas oportunidades, afastou práticas esportivas com maus tratos de animais. Primeiramente, no julgamento do RE 153.531/SC, rel. Min. Marco Aurélio, a Corte Suprema proibiu a “farra do boi”, em 1997, entendendo que a manifestação cultural do evento não teria maior densidade valorativa do que os maus tratos impostos aos animais. Mais recentemente, no julgamento da ADIn 4983/CE, rel. Min. Marco Aurélio, em outubro de 2016, o Pretório Excelso voltou ao tema para declarar a incompatibilidade de uma norma legal cearense que regulamentava a vaquejada. Na oportunidade, ratificando o seu posicionamento, o STF asseverou que, balanceando os valores constitucionais em colisão (manifestação cultural X proteção dos animais), não se permitiria a prática cultural-esportiva por conta da caracterização de maus tratos aos animais, com esteio em pesquisas científicas.
Com a EC 96, afasta-se uma alegação apriorística de crueldade nas manifestações esportivas envolvendo animais, se reconhecidas como bem intangível integrante do patrimônio cultural brasileiro, exatamente como no caso da vaquejada.
De todo modo, será necessária a edição de lei especial para regulamentar a prática esportiva, com vistas a assegurar uma proteção básica aos animais.
Curiosamente, a EC brasileira advém num momento em que outros ordenamentos jurídicos passam a dedicar uma proteção diferenciada, ampliando a tutela dos animais. Recentemente, uma lei portuguesa regulamentou a possibilidade de custodia compartilhada de animais de estimação , por exemplo em caso de dissolução de casamento ou união estável. Um pouco antes, os novos Códigos Civis da República Tcheca e da Hungria, expressamente, passaram a enquadrar os animais em uma categoria diferenciada, em um novo gênero (“tertium genus”), entre as pessoas e os bens, merecendo tutela jurídica especial. Também a vizinha Argentina singra esses mares da proteção especial da fauna.
Entre nós, em aparente rota de colisão com o novo tratamento dedicado pelo direito estrangeiro, a EC 96 estabelece, a toda evidência, uma ponderação de interesses (balanceamento), optando por autorizar as práticas esportivas-culturais com animais como solução apriorística, antecipada, do sistema brasileiro, com controle legislativo de uma norma especial para evitar crueldade.
A mim, parece uma perigosa inversão da lógica protecionista: permite-se a manifestação com animais para, depois, serem estabelecidos os limites.
Independentemente da arguição de compatibilidade constitucional da EC 96 (lembro que o STF admite a arguição de inconstitucionalidade de EC, como se vê do julgamento da ADIn 1946), rogo aos céus que o legislador seja prudente e busque inspiração (quase divina) para, com coerência e equilíbrio, traçar os limites para as práticas esportivas-culturais, sem que os animais sejam expostos a crueldades. É bem verdade, é isso não se pode ignorar, que muitas dessas práticas estão, realmente, incorporadas ao cotidiano do povo brasileiro, exatamente como a vaquejada. Assim, se o caso não é de proibição, seguramente, é de balanceamento, equalizando, em uma faixa cuidadosa, a proteção do meio ambiente (fauna) com as liberdades culturais de nosso povo.
O equilíbrio é imperativo!
Tolerar maus tratos aos animais importaria em ignorar a advertência do teologo russo SOLOVIEV: “o homem nunca poderá ser igual a um animal: ou seja, ou se eleva e torna-se melhor, ou se precipita e torna-se muito pior”..
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