1) A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens.
No descaminho, o agente busca iludir, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, o pagamento de direito ou imposto devido em face da entrada ou saída da mercadoria não proibida. O crime se aperfeiçoa com a liberação pela alfândega sem o pagamento dos impostos inerentes.
Já o tipo do contrabando pune a clandestina importação ou exportação de mercadorias cuja entrada no país, ou saída dele, seja absoluta ou relativamente proibida. Na execução do contrabando, o agente, por qualquer meio, importa ou exporta mercadoria (coisa móvel), absoluta ou relativamente proibida (o que não abrange produtos de importação temporariamente suspensa).
Na importação ou exportação de mercadoria proibida com passagem pelos órgãos alfandegários, o delito de contrabando se consuma quando transposta a barreira fiscal (liberada pela autoridade competente), mesmo que a mercadoria não tenha chegado ao seu destino. Já na hipótese de ingressar ou sair por meios ocultos (clandestinos), a consumação depende da transposição das fronteiras do país. Se vier por navio, é necessário que este atraque em território nacional. De igual maneira, se transportada a mercadoria por avião, exige-se o pouso.
A competência para o processo e julgamento de ambos os crimes se define pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens, como dispõe a súmula nº 151 do STJA competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do juízo federal do lugar da apreensão dos bens., que vem sendo regularmente aplicada pelo tribunal. Note-se, contudo, que o próprio tribunal tem decisões HC 318.590/SP, DJe 16/03/2016 que, considerando o caso concreto, retiram a competência do local de apreensão dos bens: “1. Nos termos dos artigos 78, inciso II, alínea “c”, e 83, ambos do Código de Processo Penal, em caso de concurso de jurisdições da mesma categoria, a competência será firmada pela prevenção. 2. No caso dos autos, embora as mercadorias tenham sido apreendidas no Estado do Rio Grande do Sul, tal fato decorreu de decisões proferidas em processo que já tramitava perante a Justiça Federal de São Paulo que, por tal motivo, é a competente para processar e julgar o paciente. Inaplicabilidade do verbete 151 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça”.
2) Configura crime de contrabando (art. 334-A, CP) a importação não autorizada de arma de pressão por ação de gás comprimido ou por ação de mola, independentemente do calibre.
O Decreto nº 3.665/00 – que regulamenta a fiscalização de produtos controlados – estabelece, no art. 3º, inciso XV, que arma de pressão é aquela “cujo princípio de funcionamento implica o emprego de gases comprimidos para impulsão do projétil, os quais podem estar previamente armazenados em um reservatório ou ser produzidos por ação de um mecanismo, tal como um êmbolo solidário a uma mola, no momento do disparo”.
Assim como ocorre com as armas de fogo, as de pressão podem ser de uso restrito ou permitido. As de uso restrito são aquelas com calibre superior a seis milímetros que disparem projéteis de qualquer natureza. São de uso permitido as armas de pressão com calibre igual ou inferior a seis milímetros e suas munições de uso permitido (arts. 16, inciso VIII e 17, inciso IV, do mesmo Decreto).
Em decorrência dessa diferença que faz o Decreto nº 3.665/00 entre as armas de pressão de uso restrito e de uso permitido, surgiu a tese de que a importação de arma de pressão com calibre igual ou inferior a seis milímetros não caracterizaria o crime de contrabando, pois não há proibição envolvendo esses artefatos.
A tese, no entanto, não vingou, pois não obstante o uso de armas de pressão com calibre igual ou inferior a seis milímetros não seja proibido, a importação dessas armas é regulamentada, condicionada a autorização do Exército. Por isso, aquele que importa uma arma com essas características sem submeter o procedimento de entrada no território nacional ao órgão competente comete o crime. É o que vem decidindo o STJAgRg no REsp 1.479.836/RS, DJe 24/08/2016: “A jurisprudência deste Superior Tribunal tem-se posicionado no sentido de que, a importação não autorizada de arma de pressão, ainda que de calibre inferior a 6 (seis) mm, configura crime de contrabando, cuja prática impede a aplicação do princípio da insignificância”.
3) A importação não autorizada de cigarros ou de gasolina constitui crime de contrabando, insuscetível de aplicação do princípio da insignificância.
Para análise adequada do princípio da insignificância, alguns apontamentos acerca da tipicidade penal devem ser efetuados.
Deve-se ter em consideração que a doutrina entendia a tipicidade como sendo a subsunção da conduta empreendida pelo agente à norma abstratamente prevista. Essa adequação conduta-norma é denominada de “tipicidade formal”. A tendência atual, todavia, é a de conceituar a tipicidade penal pelo seu aspecto formal aliado à tipicidade conglobante. A tipicidade conglobante, por sua vez, deve ser analisada sob dois aspectos: (A) se a conduta representa relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico (tipicidade material) e (B) se a conduta é determinada ou fomentada pelo direito penal (antinormatividade). Assim, não basta a existência de previsão abstrata a que a conduta empreendida se amolde perfeitamente, sendo necessário que essa conduta não seja fomentada e que atente de fato contra o bem jurídico tutelado. Deverá ser feito um juízo entre as consequências do crime praticado e a reprimenda a ser imposta ao agente. O princípio da insignificância tem lugar justamente neste primeiro aspecto da tipicidade conglobante, a tipicidade material.
O STFHC 137.422/SC, DJe 06/04/2017 tem decidido que a incidência do princípio da insignificância depende de alguns requisitos concomitantes: conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e lesão jurídica inexpressiva. Os mesmos requisitos são impostos pelo STJHC 376.221/SP, DJe 05/05/2017.
Considerando esses requisitos, tem-se decidido, no geral, contrariamente à atipicidade material no crime de contrabando, que, diferentemente do descaminho, não envolve simplesmente o não pagamento de tributo. O contrabando pune a importação ilegal de produtos normalmente por razões de ordem econômica ou de saúde pública, o que não se coaduna com ausência de periculosidade social. Nessa esteira, a importação ilegal de cigarros e de combustível é recorrentemente julgada típica pelo STJAgRg no AREsp 697.456/SC, DJe 28/10/2016 e AgRg no REsp 1.309.952/RR, DJe 14/04/2014:
“O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que a introdução clandestina de cigarros, em território nacional, em desconformidade com as normas de regência, configura o delito de contrabando, ao qual não se aplica o princípio da insignificância, por tutelar interesses que transbordam a mera elisão fiscal. Precedentes”.
“Inaplicável o princípio da insignificância ao crime de contrabando de gasolina, uma vez que a importação desse combustível, por ser monopólio da União, sujeita-se à prévia e expressa autorização da Agência Nacional de Petróleo, sendo concedida apenas aos produtores ou importadores, de modo que sua introdução, por particulares, em território nacional, é conduta proibida. Precedentes”.
4) A importação clandestina de medicamentos configura crime de contrabando, aplicando-se, excepcionalmente, o princípio da insignificância aos casos de importação não autorizada de pequena quantidade para uso próprio.
Complementando os comentários à tese nº 3, destacamos que um dos produtos de importação proibida – absoluta ou relativamente – que normalmente impede a incidência do princípio da insignificância são os medicamentos. O STJ considera que a potencial lesão à saúde pública não permite que a conduta seja menosprezada. Se, no entanto, o medicamento importado for para uso pessoal e em pequena quantidade, o próprio tribunalAgRg no REsp 1.572.314/RS, DJe 10/02/2017 tem excepcionado sua orientação:
“1. Esta Corte de Justiça vem entendendo, em regra, que a importação de cigarros, gasolina e medicamentos (mercadorias de proibição relativa) configura crime de contrabando. 2. Todavia, a importação de pequena quantidade de medicamento destinada a uso próprio denota a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, tudo a autorizar a excepcional aplicação do princípio da insignificância (ut, REsp 1346413⁄PR, Rel. p⁄ Acórdão Ministra MARILZA MAYNARD – Desembargadora convocada do TJ⁄SE –, Quinta Turma, DJe 23⁄05⁄2013). No mesmo diapasão: REsp 1341470⁄RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 07⁄08⁄2014, DJe 21⁄08⁄2014. 3. De outra parte, é certo que o art. 334, primeira parte, do Código Penal, deve ser aplicado aos casos em que suficientemente caracterizado o dolo do agente em introduzir no território nacional mercadoria que sabe ser de proibição absoluta ou relativa. Não se pode olvidar, ainda, o princípio da proporcionalidade quando se constatar que a importação do produto se destina ao uso próprio (pelas características de quantidade e qualidade) e não é capaz de causar lesividade suficiente aos bens jurídicos tutelados como um todo. A análise de tais questões, contudo, compete às instâncias ordinárias, soberanas no exame do conjunto fático-probatória, e não ao Superior Tribunal de Justiça, órgão destinado exclusivamente à uniformização da interpretação da legislação federal. (REsp 1428628⁄RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, QUINTA TURMA, julgado em 28⁄04⁄2015, DJe 12⁄05⁄2015). 4. Na espécie, as instâncias ordinárias reconheceram a inexpressiva lesão de duas caixas de medicamentos (uma para emagrecimento – 15mg – e uma para potência sexual – 50 mg), avaliadas em R$ 30,00. Ausência de dolo. Princípios da proporcionalidade e, excepcionalmente, da insignificância”.
5) Para a caracterização do delito de contrabando de máquinas programadas para exploração de jogos de azar, é necessária a demonstração de fortes indícios (e/ou provas) da origem estrangeira das máquinas ou dos seus componentes eletrônicos e a entrada, ilegalmente, desses equipamentos no país.
De acordo com o art. 1º da Instrução Normativa nº 309 da Receita Federal, “As máquinas de videopôquer, videobingo e caçaníqueis, bem assim quaisquer outras máquinas eletrônicas programadas para exploração de jogos de azar, procedentes do exterior, devem ser apreendidas para fins de aplicação da pena de perdimento”.
A pena de perdimento é decretada, dentre diversas situações, em virtude da importação de mercadorias proibidas, conduta esta que se subsume ao tipo do contrabando (art. 334-A, caput, do CP)Art. 334-A. Importar ou exportar mercadoria proibida: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 ( cinco) anos.. Além disso, o tipo do art. 334-A traz no § 1º, inciso IV§ 1o Incorre na mesma pena quem: (...) IV - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria proibida pela lei brasileira; uma figura equiparada ao caput que veicula uma modalidade especial de receptação, isto é, a conduta do comerciante (ou industriário) que vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio mercadorias de importação proibida.
É claro que a origem proibida das mercadorias deve ser do conhecimento daquele que pratica as ações equiparadas, pois do contrário haveria responsabilidade penal objetiva. Daí porque, para o STJ, à caracterização do crime não basta a apreensão da máquina em determinado local, ainda que o produto apreendido seja montado com componentes de origem estrangeira. É imprescindível a demonstração de indícios de que se trata de produto estrangeiro e de importação ilegal, com o conhecimento de quem pratica uma das condutas indicadas. Caso as circunstâncias a respeito da importação ilegal da máquina ou dos equipamentos não estejam bem estabelecidas, aquele que estiver, por exemplo, utilizando a máquina em um estabelecimento comercial deve responder apenas pela contravenção de exploração de jogo de azar.
6) É desnecessária a constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa para a configuração dos crimes de contrabando e de descaminho.
Sabe-se que o STF consolidou o entendimento de que a constituição definitiva do crédito tributário, nos crimes materiais contra a ordem tributária, é condição para a tipicidade (súmula vinculante nº 24). Daí surge a questão: isso se estende ao descaminho? A resposta pressupõe a solução de outra indagação: o descaminho é crime formal ou material?
O STF RHC 119960/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 02/06/2014 tem decidido que se trata de crime formal e, portanto, não se exige efetivo prejuízo ao erário para a consumação; basta a ilusão de direito ou imposto. Em decorrência desse entendimento, a orientação do tribunal se dá na direção de que o esgotamento da via administrativa é dispensável.
Nessa mesma posição, merece ser lembrada a sempre pertinente lição de HungriaComentários ao Código Penal, v. 9, p. 436: “Haja, ou não, prisão em flagrante dos agentes do crime ou apreensão das mercadorias dentro ou fora da zona fiscal, ou instauração de processo administrativo, nada disso importa a existência do contrabando ou descaminho como ilícito penal e à proponibilidade da ação penal”.
O STJRHC 47.893/SP, DJe 17/02/2017 segue a mesma linha:
“No julgamento do HC 218.961⁄SP, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido de que o crime de descaminho é de natureza formal e se aperfeiçoa mediante o não pagamento do imposto devido em razão da entrada de mercadoria no país, sendo prescindível o exaurimento da esfera administrativa com o lançamento do débito fiscal como condição para a persecução penal”.
Se o esgotamento da via administrativa não é pressuposto para o descaminho, com maior razão deve ser afastado do contrabando, que não envolve a ilusão de tributo, mas a importação de mercadoria proibida.
7) Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de descaminho (art. 334, CP) quando o valor do débito tributário não ultrapasse o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a teor do disposto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002, ressalvados os casos de habitualidade delitiva.
Os tribunais superiores admitem a aplicação do princípio da insignificância àquelas situações de descaminho em que as mercadorias apreendidas são em pequena quantidade, com valores ínfimos e ausência de destinação comercial. Isto porque, em virtude do baixo valor dos tributos incidentes sobre tais bens, o fisco não promove a execução de seus créditos, utilizando-se do já conhecido argumento de que a instauração de um processo executivo fiscal, diante de um valor irrelevante a ser recebido, não será compensada no momento do pagamento. Existe, no entanto, divergência a respeito do valor da insignificância.
O valor mínimo para a execução fiscal está descrito no art. 20 da Lei nº 10.522/2002Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais)., no qual se estabelece que a Fazenda Pública não ajuizará execução fiscal para cobrar menos de R$ 10 mil. Sempre foi esse o patamar utilizado pelo Judiciário na análise do princípio da insignificância no descaminho.
Ocorre que a Portaria nº 75/2012 do Ministério da Fazenda, com base em estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, recalculou o valor mínimo para o ajuizamento de execução fiscal para R$ 20 mil. Instalou-se então a dúvida: a análise da insignificância deve considerar a Lei 10.522/02 (R$ 10.000,00) ou a Portaria 75/12 (R$ 20.000,00)?
O STFHC 139.393/PR, DJe 02/05/2017 tem considerado o valor de R$ 20.000,00: “Nos termos da jurisprudência deste Tribunal, o princípio da insignificância deve ser aplicado ao delito de descaminho quando o valor sonegado for inferior ao estabelecido no art. 20 da Lei 10.522/2002, com as atualizações feitas pelas Portarias 75 e 130, ambas do Ministério da Fazenda. Precedentes. II – Mesmo que o suposto delito tenha sido praticado antes das referidas Portarias, conforme assenta a doutrina e jurisprudência, norma posterior mais benéfica retroage em favor do acusado. III – Ordem concedida para trancar a ação penal”.
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, no julgamento do Recurso Especial nº 1.393.317/PR, decidiu que o princípio da insignificância só se aplica em casos de crime de descaminho se o valor questionado for igual ou inferior a R$ 10 mil. Em síntese, concluiu que o Judiciário deve seguir os parâmetros descritos em lei federal, e não em portaria administrativa da Fazenda Federal:
“Soa imponderável, contrária à razão e avessa ao senso comum tese jurídica que, apoiada em mera opção de política administrativo-fiscal, movida por interesses estatais conectados à conveniência, à economicidade e à eficiência administrativas, acaba por subordinar o exercício da jurisdição penal à iniciativa da autoridade fazendária. Sobrelevam, assim, as conveniências administrativo-fiscais do Procurador da Fazenda Nacional, que, ao promover o arquivamento, sem baixa na distribuição, dos autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00, impõe, mercê da elástica interpretação dada pela jurisprudência dos tribunais superiores, o que a Polícia deve investigar, o que o Ministério Público deve acusar e, o que é mais grave, o que – e como – o Judiciário deve julgar.
(…)
A partir da Lei n. 10.522/2002, o Ministro da Fazenda não tem mais autorização para, por meio de simples portaria, alterar o valor definido como teto para o arquivamento de execução fiscal sem baixa na distribuição. E a Portaria MF n. 75/2012, que fixa, para aquele fim, o novo valor de R$ 20.000,00 – o qual acentua ainda mais a absurdidade da incidência do princípio da insignificância penal, mormente se considerados os critérios usualmente invocados pela jurisprudência do STF para regular hipóteses de crimes contra o patrimônio – não retroage para alcançar delitos de descaminho praticados em data anterior à vigência da referida portaria, porquanto não é esta equiparada a lei penal, em sentido estrito, que pudesse, sob tal natureza, reclamar a retroatividade benéfica, conforme disposto no art. 2º, parágrafo único, do CPP”.
E o tribunal vem aplicandoAgRg no REsp 1.538.629/RS, DJe 27/03/2017 essa mesma tese, ressalvando ainda o afastamento do princípio da insignificância no caso de reiteração delitiva.
8) O pagamento ou o parcelamento dos débitos tributários não extingue a punibilidade do crime de descaminho, tendo em vista a natureza formal do delito.
Uma sucessão de normas sobre o assunto, além de causar o cancelamento da Súmula 560 do STF (“a extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estende-se ao crime de contrabando ou descaminho, por força do art. 18, § 2º, do Decreto-lei 157/67”), provocou séria dúvida na doutrina e na jurisprudência: será que o recolhimento oportuno do tributo sonegado extingue a punibilidade do delito de descaminho? Rui StocoCódigo Penal e sua interpretação: doutrina e jurisprudência, p. 4.047/4.048, por exemplo, sustenta: “Conclua-se que, embora a Lei 9.249/95 tenha restaurado a possibilidade de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo apenas com relação aos crimes contra a ordem tributária, previstos na Lei 8.137/90, nada justifica, nem se encontra razão lógica ou jurídica, à luz do princípio constitucional da igualdade, que tal benefício não se estenda também ao autor do crime de descaminho, dada a sua natureza de delito contra a ordem tributária em que se objetiva impedir a importação e exportação de bens e produtos sem o pagamento dos impostos e taxas devidos”.
Parece-nos, todavia, que a resposta está estritamente relacionada à (des)necessidade de constituição definitiva do crédito tributário, de que já tratamos acima, o que pressupõe a análise da natureza (formal ou material) do crime de descaminho. A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo iludido só se justifica se a conclusão for no sentido de que se trata de delito material, tipificando-se somente após o lançamento definitivo; do contrário, se basta a importação fraudulenta, tornando-se irrelevante apurar o valor do prejuízo ao erário, também não há relevância na reparação eventualmente promovida.
Para o STJ HC 271.650/PE, DJe 09/03/2016, que, como vimos, considera formal o crime, o pagamento é irrelevante: “2. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça firmaram compreensão no sentido de que a consumação do crime de descaminho independe da constituição definitiva do crédito tributário, haja vista se tratar de crime formal, diversamente dos crimes tributários listados na Súmula Vinculante n. 24 do Pretório Excelso. 3. Cuidando-se de crime formal, mostra-se irrelevante o parcelamento e pagamento do tributo, não se inserindo, ademais, o crime de descaminho entre as hipóteses de extinção da punibilidade listadas na Lei n. 10.684⁄2003. De fato, referida lei se aplica apenas aos delitos de sonegação fiscal, apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária. Dessa forma, cuidando-se de crime de descaminho, não há se falar em extinção da punibilidade pelo pagamento”.
9) Quando o falso se exaure no descaminho, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido, como crime-fim, condição que não se altera por ser menor a pena a este cominada.
Vimos que a ação típica do descaminho consiste em iludir, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, o pagamento de direito ou imposto devido em face da entrada ou saída da mercadoria não proibida. A ação de iludir o tributo pode ser precedida de delito contra a fé pública, como a declaração de valor inverídico (falsidade ideológica) ou a apresentação de documentos falsificados, como guias de recolhimento de tributo (uso de documento falso).
O STJ AgRg no AREsp 100.322/SP, DJe 07/03/2014 tem decidido que a falsidade ideológica que precede o descaminho e nele se esgota é absorvida: “1. Constatado que a falsidade ideológica foi o meio pelo qual a ré buscou iludir o pagamento de tributos incidentes nas importações, mostra-se patente a relação de causalidade com o crime de descaminho, o que atrai a incidência da consunção. 2. A jurisprudência desta Corte admite que um crime de maior gravidade, assim considerado pela pena abstratamente cominada, pode ser absorvido, por força do princípio da consunção, por um crime menos grave, quando, repita-se, utilizado como mero instrumento para consecução de um objetivo final único”. Da mesma forma, o tribunal consideraREsp 1.378.053/PR, DJe 15/08/2016 que, não obstante tenha pena mais grave, o crime de uso de documento falso pode ser absorvido pelo descaminho, desde que se trate de etapa executória deste último, nele exaurindo-se a potencialidade lesiva do falso.
10) O crime de sonegação de contribuição previdenciária, previsto no art. 337-A do CP, não exige dolo específico para a sua configuração.
O tipo subjetivo do crime de sonegação de contribuição previdenciária se consubstancia no dolo, consistente na vontade consciente de não incluir dados necessários nos lançamentos previstos visando à sonegação de contribuições ou acessórios devidos. Cezar Roberto BitencourtTratado de Direito Penal – Parte Especial, v. 5, p. 285 entende indispensável a presença do fim especial do agente: “Acreditamos ser indispensável o elemento subjetivo especial do injusto, representado pelo especial fim de fraudar a previdência social”. No mesmo sentido, Antonio Lopes MonteiroCrimes contra a Previdência Social, p. 57/58 lembra: “Toda a tradição de nosso Direito, em termos de sonegação fiscal, exige que a conduta tenha a finalidade específica de sonegação, e não outra”.
O STF e o STJ, no entanto, firmaram o entendimento de que basta o dolo de reduzir ou suprimir o tributo, dispensando-se qualquer tipo de finalidade especial:
STFHC 113.418/PB, DJe 17/10/2013: “O crime de apropriação indébita previdenciária exige apenas “a demonstração do dolo genérico, sendo dispensável um especial fim de agir, conhecido como animus rem sibi habendi (a intenção de ter a coisa para si). Assim como ocorre quanto ao delito de apropriação indébita previdenciária, o elemento subjetivo animador da conduta típica do crime de sonegação de contribuição previdenciária é o dolo genérico, consistente na intenção de concretizar a evasão tributária (AP 516, Plenário, Relator o Ministro Ayres Britto, DJe de 20.09.11)”.
STJAgRg no REsp 1.477.691/DF, DJe 28/10/2016: “Em crimes de sonegação fiscal e de apropriação indébita de contribuição previdenciária, este Superior Tribunal de Justiça pacificou a orientação no sentido de que sua comprovação prescinde de dolo específico sendo suficiente, para a sua caracterização, a presença do dolo genérico consistente na omissão voluntária do recolhimento, no prazo legal, dos valores devidos”.
11) O crime de sonegação de contribuição previdenciária é de natureza material e exige a constituição definitiva do débito tributário perante o âmbito administrativo para configurar-se como conduta típica.
O Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário, de modo que a sua intervenção fica condicionada ao fracasso das demais esferas de controle (caráter subsidiário), observando somente os casos de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (caráter fragmentário). Daí a importância do princípio da intervenção mínima, segundo o qual o Direito Penal só deve ser aplicado quando estritamente necessário (ultima ratio), mantendo-se subsidiário. Deve servir como a derradeira trincheira no combate aos comportamentos indesejados, aplicando-se de forma subsidiária e racional à preservação daqueles bens de maior significação e relevo.
No caso dos crimes materiais contra a ordem tributária, questionava-se amplamente a possibilidade de ajuizamento da ação penal sem que o órgão fazendário pudesse exigir o tributo pela via da execução fiscal. Argumentava-se que se no âmbito fiscal não se havia esgotado o procedimento de cobrança do tributo, impedindo portanto que o Estado o exigisse (art. 151, III, do Código Tributário) Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (...) III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;, não seria possível utilizá-lo como fundamento da pretensão punitiva criminal. Além disso, lançar mão precocemente da via criminal significava ignorar a eficácia da fiscalização e da execução das dívidas tributárias pelos órgãos estatais, invertendo as prioridades de atuação entre o Direito Tributário e o Direito Penal.
Não bastasse isso, uma das vertentes que sustentavam a tese da impossibilidade de instauração da ação penal antes do esgotamento da via administrativa argumentava que, sem o pronunciamento formal de que o tributo era devido, não havia sequer a possibilidade de tipificação, pois o crime objeto do debate consistia em “suprimir ou reduzir” tributo ou contribuição social (art. 1º da Lei nº 8.137/90)Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.. Se não havia se estabelecido formalmente a existência do tributo suprimido ou reduzido, o tipo penal não poderia ser considerado perfeito.
Foram reiteradas as decisões do STF a respeito da impossibilidade de deflagrar a ação penal sem a constituição definitiva do tributo, até que o tribunal editou a súmula vinculante nº 24, segundo a qual “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Embora a súmula faça menção expressa somente ao art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, este dispositivo não é o único que corresponde a crime material contra a ordem tributária. Há, no Código Penal, a apropriação indébita previdenciária e a sonegação de contribuição previdenciária, que têm a mesma natureza. Provocados, os tribunais superiores estenderam os efeitos da súmula a esses dois delitos:
STFRHC 132706 AgR/SP, DJe 01/08/2016: “Apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária. Condenação. 3. Reconhecimento da prescrição. Impossibilidade. Necessidade de esgotamento da via administrativa para deflagração da ação penal e início da contagem do prazo prescricional. Não ocorrência da alegada prescrição. 4. Aplicação do princípio da insignificância. Impossibilidade. Elevado grau de reprovabilidade da conduta. Precedentes. 5. Dosimetria da pena. Reprimenda aplicada de forma proporcional e suficientemente fundamentada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento”.
STJRHC 44.669/RS, DJe 18/04/2016: “Nos termos dos precedentes da Corte, os crimes de apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária são delitos materiais, exigindo portanto a constituição definitiva do débito tributário perante o âmbito administrativo para configurar-se como conduta típica”.
12) Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de sonegação de contribuição previdenciária quando o valor do tributo ilidido não ultrapassa o patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais) previsto no art. 20 da Lei n. 10.522/2002.
O art. 337-A, § 2º, II, do Código Penal dispõe ser facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais.
Discute a doutrina se a intenção do legislador foi excluir da esfera dos crimes contra a previdência social a aplicação do princípio da insignificância. Para Damásio de JesusDireito Penal, v. 4, p. 264, o legislador optou expressamente pelo afastamento do princípio, seja qual for o valor do débito, até o limite mínimo para execução fiscal.
Não foi essa, todavia, a conclusão a que chegou o STJ. Ora, se o valor é insignificante para o fim de ajuizamento da execução fiscal, com muito mais razão é irrelevante para fins penais.
A dúvida, no entanto, estava em saber qual o valor máximo para a dívida ser etiquetada como irrelevante, tal como ocorria no crime de descaminho (tese 7). O Superior Tribunal de JustiçaHC 269.800/SP, DJe 02/05/2016 firmou o entendimento de que o reconhecimento da atipicidade material da conduta deve se basear no valor previsto na lei (R$ 10.000,00): “Como o valor apurado a título de contribuições previdenciárias sonegadas (R$ 1.547,84) fica aquém do mínimo previsto na Lei n. 10.522⁄2002, com a redação dada pela Lei n. 11.033⁄2004, é de ser reconhecida a incidência do princípio da insignificância. Ressalva do relator”.
13) O delito de sonegação de contribuição previdenciária não exige qualidade especial do sujeito ativo, podendo ser cometido por qualquer pessoa, particular ou agente público, inclusive prefeitos.
Há quem sustente que o crime de sonegação de contribuição previdenciária é próprio porque só pode ser cometido pelo responsável pelo lançamento das informações nos documentos relacionados com os deveres e obrigações para com a Previdência Social.
O STJ RHC 73.741/RJ, DJe 17/03/2016, no entanto, tem se orientado em sentido contrário, concluindo que qualquer pessoa pode figurar como autor do delito, até mesmo prefeitos municipais: “Pode qualquer pessoa, particular ou agente público, inclusive prefeitos, praticar o crime do art. 337-A do Código Penal, consistente na omissão de valores na guia de recolhimento do fundo de garantia por tempo de serviço e informação à Previdência Social – GFIP”.
14) O crime de falso, quando cometido única e exclusivamente para viabilizar a prática do crime de sonegação de contribuição previdenciária, é por este absorvido, consoante diretrizes do princípio penal da consunção.
Tal como ocorre com o descaminho (tese 9), a sonegação de contribuição previdenciária pode ser precedida de falsificação de documento, como as modalidades do art. 297, §§ 3º e 4º. Nesses casos – como vem ocorrendo em diversas outras situações em que a potencialidade lesiva do falso se exaure no crime-fim –, o STJAgRg no AREsp 386.863/MG, DJe 26/08/2015 firmou o entendimento de que a sonegação absorve o crime contra a fé pública: “Esta Corte vem enfatizando, em sucessivos julgados, que o crime de falso, quando cometido única e exclusivamente para consumar a sonegação de tributos, é absorvido pelo segundo delito, consoante diretrizes do princípio penal da consunção”.
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