6) O crime de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CPArt. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.) é de natureza material e exige a constituição definitiva do débito tributário perante o âmbito administrativo para configurar-se como conduta típica.
O entendimento dominante na doutrina é o de que a apropriação indébita previdenciária é crime formal, dispensando o locupletamento do agente ou o efetivo prejuízo ao Erário.
O STF já decidiu, no entanto, ser o crime material (Inq. 2.537/GO, DJe 13/06/2008), razoável conclusão tendo em vista que a partir do momento em que a contribuição deixa de ser repassada, verificam-se o locupletamento do agente e o prejuízo à previdência. Esta orientação, de resto, condiz com a postura ultimamente adotada a respeito da necessidade de esgotamento da via administrativa para que se intente a ação penal no crime de apropriação indébita previdenciária, na esteira do que dispõe a súmula vinculante nº 24. Embora não haja no verbete menção expressa à apropriação indébita previdenciária, passou-se a aplicar a mesma orientação também a este delito em virtude de sua clara natureza tributária. Ocorre que a redação do enunciado é expressa no sentido de que o crime a que se refere é material contra a ordem tributária, o qual não se tipifica até o lançamento definitivo. Por razão lógica, se houve definitivo lançamento do tributo é forçoso que se admita, no mínimo, o prejuízo aos cofres da previdência. Nesse sentido também tem se orientado o STJ:
“Na linha da jurisprudência deste Tribunal Superior, o crime de apropriação indébita previdenciária, previsto no art. 168-A, ostenta natureza de delito material. Portanto, o momento consumativo do delito em tela corresponde à data da constituição definitiva do crédito tributário, com o exaurimento da via administrativa (ut, (RHC 36.704/SC, Rel. Ministro FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJe 26/02/2016). Nos termos do art. 111, I, do CP, este é o termo inicial da contagem do prazo prescricional” (AgRg no REsp 1.644.719/SP, DJe 31/05/2017).
7) O delito de apropriação indébita previdenciária constitui crime omissivo próprio, que se perfaz com a mera omissão de recolhimento da contribuição previdenciária dentro do prazo e das formas legais, prescindindo, portanto, do dolo específico.
O tipo subjetivo da apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP) é o dolo, consubstanciado na vontade consciente de deixar de repassar à Previdência Social os valores de contribuições recolhidas dentro do prazo e forma legal.
Quanto à exigência de finalidade específica, existe certa divergência. Há quem sustente – a maioria – que, ao contrário da apropriação indébita comum – cuja conduta típica é “apropriar-se” –, a apropriação indébita previdenciária não pressupõe finalidade especial porque consiste apenas em “deixar de repassar” (Rogério Greco, Damásio de Jesus e Cleber Masson). Por outro lado, há quem defenda, tal como na apropriação indébita comum, o animus rem sibi habendi, o especial fim de apropriar-se dos valores que deveriam ser destinados ao órgão previdenciário. Sem esta finalidade, argumentam, não é possível caracterizar-se a apropriação, seja qual for a modalidade (Cezar Roberto Bitencourt).
O STJ adotou a primeira tese, e tem reiteradamente decidido que a finalidade especial é dispensável:
“Em crimes de sonegação fiscal e de apropriação indébita de contribuição previdenciária, este Superior Tribunal de Justiça pacificou a orientação no sentido de que sua comprovação prescinde de dolo específico sendo suficiente, para a sua caracterização, a presença do dolo genérico consistente na omissão voluntária do recolhimento, no prazo legal, dos valores devidos” (AgRg no REsp 1.477.691/DF, DJe 28/10/2016).
Segue-se, com isso, a orientação do STF:
“A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que para a configuração do delito de apropriação indébita previdenciária não é necessário um fim específico, ou seja, o animus rem sibi habendi, bastando para nesta incidir a vontade livre e consciente de não recolher as importâncias descontadas dos salários dos empregados da empresa pela qual responde o agente” (HC 122766 AgR/SP, DJe 13/11/2014).
8) A apropriação indébita previdenciária é crime instantâneo e unissubsistente, sendo a mera omissão de recolhimento da contribuição previdenciária dentro do prazo e das formas legais suficiente para a caracterização da continuidade delitiva.
Como veremos a seguir, a continuidade delitiva é admitida no crime de apropriação indébita previdenciária, e ocorre quando, ao longo dos meses, o agente deixa de repassar as contribuições previdenciárias no prazo legal.
O STJ foi provocado por diversas vezes a respeito da efetiva caracterização da continuidade delitiva. Argumentava-se que a omissão do repasse das contribuições recolhidas do segurado deveria ser caracterizada como crime único mesmo que ocorresse por meses seguidos.
O tribunal, no entanto, não acatou o argumento, e firmou tese em sentido contrário, considerando que o crime é instantâneo e unissubsistente. Por isso, as seguidas omissões de repasse devem ser tratadas como condutas autônomas em continuidade, sendo que a fração de aumento de pena deve considerar a quantidade de atos omissivos:
“De acordo com entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça, no que se refere à continuidade delitiva, o número de infrações cometidas deve ser considerado quando da fixação da fração devida a título de aumento, sendo 1/6 para a hipótese de dois delitos e o patamar máximo de 2/3 para o caso de 7 delitos ou mais. Assim, não há qualquer impropriedade no acórdão recorrido no ponto em que aplicou a fração de 2/3, considerando que foram praticadas 36 infrações” (AgRg no REsp 1.574.813/PR, DJe 01/08/2016).
9) É possível o reconhecimento da continuidade delitiva de crimes de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A do CP), bem como entre o crime de apropriação indébita previdenciária e o crime de sonegação previdenciária (art. 337-A do CP Art. 337-A. Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I – omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços; II – deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços; III – omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.) praticados na administração de empresas distintas, mas pertencentes ao mesmo grupo econômico.
Verifica-se a continuidade delitiva quando o sujeito, mediante pluralidade de condutas, realiza uma série de crimes da mesma espécie, guardando entre si um elo de continuidade, em especial as mesmas condições de tempo, lugar e maneira de execução (art. 71 do CPArt. 71 - Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.).
Tem como requisitos a pluralidade de condutas, a pluralidade de crimes da mesma espécie (aqueles previstos no mesmo tipo penal, protegendo igual bem jurídico), o elo de continuidade por meio das mesmas condições de tempo (no geral, alerta a jurisprudência que o intervalo entre as condutas não pode suplantar trinta dias, mas há quem defenda a aplicação das regras da continuidade em crimes tributários envolvendo o lançamento anual de tributos), lugar (para a jurisprudência, quando as condutas são cometidas na mesma comarca ou em comarcas vizinhas) e da mesma maneira de execução (trata-se de semelhança, não identidade), além de outras circunstâncias semelhantes (quaisquer outras circunstâncias das quais se possa concluir pela continuidade).
Diante desses requisitos, não há nenhum problema no reconhecimento da continuidade delitiva entre crimes de apropriação indébita previdenciária ocorridos durante extenso período de tempo. Normalmente, aliás, a apropriação é cometida mês a mês, em caso típico de continuidade. E o STJ entende possível aplicar a continuidade inclusive quando os crimes forem cometidos por agente à frente de empresas diversas pertencentes ao mesmo grupo econômico:
“A prática de crimes de apropriação indébita previdenciária em que o agente estiver à frente de empresas distintas, mas pertencentes ao mesmo grupo empresarial, não afasta o reconhecimento da continuidade delitiva” (AgRg no REsp 1.396.259/RS, DJe 30/03/2016).
Não se pode dizer o mesmo da continuidade entre a apropriação indébita previdenciária e a sonegação de contribuição previdenciária. São condutas absolutamente distintas: enquanto a primeira consiste em deixar de repassar à Previdência as contribuições recolhidas, a segunda consiste em suprimir ou reduzir contribuição previdenciária por meio da omissão de informações que devem indicar o montante a ser recolhido. São condutas tipificadas em dispositivos distintos, cujos meios de execução em nada se assemelham.
Não obstante, o STJ firmou o entendimento de que se admite a continuidade delitiva entre esses delitos:
“É possível o reconhecimento de crime continuado em relação aos delitos tipificados nos artigos 168-A e 337-A do Código Penal, porque se assemelham quanto aos elementos objetivos e subjetivos e ofendem o mesmo bem jurídico tutelado, qual seja, a arrecadação previdenciária” (REsp 859.050/RS, DJe 13/12/2013).
10) O pagamento integral dos débitos oriundos de apropriação indébita previdenciária, ainda que efetuado após o recebimento da denúncia, mas antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, extingue a punibilidade, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei n. 10.684/03Art. 9o É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1o A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva. § 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios..
Antes do advento da Lei 9.983/2000 (que incluiu no Código Penal o art. 168-A), aplicava-se sobre a extinção da punibilidade no crime de apropriação indébita previdenciária o disposto no art. 34 da Lei 9.249/95Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia., que concedia a extinção em relação ao agente que efetuasse o pagamento em momento anterior ao recebimento da denúncia.
Depois da referida Lei, aplicando-se o § 2º do art. 168-A § 2o É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal. , somente ocorria a extinção da punibilidade se: a) o agente declarava e confessava a dívida (autodenúncia); b) efetuando, espontaneamente (sem a intervenção de fatores externos), o pagamento do tributo devido; c) antes do início da execução fiscal.
Com o aparecimento da Lei 10.684/2003 (Lei do PAES), entendeu o STF (HC 85.452, rel. Min. Eros Grau, DJU 03.06.2005) que o pagamento de tributo – inclusive contribuições previdenciárias – realizado a qualquer tempo, gerava a extinção da punibilidade, nos termos do art. 9º, § 2º.
A política de parcelamento extintivo da punibilidade foi novamente disciplinada na Lei 11.941/2009, que no art. 69 anuncia: “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 [arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 e arts. 168-A e 337-A do CP] quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”.
Por fim, a Lei 12.382/11, dando nova redação ao art. 83, § 1º, da Lei 9.430/96, proclama: “Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário [abrangendo as contribuições previdenciárias], a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento”. Durante o período em que a pessoa física ou jurídica relacionada com o agente do crime do art. 168-A estiver incluída no plano de parcelamento, fica “suspensa a pretensão punitiva do Estado”, desde que “o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal (§ 2º). A prescrição da pretensão punitiva [e não executória] também fica suspensa (§ 3º). Ocorrendo o pagamento integral dos débitos parcelados, extingue-se a punibilidade (§ 4º).
O STF já decidiu que a Lei nº 12.382/11 convive com o art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/03. Julgando habeas corpus em processo que apurava sonegação fiscal, o relator esclareceu que o impetrante buscava ver declarada extinta a punibilidade, considerado o pagamento integral de débito tributário constituído. No writ, fez referência ao voto externado no exame da AP 516 ED/DF, segundo o qual a Lei 12.382/11, que trata da extinção da punibilidade dos crimes tributários nas situações de parcelamento do débito tributário, não afetaria o disposto no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003, o qual preveria a extinção da punibilidade em virtude do pagamento do débito a qualquer tempo. O relator ressalvou entendimento pessoal de que a quitação total do débito, a permitir que fosse reconhecida causa de extinção, poderia ocorrer, inclusive, posteriormente ao trânsito em julgado da ação penal. (HC 116.828/SP, rel. Min. Dias Toffoli, DJe 22/08/2013).
O STJ tem adotado a orientação de que o pagamento realizado após o recebimento da denúncia, mas antes do trânsito em julgado, extingue a punibilidade:
“Comprovado o pagamento integral dos débitos oriundos da falta de recolhimento de contribuições sociais, ainda que efetuado posteriormente ao recebimento da denúncia, extingue-se a punibilidade, nos termos do 9º, § 2º, da Lei 10.684/03” (HC 126.243/SP, DJe 26/08/2015).
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