Não são poucos os casos divulgados na imprensa envolvendo graves acidentes provocados por motoristas embriagados. A multiplicidade de mortes e lesões gravíssimas provocadas nesses acidentes levou inclusive à aprovação de medidas mais severas para a punição da própria embriaguez ao volante, o que se deu inicialmente pela Lei 11.705/08 (apelidada de “Lei Seca”) e, posteriormente, pela Lei 12.760/12, que aprimorou a redação do art. 306 do CTB, corrigindo falhas que a Lei 11.705/08 havia provocado e que dificultavam a punição, não obstante seu propósito houvesse sido o contrário.
Por eficazes que tenham sido essas medidas para tornar mais rigorosa a punição da embriaguez ao volante, é certo, como não poderia deixar de ser, que não se obstaram completamente os acidentes nessas circunstâncias. Ocorre que, devido à pouca severidade das reprimendas cominadas ao homicídio e à lesão corporal culposos cometidos na direção de veículo automotor, tem-se verificado a tendência de estabelecer o dolo eventual na conduta do motorista embriagado, especialmente quando a condução é combinada com alta velocidade. Argumenta-se que o condutor que se coloca sob estado de embriaguez assume conduta demasiadamente arriscada, admitindo a possibilidade de causar um acidente, e, como consequência, ferir ou matar alguém.
A questão, todavia, é mais complexa e exige atenção por parte do aplicador da lei.
O simples fato de o agente embriagado tomar a direção de um veículo e causar um acidente, ainda que imprima alta velocidade, não faz presumir que a conduta tenha sido permeada pelo dolo eventual. Afirmar que alguém previu a ocorrência do resultado e assumiu o risco de produzi-lo significa dizer que antecipou mentalmente que sua conduta poderia causar determinado resultado lesivo e se manteve insensível, aceitando aquele resultado como provável.
Não é, convenhamos, o que ocorre ao menos em grande parte dos casos, que decorrem, efetivamente, da imprudência do motorista que conduz o veículo sem apresentar condições psicomotoras adequadas. No exemplo de Rogério GrecoCurso de Direito Penal – Parte Geral. 15ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013, vol. 1, p. 215, imaginemos aquele “que, durante a comemoração de suas bodas de prata, beba excessivamente e, com isso, se embriague. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para sua residência, pois quer assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia ao seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava”.
Não podemos negar que as penas cominadas à lesão corporal e ao homicídio no Código de Trânsito Brasileiro não são suficientes para assegurar a devida proteção a bens jurídicos da estatura da incolumidade física e da vida humanas. Esta deficiência, porém, há de ser suprida por meio da adequação da pena prescrita em lei, não pelo desvirtuamento do sistema penal. Na imputação criminal, o aspecto subjetivo da conduta é obviamente de vital importância e, por isso, deve ser tão precisamente extraído quanto seja possível, consideradas as circunstâncias do fato. É admissível atribuir o dolo eventual à conduta do motorista embriagado, desde que reste evidência de que o agente se viu diante de um resultado lesivo iminente e se manteve indiferente em relação às implicações de seu proceder.
É o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça por meio de sua Sexta Turma.
No caso, uma motorista havia ingerido bebidas alcoólicas em uma festa e, ao assumir a direção de seu veículo, colidiu-o frontalmente com outro, causando a morte do condutor.
Em seu voto, o ministro Rogério Schietti Cruz destacou que “em crimes praticados na condução de veículos automotores, em que o próprio condutor é uma das pessoas afetadas pelo fato ocorrido, a tendência natural é concluir-se pela mera ausência do dever de cuidado objetivo, até porque, salvo exceções, normalmente as pessoas não se utilizam desse meio para cometer homicídios e, mesmo quando embriagadas, na maioria das vezes, agem sob a sincera crença de que têm capacidade de conduzir o seu veículo sem provocar acidentes”.
E prosseguiu o ministro: “Aparentemente em razão da insuficiência da resposta punitiva para os crimes de trânsito, que, invariavelmente, não importam em supressão da liberdade de seus autores – porque, sendo a conduta culposa, os autores do crime são beneficiados pelo regime aberto de cumprimento da pena e pela substituição da sanção privativa de liberdade por restritiva de direitos – tem-se notado perigosa tendência de, mediante insólita interpretação de institutos que compõem a Teoria do Crime, forçar uma conclusão desajustada à realidade dos fatos.
Seguramente, como dito, é possível identificar hipóteses em que as circunstâncias do caso analisado permitem concluir pela ocorrência de dolo eventual em delitos viários. Entretanto, insista-se, não se há de aceitar a matematização do Direito Penal, sugerindo a presença de excepcional elemento subjetivo do tipo pela simples verificação de um fato isolado, qual seja, a embriaguez do agente causador do resultado”.
É preciso, portanto, analisar cuidadosamente as circunstâncias do caso concreto para estabelecer se o agente agiu com inobservância do dever de cuidado ou se assumiu o risco de provocar o resultado. A embriaguez é apenas um dos fatores que se inserem na esfera de apuração; não é o único.
REsp 1.689.173/SC, j. 06/12/2017