Antes de expor o tema central deste trabalho é preciso deixar claro que se entende que qualquer imunidade, perante a prisão provisória, em flagrante ou não, tirante o caso de liberdade de expressão por palavras e votos dos parlamentares em geral (imunidade material), não se justifica de forma alguma. A legislação e mesmo a Constituição Federal cria um arcabouço de privilégios ilegítimos, violando a igualdade sem um necessário lastro de razoabilidade. Há uma casta de pessoas que se acha protegida por um véu de intocabilidade, ainda que diante do cometimento flagrante de infrações penais. Isso é incorreto, desnecessário, injusto e contraproducente.
Dentre os vários beneficiados com essa imunidade, por exemplo, à prisão em flagrante, estão o Presidente da República (artigo 86, § 3º., CF§ 3º Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.), os Membros do Ministério Público e Magistrados em infrações penais afiançáveis (artigo 40, III, da Lei 8.625/93Art. 40. Constituem prerrogativas dos membros do Ministério Público, além de outras previstas na Lei Orgânica: (...) III - ser preso somente por ordem judicial escrita, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará, no prazo máximo de vinte e quatro horas, a comunicação e a apresentação do membro do Ministério Público ao Procurador-Geral de Justiça; – LONMP e artigo 33, II da LC n. 35/79Art. 33 - São prerrogativas do magistrado: (...) II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão especal competente para o julgamento, salvo em flagrante de crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comunicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal a que esteja vinculado (vetado); – LOMN), os Deputados Estaduais (artigo 27, § 1º., CF§ 1º Será de quatro anos o mandato dos Deputados Estaduais, aplicando- sê-lhes as regras desta Constituição sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas.) e os membros do Congresso Nacional (Deputados Federais e Senadores – artigo 53, § 2º., CF§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.), também estes últimos nos casos de infrações penais afiançáveis (MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 669 – 670). No caso de infrações inafiançáveis, mesmo quando presos, Membros do Ministério Público e Juízes, devem ter formalizada a prisão pela respectiva Procuradoria Geral ou Tribunal e não pela Polícia Judiciária. Também os ocupantes de cargos políticos, ainda que presos em casos de crimes inafiançáveis, somente terão tais restrições de liberdade mantidas e seguirá o procedimento com a anuência das respectivas casas legislativas.
Enquanto o STFPARA cinco ministros do Supremo, Deputado Estadual não tem imunidade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/cinco-ministros-stf-deputado-estadual-nao-imunidade , acesso em 27.01.2018. Vide ADINs 5823, 5824 e 5825. Embora se considere esses privilégios equivocados, não se compreende com base em que espécie de malabarismo jurídico o STF tende a negar a letra clara e evidente da CF. Os privilégios são injustos sim, mas sua negativa não pode se dar por uma canetada autoritária, midiática e de conveniência do STF, violando a tripartição de poderes. Há necessidade de reforma constitucional nesse aspecto, porque o que é estabelecido é, sem dúvida alguma, a imunidade dos Deputados Estaduais tal qual a dos Senadores e Deputados Federais. Essa igualdade, inclusive, no atual quadro, é razoável. O que deve ocorrer é a eliminação de todos os privilégios quanto à prisão em flagrante e não de um caso isolado por mera conveniência. parece tender a desconsiderar a imunidade dos Deputados Estaduais à prisão provisória, inobstante o claro texto constitucional artigo 27, §1º., CF, que os coloca em pé de igualdade com os Senadores e Deputados Federais (artigo 53, § 2º., CF), eis que este subscritor descobre uma Lei Orgânica Municipal, da cidade de Timon, no Estado do Maranhão, no bojo da qual se confere aos Vereadores as mesmas imunidades que detém os parlamentares Estaduais e Federais (artigo 36, §§ 1º§ 1º - Os Deputados, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Tribunal de Justiça do Estado. . e 2º.§ 2º - Desde a expedição do diploma, os membros da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão, não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Assembleia Legislativa, para que, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, resolva sobre a prisão. , da Constituição do Estado do Maranhão e artigo 39, §§ 1º. a 6º., da Lei Orgânica do Município de Timon – MA).
Na citada Lei Orgânica consta a imunidade material por “opiniões, palavras e votos”, o que não é de se criticar, pois que se trata de simples cumprimento de mandamento Constitucional previsto no artigo 29, VIII, CFArt. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...) VIII - inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município; , sem o qual realmente a atividade parlamentar, em qualquer nível, é inviável em termos de uma almejada democracia.
Tudo, porém, começa a degringolar quando o artigo 39, “caput” da legislação municipal, afirma que os Vereadores daquela localidade gozam das mesmas imunidades “conferidas aos Deputados Estaduais”. Em seguida (artigo 39, § 1º.), passa a determinar que os Vereadores não podem ser presos em flagrante, a não ser no caso de crimes inafiançáveis, e nem processados criminalmente sem licença prévia da Câmara Municipal. Não é só isso: em caso de eventual prisão em flagrante por crime inafiançável, estabelece que o auto respectivo não deve ser remetido ao Judiciário, mas sim, dentro de 24 horas, à Câmara Municipal, para que, “pelo voto aberto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão e autorize, ou não, a formação de culpa” (artigo 39, § 2º.). Finalmente, estabelece que, em caso de autorização da Câmara Municipal, havendo processo criminal, este será de competência do “Juiz de Direito da Comarca” (artigo 39, § 3º.). Tem mais: essas imunidades dos Vereadores de Timon – MA subsistirão mesmo em caso de Estado de Sítio, somente podendo sofrer suspensão por meio de voto de dois terços dos componentes da Câmara Municipal (artigo 39, § 6º.).
Eis uma legislação que supera a discussão sobre privilégios, as questões jurídicas de qualquer espécie, para adentrar triunfalmente no âmbito da insanidade megalomaníaca.
Como é de trivial conhecimento, os Vereadores, excetuando-se a imunidade material por opiniões, palavras e votos no exercício do mandato, não detém qualquer privilégio previsto para as prisões provisórias, inclusive a em flagrante, seja no Código de Processo Penal, seja na Constituição Federal. Como afirma Castelo BrancoCASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 185., em obra especializada, “os vereadores não gozam de imunidades parlamentares” na Prisão em Flagrante (grifos no original). No mesmo sentido, afirma Tourinho FilhoTOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 16ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 670. que “quanto aos Vereadores, a Constituição de 1988 lhes estendeu as imunidades materiais. Apenas as materiais” (grifo nosso).
São cristalinos os ensinamentos de Gomes e BianchiniGOMES, Luiz Flávio, BIANCHINI, Alice. Das Imunidades e Prerrogativas dos Parlamentares. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 27.01.2018.:
“Não contam os vereadores com imunidade formal ou processual, isto é, para serem processados não é preciso licença da Câmara de Vereadores: STF, HC 74.201-7-MG, 1.ª T., rel. Celso de Mello, j. 12.11.1996, v. U., DJU 13.01.1996, p. 50.164. (…). Não desfrutam, ademais, da imunidade prisional. Podem ser presos cautelarmente: STF, Pleno, HC 70.352-6-SP, rel. Celso de Mello, DJU03.12.1993, p. 26.357 e RT 707/394”.
Assim sendo, é mais do que visível que as disposições expostas da Lei Orgânica do Município de Timon – MA e outras que tais são totalmente ilegítimas e inconstitucionais. Na verdade, se tratam de dispositivos “legais” que nem sequer merecem consideração como existentes, tamanha a violação dos preceitos mais básicos do processo legislativo em sua competência.
Dessa maneira, os Vereadores de Timon – MA e de qualquer município do Brasil, podem e devem ser presos em flagrante em casos de crimes afiançáveis ou inafiançáveis, indistintamente, sendo o procedimento o comum a todos os cidadãos, sem qualquer imunidade. Obviamente a prisão deverá ser comunicada ao Judiciário e jamais à Câmara de Vereadores, a qual também não detém qualquer poder decisório sobre a eventual formação de culpa. A única comunicação à Câmara de Vereadores que pode e também deve ser feita é para fins de procedimento político – administrativo de sua atribuição no que se refere a questões de decoro parlamentar.
Apenas a título exemplificativo, as disposições da Lei Orgânica Municipal sob comento violam a competência privativa da união para legislar sobre “processo penal” (artigo 22, I, CFArt. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;). Também afrontam a Constituição Federal, mediante a criação de uma imunidade inexistente e sequer aventada pela Lei Maior, a qual somente se refere aos parlamentares de nível Estadual e Federal (artigos 27, § 1º., CF e 53, § 2º., CF). Não bastasse isso, configura-se em usurpação de funções do Ministério Público como privativo titular da ação penal pública (artigo 129, I, CFArt. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;), bem como do Poder Judiciário no que tange à avaliação da legalidade da prisão em flagrante (artigo 5º., LXILXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; e LXIILXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;, CF). Isso afora a evidente violação das prerrogativas dos Delegados de Polícia (artigo 304, CPP Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. e Lei 12.830/13 c/c artigo 144, I e IVArt. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; IV - polícias civis; e §§ 1º§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União. e 4º.§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. , CF). Sem olvidar ainda os dispositivos do Código de Processo Penal que dizem respeito à comunicação e competências dos juízes de direito nos casos de Prisão em Flagrante, v.g. artigos 306Art. 306. A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. e 310 Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. , CPP. Chega a ser risível o estabelecimento da competência do Juiz da Comarca para o julgamento do Vereador na legislação sob comento. Ora, essa competência decorre não daquela lei municipal, mas das normas constitucionais e ordinárias de processo penal. Também totalmente inviável o reconhecimento de imunidade inquebrantável, mesmo diante do Estado de Sítio, aos vereadores, pois que isso somente é previsto para os Membros do Congresso Nacional, nos estritos termos do artigo 53, § 8º., CF§ 8º As imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida..
Enfim, como bem destaca ZagrebelskyZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Trad. Marina Gascón. 11ª. ed. Madrid: Trotta, 2016, p. 64. No original: “raros casos de leyes puramente aparentes, en los que debería reconocerse la existencia de uma obligatión de inaplicarlas”., a legislação em destaque é um daqueles “raros casos de leis puramente aparentes, em que se deve reconhecer a existência de uma obrigação de inaplicabilidade”.
Efetivamente, a existência de tantas imunidades previstas legalmente, ao menos obedecendo ao processo legislativo em sua competência constitucional, já causa incômodo e violação injustificável ao Princípio da Igualdade (artigo 5º., “caput”, CFArt. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes), merecendo uma urgente revisão pelos meios adequados. Se isso já é motivo de insatisfação a todo aquele que tenha uma mais mínima noção do “justo”, imagine-se a inconveniência, a indesejabilidade de uma espúria lei municipal que cria mais um caso esdrúxulo ou bizarro de privilégio insustentável.
REFERÊNCIAS
CASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
GOMES, Luiz Flávio, B IANCHINI, Alice. Das Imunidades e Prerrogativas dos Parlamentares. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 27.01.2018.
MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
PARA cinco ministros do Supremo, Deputado Estadual não tem imunidade. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-08/cinco-ministros-stf-deputado-estadual-nao-imunidade , acesso em 27.01.2018.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 16ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho Dúctil. Trad. Marina Gascón. 11ª. ed. Madrid: Trotta, 2016.