Há alguns dias, na cidade de Ribeirão Preto/SP, um homem foi abordado por policiais militares quando conduzia um veículo em alta velocidade. Durante o procedimento de fiscalização, entregou aos policiais uma carteira de habilitação que, ao ser consultada no sistema da própria viatura, revelou-se falsa, pois não obstante exibisse o nome e a fotografia do motorista, nela estavam impressos dados de registro relativos ao ator Antonio Fagundes. Confrontado, o motorista confessou que comprara o documento em Minas Gerais.
Na esfera da falsidade documental, pune-se tanto quem falsifica quanto quem usa o documento falso. Se o agente que falsifica é o mesmo que usa, a punição se dá apenas pelo ato de falsificação, inserindo-se o uso na esfera do post factum impunível. Se a falsificação e o uso não se reúnem na mesma pessoa, há figuras criminosas distintas.
Seja como for, é característica inafastável dos crimes contra a fé pública a capacidade de iludir, isto é, o documento produzido mediante falsidade – material ou ideológica – deve ter aptidão para se apresentar como verdadeiro, pois somente assim é possível a ofensa à fé pública. Se o documento é grosseiramente contrafeito, de maneira que qualquer pessoa perceba imediatamente que se trata de uma falsificação, não há crime de falso.
Com efeito, é unânime a doutrina que agrega à conduta dos crimes contra a fé pública a potencialidade ilusória, porque somente assim se pode vislumbrar a imprescindível lesividade ao bem jurídico tutelado. A respeito, ensina Damásio de JesusDireito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva. v. 4 (13. ed., 2007), p. 8:
“não há delito de falso sem a potencialidade lesiva (possibilidade de dano). É preciso que traga em si mesmo a capacidade de iludir a vítima e, assim, causar-lhe um dano. Se o falso é grosseiro, incapaz de enganar, ou forma um documento nulo (nulidade estranha à própria falsidade), não ofende a fé pública e, por isso, não existe crime”.
Não é outra a lição de MirabeteManual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas. v. 3 (21. ed., 2006), p. 217, para quem a capacidade ilusória do documento deve ser analisada com base na potencialidade de ludibriar o homem médio:
“É indispensável, por fim, que haja imitação da verdade (imitativo veri), que a falsificação seja idônea para iludir um número indeterminado de pessoas. O documento falsificado deve apresentar-se com a aparência de verdadeiro, seja pela idoneidade dos meios empregados pelo agente, seja pelo aspecto de potencialidade do dano. Não há falsificação se o documento não pode enganar, se não imita o verdadeiro, se não tem a capacidade de, por si mesmo, iludir o homo medius”.
Será que, na situação narrada no início deste texto, poderíamos concluir pela não ocorrência do crime, já que a falsidade foi prontamente constatada pelos policiais?
Não nos parece ser esta a melhor conclusão.
A Carteira Nacional de Habilitação é um documento que se presta não só para que o motorista comprove aptidão para conduzir veículos automotores, mas também para que o cidadão se identifique em qualquer situação, onde quer que se encontre no território nacional. É o que dispõe o art. 159 do Código de Trânsito:
“Art. 159. A Carteira Nacional de Habilitação, expedida em modelo único e de acordo com as especificações do CONTRAN, atendidos os pré-requisitos estabelecidos neste Código, conterá fotografia, identificação e CPF do condutor, terá fé pública e equivalerá a documento de identidade em todo o território nacional”.
Ora, a falsidade do documento apresentado pelo motorista em Ribeirão Preto só foi constatada porque os policiais tinham meios de efetuar a consulta imediata do número de registro, mas isso não é possível a todos os indivíduos aos quais o documento poderia ter sido apresentado como prova de identidade. É evidente que a grande maioria das pessoas não tem nenhuma condição de verificar a autenticidade de um documento a não ser pelo meio visual. Aliás, ao que parece este meio não foi suficiente para os próprios policiais, que tiveram de efetuar a consulta dos dados impressos na CNH.
Não é possível ter por grosseira uma falsificação não detectável por simples exame visual. É assim, repita-se, que a quase totalidade das pessoas age para se precaver diante de uma possível falsidade. Se há necessidade de qualquer procedimento, por simples que seja, para constatar o falso, há de se considerar perfeito o crime, como no caso ocorrido.
Por fim, uma questão interessante sobre a caracterização do uso de documento falso, especialmente no que diz respeito à CNH: perfaz-se o crime apenas quando o documento é entregue espontaneamente ou é também criminosa a conduta que se dá em decorrência de exigência da autoridade que efetua fiscalização?
No escólio de Guilherme de Souza NucciCódigo Penal comentado, p. 1149/1150, tais circunstâncias mostram-se irrelevantes:
“Há perfeita possibilidade de configuração do tipo penal quando a exibição de uma carteira de habilitação falsa, por exemplo, é feita a um policial rodoviário que exige a sua apresentação, por estar no exercício da sua função fiscalizadora. Assim é a posição majoritária: ‘Reiterada é a jurisprudência desta corte e do STF no sentido de que há crime de uso de documento falso ainda quando o agente o exibe para a sua identificação em virtude de exigência por parte de autoridade policial’ (STJ, 5.ª T., REsp 193.210/DF, Rel. José Arnaldo da Fonseca, j. 20.04.1999, v.u., DJ 24.05.1999, Seção 1, p. 190)”.
Note-se apenas que o STJCC 148.592/RJ, DJe 13/02/2017 já decidiu que o crime só se caracteriza quando o documento é efetivamente utilizado, não quando encontrado casualmente pela autoridade. No caso, o agente havia sido abordado pela Polícia Rodoviária Federal e, ao ser indagado, disse ao policial que não era habilitado. No entanto, o policial avistou, na carteira aberta, documento semelhante a uma CNH, que lhe foi entregue. O documento era falso, razão pela qual foi o agente processado por sua utilização. Mas, para o STJ, “não há como se reconhecer na conduta, a priori, o elemento de vontade (de fazer uso de documento falso) necessário à caracterização do delito do art. 304 do CP (…)”.
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