Nos termos do artigo 53, §1º da CF/88, “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. Trata-se de foro por prerrogativa de função, exercido pelo STF.
Da simples leitura do parágrafo, percebe-se que o foro especial se estende da diplomação (e não da posse) até o fim do mandato.
Em razão da amplitude que pode ser extraída do texto literal da Constituição, sempre se considerou que todo e qualquer processo criminal a que respondesse o parlamentar deveria ser levado ao Supremo Tribunal Federal a partir da diplomação, ou seja, passavam à jurisdição do tribunal eventuais processos por crimes cometidos antes da diplomação e nela se iniciava qualquer processo por crime cometido após a diplomação e até o fim do mandato parlamentar.
O tribunal, no entanto, por meio de questão de ordem na Ação Penal 937, decidiu que: 1) a prerrogativa de foro se limita aos crimes cometidos no exercício do cargo e em razão dele; 2) a jurisdição do STF se perpetua caso tenha havido o encerramento da instrução processual – leia-se: intimação das partes para apresentação das derradeiras alegações – antes da extinção do mandato.
A aplicação literal do dispositivo constitucional tem causado certos problemas em virtude da mudança de circunstâncias envolvendo o agente processado. São frequentes as modificações de foro porque alguém respondia criminalmente em primeira ou em segunda instância, mas, diplomado, passou a desfrutar da prerrogativa de ser julgado pelo STF. Da mesma forma, não são raras as remessas de processos a instâncias inferiores porque o agente, por algum motivo, perdeu a prerrogativa.
Para evitar essas modificações de foro – que não necessariamente decorrem de má-fé –, o STF decidiu para que o foro por prerrogativa seja limitado aos crimes cometidos no exercício do mandato e em razão dele. Dessa forma, alguém que tenha cometido um crime originariamente de competência da primeira instância deve ser julgado naquele mesmo foro ainda que diplomado parlamentar federal, evitando que a diplomação provoque a remessa do processo ao STF e que, uma vez extinto o mandato, haja nova remessa à instância inferior. Além disso, mesmo um crime cometido no exercício do mandato, mas que não tenha relação com ele, deve ser julgado pela primeira instância. É o caso de um deputado que mata outro nas dependências da Câmara, por exemplo.
No caso julgado pelo STF (AP 937), o agente é acusado de ter cometido crime relativo à compra de votos durante campanha para as eleições municipais de 2008. Com sua eleição para o cargo de prefeito, o processo foi remetido ao Tribunal Regional Eleitoral. Findo o mandato, houve a remessa para a primeira instância da Justiça Eleitoral. Ocorre que, em 2015, o agente tomou posse no cargo de Deputado Federal porque era um dos suplentes de seu partido, o que levou o processo ao STF. Em 2016, afastou-se do cargo de deputado e o reassumiu antes de finalmente renunciar ao mandato parlamentar para assumir o cargo de prefeito, para o qual havia sido eleito nas últimas eleições municipais.
Esse caso ilustra bem o problema causado pela aplicação irrestrita da prerrogativa de foro. A ação penal tramita há anos e, devido a várias mudanças de cargos do acusado, sofreu diversas remessas entre foros e não pôde ser concluída, elevando o risco de prescrição.
Em seu voto, o min. Luís Roberto Barroso sustentou que o sistema do foro por prerrogativa até então adotado, que admitia toda e qualquer infração penal cometida pelo parlamentar, mesmo antes da investidura no cargo, era altamente disfuncional, muitas vezes impedindo a efetividade da justiça criminal, o que acabava criando situações de impunidade que contrariavam princípios constitucionais como equidade, moralidade e probidade administrativa, abalando portanto valores republicanos estruturais.
Com essa extensão, o foro por prerrogativa de função não encontra correspondência no direito comparado e nem mesmo no Brasil, cuja ordem constitucional estabelecia, nos primórdios, rol muito pequeno de autoridades julgadas pelo então Supremo Tribunal de Justiça. Ao longo dos processos constitucionais originários por que passou o Brasil é que a prerrogativa foi sendo ampliada até chegar ao modelo atual. Somando-se ao extenso rol de autoridades uma interpretação extensiva a respeito dos crimes abrangidos pela prerrogativa, chegou-se inevitavelmente à baixa efetividade da prestação jurisdicional penal no âmbito da mais alta corte de justiça.
Essa situação só pode ser modificada pela interpretação restritiva da regra do foro por prerrogativa, que deve ser aplicado para crimes cometidos no cargo e em conexão com ele (crimes funcionais). O foro por prerrogativa de função é concebido para conferir a devida proteção ao exercício funcional, não para dificultar a persecução penal decorrente da prática de crimes pelo parlamentar. Por isso, há de se fazer presente o nexo de causalidade entre o exercício funcional e a conduta criminosa.
Aliás, a proposta de redução do foro por prerrogativa é harmoniosa com restrições interpretativas que o próprio STF vem impondo até mesmo à imunidade material dos parlamentares, como ocorreu no Inq. 3.932/DF. Se, portanto, o tribunal admite a restrição da imunidade dita absoluta, com mais razão deve se permitir interpretar restritivamente a imunidade relativa, especialmente diante dos efeitos deletérios que sua aplicação incondicional tem causado.
Também se estabeleceu que, uma vez publicado o despacho para que as partes apresentem suas manifestações finais (art. 11 da Lei nº 8.038/90), a competência do STF deve ser prorrogada para que sejam preservadas a efetividade e a racionalidade da prestação jurisdicional. Isso evita inclusive manobras processuais como a ocorrida na Ação Penal 396, no curso da qual, prestes a ser julgado, o parlamentar renunciou ao mandato para deslocar o processo para a primeira instância. Naquele caso específico, o pleno do Supremo decidiu pela ineficácia da renúncia diante – nas palavras da ministra Cármen Lúcia – de uma “fraude processual inaceitável”. Estabelecida a perpetuatio jurisdictionis, evitam-se de uma vez por todas manobras da mesma natureza.
A decisão foi tomada por maioria, prevalecendo a tese do relator, mas com algumas divergências entre os votos dos ministros.
Em síntese, destaca-se que o ministro Alexandre de Moraes considerou que o foro por prerrogativa deveria prevalecer para qualquer crime cometido após a diplomação, independentemente da conexão com as funções. Foi, neste ponto, acompanhado pelos ministros Dias Toffoli e Lewandowski.
Após ter proferido seu voto, o ministro Dias Toffoli o ajustou para estender a restrição da prerrogativa de foro a todos os agentes beneficiados (deputados estaduais, magistrados, promotores, etc.) e também para declarar inconstitucionais normas estaduais que conferem a prerrogativa, no que foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes (que, embora tenha aderido à tese que restringe a prerrogativa, diz-se contrário à possibilidade de que o STF reinterprete a Constituição neste sentido). Finalmente, divergiu o ministro Marco Aurélio no tocante à prorrogação da competência do STF após o encerramento da instrução processual. Segundo o ministro, esta espécie de competência é de natureza absoluta e não pode ser prorrogada.
Nenhum dos pontos divergentes, entretanto, foi acolhido.
Há de se atentar, de resto, para o fato de que o Congresso Nacional vem deliberando sobre a aprovação de emenda para modificar as disposições constitucionais a respeito do foro por prerrogativa de função. O Senado Federal inclusive já aprovou a PEC 10/2013, que restringe a garantia aos chefes dos Poderes e ao vice-presidente da República.
O principal argumento para a propositura da emenda foi a igualde de todos perante a lei. Para os senadores que endossaram a proposta, não é razoável que, com a justificativa de proteger o desempenho da função, o ordenamento jurídico estabeleça prerrogativa de foro para quem agiu justamente contra a dignidade da função e abusando dela.
Associaram-se a isso aqueles problemas tratados pelo Supremo Tribunal Federal na questão de ordem na AP 937. As infindáveis ações penais que tramitam em instâncias superiores, muitas vezes impedindo que autores de graves infrações penais sejam punidos, acabaram por sobrepor, perante a sociedade, o conceito de proteção da pessoa àquele de proteção do cargo.
A proposta de emenda se lastreia ainda no fato de que a ocupação de cargos superiores por determinados indivíduos não torna as instâncias ordinárias menos qualificadas para julgá-los. Também não há risco de que prosperem acusações criminais infundadas, que podem ser combatidas – como de fato têm sido mesmo quando atingem aqueles que não desfrutam da prerrogativa – pelo habeas corpus. E não se descartam as prerrogativas nas quais a emenda não toca, relativas às garantias para o pleno exercício do cargo.
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