Informativo: 623 do STJ – Direito Penal
Resumo: A embriaguez do agente condutor do automóvel, por si só, não pode servir de premissa bastante para a afirmação do dolo eventual em acidente de trânsito com resultado morte.
Comentários:
Verifica-se, há algum tempo, a tendência de estabelecer o dolo eventual no homicídio cometido por motorista embriagado, especialmente quando a condução se combina com alta velocidade. Argumenta-se que o condutor em estado de embriaguez assume conduta demasiadamente arriscada, admitindo a possibilidade de causar um acidente, e, como consequência, ferir ou matar alguém.
A questão, todavia, por sua complexidade, sempre foi objeto de debates.
A rigor, à luz da teoria do delito, o simples fato de o agente embriagado tomar a direção de um veículo e causar um acidente, ainda que imprima alta velocidade, não pode fazer presumir que a conduta tenha sido permeada pelo dolo eventual. Afirmar que alguém prevê a ocorrência do resultado e assume o risco de produzi-lo significa dizer que essa pessoa antecipa mentalmente que sua conduta pode causar determinado resultado lesivo e se mantém insensível, aceitando o resultado como provável. Não é, convenhamos, o que ocorre ao menos em grande parte dos casos, que decorrem, efetivamente, da imprudência do motorista que conduz o veículo sem apresentar condições psicomotoras adequadas. No exemplo de Rogério Greco, imaginemos aquele “que, durante a comemoração de suas bodas de prata, beba excessivamente e, com isso, se embriague. Encerrada a festividade, o agente, juntamente com sua esposa e três filhos, resolve voltar rapidamente para sua residência, pois quer assistir a uma partida de futebol que seria transmitida pela televisão. Completamente embriagado, dirige em velocidade excessiva, a fim de chegar a tempo para assistir ao início do jogo. Em razão do seu estado de embriaguez, conjugado com a velocidade excessiva que imprimia ao seu veículo, colide o seu automóvel com outro, causando a morte de toda a sua família. Pergunta-se: Será que o agente, embora dirigindo embriagado e em velocidade excessiva, não se importava com a ocorrência dos resultados? É claro que se importava” (Curso de Direito Penal – Parte Geral. 15ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013, vol. 1, p. 215).
Os tribunais superiores, majoritariamente, vinham entendendo que o crime cometido na condução de veículo automotor sob o efeito de álcool ou substância de efeitos análogos devia ser tratado como crime culposo (culpa consciente), não doloso (como dolo eventual), a não ser que as circunstâncias demonstrassem a assunção do risco de provocar o resultado. Foi o que decidiu uma vez mais o STJ ao julgar o REsp 1.689.173/SC (j. 21/11/2017).
Considerou-se que classificar como dolo eventual o fato de o motorista dirigir embriagado significa presumir o dolo e afastar a possibilidade de punição pela conduta culposa, que é factível. Ainda que a embriaguez possa se caracterizar como uma circunstância negativa na análise do elemento anímico, isso não faz com que todos os casos de acidentes de trânsito com motoristas embriagados sejam submetidos ao procedimento do júri. A análise deve ser baseada sempre no caso concreto:
“O estabelecimento de modelos extraídos da praxis que se mostrem rígidos e impliquem maior certeza da adequação típica por simples subsunção, a despeito da facilidade que ocasionam no exame dos casos cotidianos, podem suscitar desapego do magistrado aos fatos sobre os quais recairá a imputação delituosa, afastando, nessa medida, a incidência do impositivo direito penal do fato. Diferente seria a conclusão se, por exemplo, estivesse o condutor do automóvel dirigindo em velocidade muito acima do permitido, ou fazendo, propositalmente, zigue-zague na pista, ou fazendo sucessivas ultrapassagens perigosas, ou desrespeitando semáforos com sinal vermelho, postando seu veículo em rota de colisão com os demais apenas para assustá-los, ou passando por outros automóveis “tirando fino” e freando logo em seguida etc. Enfim, situações que permitissem ao menos suscitar a possível presença de um estado anímico compatível com o de quem anui com o resultado morte. Assim, não se afigura razoável atribuir a mesma reprovação a quem ingere uma dose de bebida alcoólica e em seguida dirige em veículo automotor, comparativamente àquele que, após embriagar-se completamente, conduz automóvel na via”.
Note-se que o fato julgado ocorreu, evidentemente, sob a vigência da redação anterior do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro, que, desde o dia 19 de abril, contém dispositivo que qualifica o homicídio culposo praticado na direção de veículo automotor nas situações em que o motorista está sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. O atual regramento, portanto, afasta definitivamente a possibilidade de atribuição automática do dolo eventual ao motorista embriagado, o que, no entanto, não significa que não se possa cogitar do homicídio doloso. As circunstâncias do caso concreto – repita-se – é que devem determinar a qualidade da imputação.
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