Começaremos hoje a analisar aspectos da Lei 13.655/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). De antemão alertamos que serão breves comentários, sem a pretensão de esgotar o tema, apenas trazer algumas reflexões iniciais.
Nesse primeiro texto, para contextualizar o leitor, lembramos que a lei em comento inseriu na LINDB dez novos artigos (20 ao 30). Serão eles o objeto do nosso estudo.
Começamos, por razões óbvias, com o artigo 20, que já nos leva a uma provocação: estaria o legislador dizendo: faça o que eu digo, mas não o que eu faço? Explico. Antes, vamos ler rapidamente o texto do referido artigo:
“Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.”
Talvez você, leitor perspicaz que é, já tenha entendido a provocação inicial.
De pronto, salta aos olhos a tentativa de evitar decisões baseadas em “valores jurídicos abstratos”. Ora, ora, logo você, legislador, apaixonado por conceitos “jurídicos abstratos”, distribuídos em nossas leis, inclusive na Constituição da República, pretende rebater decisões neles fundamentadas?
Vale lembrar alguns dos valores jurídicos abstratos presentes na Lei e na Constituição: dignidade da pessoa humana, livre iniciativa, moralidade, bem-estar, meio ambiente ecologicamente correto, homem ativo etc.
Aliás, a própria Lei 13.655/18 se contradiz e também traz inúmeras expressões jurídicas indeterminadas: “dificuldades reais do gestor” (art. 22), “relevante interesse geral” (art. 26), orientações gerais da época (art. 24), “solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais” (art. 26, inciso I) etc.
O objetivo inicial era, em tese, proibir “motivações decisórias vazias, apenas retóricas ou principiológicas, sem análise prévia de fatos e de impactos. Obriga o julgador a avaliar, na motivação, a partir de elementos idôneos coligidos no processo administrativo, judicial ou de controle, as consequências práticas de sua decisão.” (https://www.conjur.com.br/dl/parecer-juristas-rebatem-criticas.pdf)
É fato, sabemos, que virou praxe no Brasil a fundamentação de decisões escoradas basicamente em termos como interesse público, moralidade, dignidade da pessoa humana etc., conceitos muitas vezes utilizados desacompanhados de fundamentos sólidos baseados em dados e problemas concretos trazidos ao processo.
Não estamos a defender a não aplicação de referidos conceitos, mas sim que eles devem ser aplicados sempre acompanhados dos dados concretos trazidos ao processo, o que além de perfeitamente possível, torna a decisão verdadeiramente técnica.
Mas o dispositivo proibiu decisões fundamentadas nesses conceitos? Não! Mas exige que todas as vezes em que eles forem usados deverá ser feita uma análise prévia das consequências jurídicas práticas da decisão.
É aí que começa outro problema. O legislador passou a exigir um exercício de verdadeira futurologia do magistrado. Como saber, ou melhor, presumir, as consequências práticas? O próprio legislador cria leis sem saber as consequências práticas (ou a falta delas), o que acaba por gerar leis simbólicas ou prejudiciais justamente para aquilo que se pretendia evitar. E não para por aí.
O legislador pode ter inserido um verdadeiro “ovo de serpente” no texto legal, abrindo margem para que direitos sejam afastados com fundamento em consequências de caráter econômico (consequências “práticas”).
Diversas decisões apoiadas em valores jurídicos abstratos esbarrariam em consequências de cunho econômico: poder público condenado a realizar obras emergenciais em presídios (dignidade da pessoa humana); fornecimento de medicamentos (dignidade da pessoa humana + direito a saúde); obrigação de matricular em escolas e creches (direito a educação) etc.
Por fim, o parágrafo único do dispositivo em comento obriga que a motivação das decisões demonstre “a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa”, inclusive explicando as razões de não terem sido aplicadas possíveis alternativas.
Muitas críticas foram feitas a respeito da disposição do parágrafo único, sobretudo com relação à preocupação exagerada com a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa.