Como dispõe o art. 301 do CPP, qualquer do povo pode (não é obrigado) prender em flagrante. Esse direito decorre da compreensão de que todos os que vivem em sociedade têm interesse na repressão de práticas delituosas e, nesta circunstância, estão autorizados a prender. Já a autoridade policial e seus agentes devem fazê-lo (portanto são obrigados). Na primeira situação encontramos o chamado flagrante facultativo, já que, como indica o nome, o particular não é obrigado a prender. Já na segunda há o flagrante obrigatório ou compulsório, pois a autoridade, esta sim, dada a natureza de suas funções, tem a obrigação de prender em flagrante, sob pena de cometer, inclusive, na eventual inércia, crime de prevaricação, além de sujeitar-se a sanção na esfera administrativa.
Em sua grande maioria, os flagrantes são efetivados por agentes policiais que de alguma forma deparam-se com a ocorrência de crimes, seja em virtude de prévia investigação que acaba possibilitando a intervenção policial em crimes que estão sendo executados, seja pela constatação fortuita, normalmente por policiais militares ou guardas municipais.
Não são poucas as insurgências sobre o flagrante efetuado por guardas municipais. Isto porque, segundo o disposto no art. 144, § 8º, da CF/88, as guardas municipais são constituídas para a proteção de bens, serviços e instalações do município, não para a realização de patrulhamento ostensivo. Diante disso, muitos não se conformam com o fato de que guardas municipais atuem fora da estrita linha determinada pelo texto literal da Constituição.
O STJ tem decidido que nada impede os guardas municipais de efetuarem prisões em flagrante, pois, como dispõe o art. 301, qualquer do povo pode e as autoridades devem fazê-lo:
“Nos termos do artigo 301 do Código de Processo Penal, qualquer pessoa pode prender quem esteja em flagrante delito, de modo que inexiste óbice à realização do referido procedimento por guardas municipais, não havendo, portanto, que se falar em prova ilícita no caso em tela. Precedentes” (RHC 94.061/SP, j. 19/04/2018).
De fato, se qualquer pessoa que eventualmente se depare com alguma das situações do art. 302 do CPP pode efetuar a prisão do criminoso, não há razão lógica para impedir que o mesmo seja feito por guardas municipais, de resto tratados como agentes de segurança pública pelo ordenamento constitucional.
Parece-nos, no entanto, que as decisões no geral não têm abordado o real fundamento do inconformismo daqueles que sustentam a ilegalidade dessas prisões. Com efeito, o debate não se alicerça na possibilidade da prisão em si – que, como já ressaltamos, pode ser levada a efeito por qualquer pessoa –, mas na possibilidade de que guardas municipais efetuem diligências que eventualmente levem a uma prisão em flagrante sem saber que se trata de situação de flagrância.
Se, por exemplo, um cidadão comum constata que determinado indivíduo leva consigo um pacote de maconha, pode, sem dúvida, prendê-lo em flagrante e acionar as autoridades policiais. Este mesmo cidadão, no entanto, não pode abordar e revistar alguém aleatoriamente no intuito de apurar se esta pessoa traz consigo alguma substância ilícita. Mas e os guardas municipais, podem fazê-lo?
O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, tem decisões nas quais estabelece a ilegalidade da realização de diligências de busca pessoal por guardas municipais:
“É pacífico que, em situações de flagrante, os integrantes da Guarda Municipal, como qualquer um do povo, podem efetuar a detenção do infrator da lei penal, encaminhando-o na sequência para a autoridade policial competente, que se incumbirá de formalizar a prisão e lavrar o auto respectivo.
A propósito: “Pode a Guarda Municipal, inobstante sua atribuição constitucional (art. 144, § 8º, CF), bem como qualquer do povo, prender aquele encontrado em flagrante delito (art. 301, CPP).” (Superior Tribunal de Justiça, HC 365283/SP, Relator Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 24/11/2016).
No caso, todavia, os guardas municipais não estavam, propriamente, diante de uma situação de flagrante, quando resolveram abordar o peticionário.
Ao serem ouvidos em Juízo, os agentes públicos relataram que estavam realizando uma ronda rotineira, no bairro onde o acusado mora, quando avistaram um automóvel branco saindo da sua residência. Como já haviam recebido denúncias anônimas dando conta de que estaria envolvido com o tráfico de entorpecentes, decidiram abordar o veículo e, na revista que se seguiu, encontraram uma porção de droga em poder do acusado (fls. 107/108).
É notório que, na hipótese retratada nos autos, os guardas municipais não tinham nenhuma razão concreta para agir, na medida em que não presenciaram o réu efetuando a venda ou a entrega de estupefacientes a quem quer que seja, nem o avistaram escondendo ou consumindo substância entorpecente, ou mesmo praticando qualquer conduta que pudesse indicar, naquele exato momento, a prática da traficância.
Evidenciou-se, pois, que a ação dos agentes públicos decorreu de prévia desconfiança que recaía sobre por conta de denúncias anônimas que haviam chegado ao conhecimento dos funcionários da municipalidade, os quais, então, passaram a agir como se policiais fossem, realizando verdadeira abordagem investigativa, para a qual não estavam legitimados” (Revisão Criminal nº 0034551-84.2015.8.26.0000, j. 07/06/2017).
Há, no entanto, quem considere legítima a busca pessoal promovida por guardas municipais em alguém que se ache em condição de suspeição. É que, na qualidade de agentes de autoridade, os componentes das guardas devem ter o poder de submeter terceiro à revista pessoal, preenchidos, por óbvio, os requisitos que autorizem essa diligência, sem os quais poderá restar caracterizado o crime de abuso de autoridade. Essa impressão, argumenta-se, parece se reforçar a partir da edição da Lei n° 13.022/2014, que, em seu art. 5°, estabelece competências específicas que abrem espaço para que as guardas municipais atuem em colaboração com os demais órgãos de segurança. É o que se extrai dos incisos III, IV, V, XIV e XVI:
“Art. 5o São competências específicas das guardas municipais, respeitadas as competências dos órgãos federais e estaduais:
(…)
III – atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais;
IV – colaborar, de forma integrada com os órgãos de segurança pública, em ações conjuntas que contribuam com a paz social;
V – colaborar com a pacificação de conflitos que seus integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais das pessoas;
(…)
XIV – encaminhar ao delegado de polícia, diante de flagrante delito, o autor da infração, preservando o local do crime, quando possível e sempre que necessário;
(…)
XVI – desenvolver ações de prevenção primária à violência, isoladamente ou em conjunto com os demais órgãos da própria municipalidade, de outros Municípios ou das esferas estadual e federal”.
Não obstante seja muito comum que guardas municipais efetuem prisões em flagrante decorrentes de diligências de patrulhamento ostensivo, a legitimidade desse procedimento segue controversa. A própria Lei 13.022/14 está sendo questionada no STF por meio de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5156) exatamente sob o fundamento de que estabelece para as guardas municipais funções exclusivas das polícias. Tem-se também notícia de que o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou inconstitucional dispositivo de lei municipal da capital que estabelece como atribuição da guarda o exercício, na cidade de São Paulo, de “policiamento preventivo e comunitário, promovendo a mediação de conflitos e o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos” (ADI nº 154.743-0/0-00, j. em 10.12.2008). A decisão foi objeto de recurso extraordinário – ainda pendente de julgamento –, e, na decisão em que reconheceu a repercussão geral, o STF sinalizou que as leis disciplinando as atribuições das guardas municipais podem estar extrapolando os limites do art. 144, § 8º, da CF/88:
“Trata-se de saber o preciso alcance do art. 144, § 8º, da Lei Fundamental, segundo o qual os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
Em uma primeira guinada de visão, a reserva de lei prevista no dispositivo se afigura demasiado abrangente. Todavia, tal elastério hermenêutico em nada se coaduna com o sistema constitucional de repartição de competências, o que impõe ao intérprete a sua delimitação. Noutros termos, é preciso que esta Corte defina parâmetros objetivos e seguros que possam nortear o legislador local quando da edição das competências de suas Guardas Municipais.
Com efeito, não raro o legislador local, ao argumento de disciplinar a forma de proteção de seus bens, serviços e instalações, exorbita de seus limites constitucionais, ex vi do art. 30, I, da Lei Maior, usurpando competência residual do Estado (e.g., segurança pública). No limite, o que se está em jogo é a manutenção da própria higidez do Pacto Federativo”.
Estamos, portanto – e há muito –, diante de indesejável indefinição sobre um tema sensível, que repercute não só na organização e no planejamento das guardas municipais – que vêm sendo cada vez mais equipadas e estruturadas para o patrulhamento ostensivo –, mas sobretudo na validade das provas, que ficam sempre à mercê de interpretações variadas e sob o risco de invalidação. É preciso, por isso, estabelecer definitivamente e com precisão o campo de atuação das guardas municipais para evitar que se perpetue a dúvida e para viabilizar, em um setor importante como a segurança pública, o planejamento e a atuação adequados.
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