1) As provas inicialmente produzidas na esfera inquisitorial e reexaminadas na instrução criminal, com observância do contraditório e da ampla defesa, não violam o art. 155 do Código de Processo Penal – CPP visto que eventuais irregularidades ocorridas no inquérito policial não contaminam a ação penal dele decorrente.
A apreciação da prova é regida pelo chamado sistema da livre convicção ou da persuasão racional (ou da verdade real), adotado pelo legislador do CPP, conforme se depreende de sua Exposição de Motivos, da lavra do Ministro Francisco Campos: “todas as provas são relativas: nenhuma terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que a outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não ficará subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material” (item VII). Vê-se aqui, com efeito, a fusão de ambos os sistemas anteriormente adotados (tarifado e íntima convicção), preocupado o legislador em tomar-lhes o que há de melhor: de um lado, confere ampla liberdade de análise da prova ao juiz, que não fica limitado a nenhuma hierarquia previamente estabelecida, julgando segundo sua consciência e conforme a prova constante dos autos. De outra banda, porém, tal liberdade não se confunde com arbítrio e, por isso, criou o legislador uma série de restrições, cujo objetivo é o de impedir o despotismo judicial.
Uma das restrições, trazida no art. 155 do CPP, é relativa ao peso da prova produzida na fase investigatória. Segundo o dispositivo legal, é defeso ao juiz proferir sentença condenatória baseando-se exclusivamente em elementos colhidos na investigação:
“Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.
Como se pode notar, a lei não impede que o juiz considere as provas provenientes do inquérito policial, mas apenas impõe que tais provas sejam acompanhadas de elementos que, na instrução processual – na qual vigoram o contraditório e a ampla defesa –, corroborem-nas.
Por isso, caso o juiz utilize algum elemento do inquérito que possa ser reforçado por provas produzidas em juízo, não há nulidade:
“1. A condenação não está fundamentada apenas na prova colhida na fase inquisitorial, mas amparou-se também na prova testemunhal – não só dos policiais – produzida durante a instrução do processo, submetidas ao contraditório e a ampla defesa. 2. Entende este Superior Tribunal de Justiça que as provas inicialmente produzidas na esfera inquisitorial e, depois, reexaminadas na instrução criminal, com observância do contraditório e da ampla defesa, não ensejam a ofensa ao art. 155 do Código de Processo Penal. Precedentes” (AgRg nos EDcl no AREsp 1.006.059/SP, j. 20/03/2018).
No caso julgado, o juiz de primeiro grau havia feito referência, na sentença, a alguns aspectos do depoimento de uma testemunha que, em juízo, procurou inocentar o réu, mas, no inquérito, havia afirmado ter-lhe efetuado pagamentos pelo fornecimento de drogas. O STJ considerou válida a referência feita pelo juiz porque a condenação não se baseou somente nisso, mas também em outros depoimentos reproduzidos em juízo.
Note-se que o STJ também se orienta no sentido de que eventuais irregularidades existentes no inquérito policial não necessariamente contaminam a ação penal:
“(…) Por outro lado, sustenta a defesa que não teria sido respeitado o princípio da presunção de inocência no inquérito policial, diante das declarações prestadas pela Delegada. Em relação a tal questão – por mais censurável que possa ser a conduta da autoridade policial – no que tange o âmbito de exame do presente habeas corpus, impossível ignorar que eventual irregularidade na fase investigativa, ainda que venha a ser comprovada, não possui o condão de afetar a ação penal. Isso porque o inquérito policial é peça meramente informativa, que visa munir o órgão responsável pela acusação dos elementos necessários para o oferecimento da denúncia, não consistindo, portanto, em fase obrigatória da persecução penal (…)” (HC 446.977/SP, j. 22/05/2018).
Esta orientação não se aplica, evidentemente, se a irregularidade atingir um elemento do inquérito que influencie toda a investigação e a posterior ação penal, como no caso de uma interceptação telefônica ilegal da qual derivem as demais provas utilizadas para a formulação da denúncia e que serão de alguma forma repetidas em juízo.
2) Perícias e documentos produzidos na fase inquisitorial são revestidos de eficácia probatória sem a necessidade de serem repetidos no curso da ação penal por se sujeitarem ao contraditório diferido.
Vimos nos comentários à tese anterior que os elementos informativos colhidos na fase investigatória devem ser reproduzidos em juízo para que o magistrado possa neles fundamentar a sentença condenatória.
Há, no entanto, determinados procedimentos que não são reproduzidos, submetendo-se portanto ao denominado contraditório diferido, que não é exercido no momento da produção da prova, mas se segue a ela.
Trata-se, em suma, das provas cautelares, não repetíveis ou antecipadas. A razão para que não se exija a repetição é evidente: há provas que não permitem reprodução em juízo. Nesses casos, embora produzidas extrajudicialmente, pode o juiz basear nelas a sua decisão.
Imagine-se, com efeito, a perícia realizada em um portão a fim de apurar a prática de um crime de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo. Tal exame deverá ser realizado o mais rápido possível, tão logo se der a prática do crime. Não se exigirá que a vítima aguarde por meses, até um eventual processo criminal, para que nova perícia seja realizada e o portão seja submetido aos necessários reparos. A prova válida e eficaz será aquela produzida ainda na fase policial, embora – insistimos – sem contar com as garantias do contraditório e da ampla defesa, exigíveis, apenas, para o processo criminal.
Dá-se o mesmo em casos de homicídio, em que o exame necroscópico a ser sopesado pelo julgador é aquele realizado no âmbito administrativo, ainda durante o inquérito policial. Não se reclamará, decerto, que passados três ou quatro anos da prática do crime vá se reproduzir a perícia em juízo, em face, inclusive, do desaparecimento do material a ser levado a exame.
Por essas razões é que o STJ firmou a tese a respeito da dispensa da reprodução de exames periciais e também de provas documentais:
“Nos termos da jurisprudência desta Corte Superior, perícias e documentos são provas que não necessitam ser repetidas no curso da ação penal, podendo ser validamente utilizadas para a definição da culpa penal sem violação do art. 155 do Código de Processo Penal” (AgRg no REsp 1.522.716/SE, j. 20/03/2018).
3) A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo.
Pela redação original do art. 366 do CPP, o réu que, citado (pessoalmente ou por edital), não comparecesse, sem motivo justificado, teria decretada sua revelia, prosseguindo-se o curso normal do processo. Com a alteração promovida pela Lei 9.271/96, o dispositivo legal passou a estabelecer o seguinte:
“Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”.
Assim que editada a Lei 9.271/96, parte da doutrina se orientava no sentido de que, uma vez suspenso o processo, a antecipação da prova seria sempre cabível. Dizia-se que o esquecimento dos fatos era inevitável com o passar inexorável do tempo, ou seja, testemunhas e vítimas fatalmente não mais se lembrariam de detalhes do ocorrido, razão pela qual sua oitiva antecipada deveria ser sempre determinada. Conjecturava-se, ainda, com a possibilidade de a testemunha morrer, desaparecer, mudar de endereço, o que impediria sua posterior oitiva em juízo. Foi esse o entendimento inicial do STJ (RMS 7.995/SP, DJU de 20/04/98) e do STF (RT 743/632).
Mais adiante, entretanto, jurisprudência e doutrina evoluíram em sentido diverso, abandonando esse posicionamento para determinar que a produção antecipada de provas deveria ser fundamentada em elementos que concretamente indicassem sua necessidade. É este o teor da súmula n° 455 do STJ, a saber: “A decisão que determina a produção antecipada de provas com base no art. 366 do CPP deve ser concretamente fundamentada, não a justificando unicamente o mero decurso do tempo”. A súmula foi utilizada para fundamentar a presente tese e vem se fazendo presente em diversos julgamentos, como no seguinte, no qual se admitiu a produção antecipada diante das circunstâncias do caso posto em julgamento:
“ (…) 2. Nos termos do entendimento pacífico desta Corte, cristalizado na súmula n.º 455, a produção antecipada de provas, com base no art. 366 do Código de Processo Penal, deve ser concretamente fundamentada, não bastando a mera alegação de que o decurso do tempo poderá levar as testemunhas ao esquecimento. 3. In casu, não há flagrante ilegalidade a ser reconhecida, por trata-se de situação excepcional em que o magistrado levou em consideração, para determinar a produção antecipada da prova, não apenas a gravidade do crime e o decurso do tempo, mas o real fato de que há vítima e testemunha que são caminhoneiras e viajam constantemente, podendo ficar por longos períodos fora da cidade, além de outra vítima natural de outro Estado da federação, bem como policiais”.
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