No histórico de repressão à criminalidade organizada no Brasil, a revogada Lei 9.034/95 foi a primeira a dispor sobre a utilização de meios operacionais de prevenção e repressão. Não obstante, a louvável iniciativa veio acompanhada de falhas, chamando a atenção a ausência de definição de seu próprio objeto: o que viria a ser organização criminosa.
A omissão legislativa incentivava os operadores da lei a emprestar a definição dada pela Convenção de Palermo (sobre criminalidade transnacional), assim redigida: “(…) grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material”.
Nessa esteira, a Quinta Turma do STJ chegou a considerar viável a acusação por lavagem de dinheiro em que a conduta antecedente consistira em integrar uma organização criminosa:
“Capitulação da conduta no inciso VII do art. 1º da Lei nº 9.613/98, que não requer nenhum crime antecedente específico para efeito da configuração do crime de lavagem de dinheiro, bastando que seja praticado por organização criminosa, sendo esta disciplinada no art. 1º da Lei nº 9.034/95, com a redação dada pela Lei nº 10.217/2001, c.c. o Decreto Legislativo nº 231, de 29 de maio de 2003, que ratificou a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, promulgada pelo Decreto nº 5.015, de 12 de março de 2004. Precedente” (HC 77.771/SP, j. 30/05/2008).
Com efeito, a Lei 9.613/98 estabelecia, antes da alteração promovida pela Lei 12.683/12, um rol exaustivo de antecedentes à lavagem, no qual constava a organização criminosa. Na falta de definição específica no direito interno, utilizava-se o disposto na Convenção de Palermo para caracterizar a organização e, assim, imputar o crime acessório.
A decisão não escapou das críticas de importante setor da doutrina. Luiz Flávio GomesDefinição de crime organizado e a Convenção de Palermo. Disponível em: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/1060739/definicao-de-crime-organizado-e-a-convencao-de-palermo, de forma pioneira, logo anunciou três vícios estampados no citado acórdão: 1º) a definição de crime organizado contida na Convenção de Palermo é muito ampla, genérica e viola a garantia da taxatividade (ou de certeza), que é uma das garantias emanadas do princípio da legalidade; 2º) a definição dada vale para nossas relações com o direito internacional, não com o direito interno; 3º) definições dadas pelas convenções ou tratados internacionais jamais valem para reger nossas relações com o Direito Penal interno em razão da exigência do princípio da democracia (ou garantia da lex populi).
A lição crítica foi acolhida pelo STF no HC 96.007/SP, oportunidade em que o min. Marco Aurélio definiu como atípica a conduta atribuída a quem houvesse cometido crime de lavagem de dinheiro tendo como fundamento a hipótese prevista no artigo 1º, inciso VII (organização criminosa), da Lei 9.613/98. De acordo com o voto do ministro, a atipicidade decorria de inexistir no ordenamento jurídico definição do crime de organização criminosa, que era conceituada apenas na Convenção de Palermo, introduzida no Brasil “por meio de simples Decreto”.
Posteriormente, a Lei 12.694/12, que dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas, finalmente definiu o que vinham a ser essas organizações, mas também não as tipificou. Somente com a entrada em vigor da Lei 12.850/13 é que, além de rever o conceito anterior, o legislador definiu o crime de organização criminosa.
Com fundamento nesse histórico, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região deferiu liminar em revisão criminal ajuizada para afastar a condenação por crime de lavagem de dinheiro cometido anteriormente à entrada em vigor da Lei 12.850/13 e à modificação introduzida pela Lei 12.683/12 na disciplina da lavagem.
No caso, o agente foi condenado a dez anos e oito meses de reclusão por lavar dinheiro subtraído na famosa ação contra o Banco Central no Estado do Ceará. A conduta de lavagem ocorreu em 2005, e o juízo federal de primeiro grau condenou o réu utilizando o conceito de organização criminosa conferido pela já mencionada convenção internacional.
A sentença foi mantida no julgamento da apelação pelo mesmo TRF-5, que, após o trânsito em julgado e o início da execução da pena, foi novamente provocado, por meio de revisão criminal, para que o cumprimento da pena fosse suspenso sob o fundamento de que a sentença condenatória contraria o texto expresso da lei penal (art. 621, inc. I, do CPP).
O desembargador relator deferiu o pedido liminar “porque parece ser atípica a conduta prevista no art. 1°, VII, da Lei n° 9.613/98, antes das alterações promovidas pela Lei n° 12.683/2012 (lavagem de dinheiro tendo como antecedente crime praticado por organização criminosa), por ausência de descrição normativa do conceito de organização criminosa, que somente veio a ser tipificado pela Lei nº 12.850/2013 (após o fato criminoso objeto destes autos), impedindo, portanto, o reconhecimento dessa figura como antecedente da lavagem de dinheiro, em observância ao princípio da anterioridade legal (art. 5°, XXXIX, da CF e no art. 1° do CP)”.
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