A Justiça Federal absolveu há alguns dias um réu acusado de ter cometido tráfico internacional de drogas. O fundamento: inexigibilidade de conduta diversa.
Segundo a sentença, o réu, um equatoriano proveniente da Espanha, foi surpreendido no Aeroporto Internacional de Brasília no momento em que transportaria mais de 5kg de cocaína a Portugal. Interrogado, confessou o crime e afirmou que passava por severas restrições financeiras, razão por que se pôs a viajar ao Brasil, coletar a droga e embarcar em direção a Portugal, tudo em troca de dez mil euros.
O juiz considerou não ter havido o crime por exclusão da culpabilidade do agente, pois, “diante de suas circunstâncias pessoais e familiares, não poderia ter agido de outro modo. Atuou com vistas a prover o sustento de sua família (esposa e filhos)”. Considerou também que o agente “foi apenas recrutado como transportador da mercadoria, ou seja, ‘a mula’, sem ter nenhum envolvimento direto com o tráfico de drogas, nem tampouco ter dimensão da ilicitude que cometia”.
A decisão, todavia, não parece acertada, com o devido respeito.
Em brevíssima síntese – que fazemos apenas para bem situar o leitor –, podemos dizer que a orientação amplamente majoritária conceitua o crime como sendo o fato típico, ilícito e culpável.
A culpabilidade – que nos interessa neste momento – é, por sua vez, composta de três elementos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.
No campo da exigibilidade de conduta diversa, pode-se dizer que para a reprovação social não basta que o autor do fato lesivo seja imputável e tenha possibilidade de lhe conhecer o caráter ilícito. Exige-se, ainda, que nas circunstâncias tenha a possibilidade de atuar de acordo com o ordenamento jurídico. Explica Fernando de Almeida PedrosoDireito Penal - Parte Geral. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 569:
“O cometimento de fato típico e antijurídico, por agente imputável que procedeu com dolo ou culpa, de nada vale em termos penais se dele não era exigível, nas circunstâncias em que atuou, comportamento diferente. Não se pode formular um juízo de censura ou reprovação, destarte, se do sujeito ativo era inviável requestar outra conduta.”
Este elemento da culpabilidade é excluído pela coação moral irresistível e pela obediência hierárquica. Além disso, a inexigibilidade de conduta diversa tem servido como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
As dirimentes supralegais se fundamentam, basicamente, no fato de que a exigibilidade de conduta diversa é característica fundamental da culpabilidade, motivo pelo qual não é admissível que se estabeleça a responsabilidade penal em decorrência de comportamentos humanos inevitáveis. A inexigibilidade de conduta diversa aparece, portanto, como a válvula de escape para as dirimentes supralegais, porque se percebeu, sem muita dificuldade, que, por mais previdente que seja, o legislador não consegue prever todos os casos em que será inexigível do agente outra conduta, sendo perfeitamente possível, diante das circunstâncias do caso concreto, que se revelem situações não antevistas.
Foi este, portanto, o fundamento da sentença absolutória mencionada no início. Para o juiz, o fato de o agente enfrentar uma crise financeira, em razão da qual não podia suprir todas as necessidades de sua família, impôs-lhe somente um caminho: realizar a viagem na qual transportaria a droga.
Trata-se, no entanto, de descaracterização e inadmissível banalização de algo do qual se deve lançar mão apenas em circunstâncias excepcionalíssimas, em que se demonstre cabalmente que em determinada situação não havia possibilidade de evitar a prática do ato ilícito.
A inexigibilidade de conduta diversa jamais deve ser analisada sob prisma da saída mais fácil (comodidade). Não pode ser considerado inculpável o agente que, em uma situação crítica, tendo a opção de se desviar do ilícito, vai a seu encontro porque essa solução lhe parece mais simples.
Culpabilidade não é (e não deve ser) tratada como algo banal, a ser descartado ao menor sinal de fatores que não obstante tendam a abalar o livre arbítrio, não o eliminam.
Em sua sempre bem-vinda lição, Francisco de Assis ToledoPrincípios Básicos de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva. 2002, p. 328 trata a inexigibilidade de conduta diversa como a mais importante causa de exclusão da culpabilidade e como verdadeiro princípio de Direito Penal. Por isso mesmo – acrescentamos –, deve ser analisada com a necessária cautela para evitar absolvições a esmo, baseadas em simples conjecturas que acabam resultando em tratamento benevolente a autores de condutas graves que poderiam muito bem ser evitadas, como de fato o são pela esmagadora maioria das pessoas. No mais, Assis Toledo chega “à conclusão de que não age culpavelmente – nem deve ser portanto penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso.”
Destaque para a expressão utilizada pelo autor: “dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência”.
Ora, se há algo que a experiência humana nos revela é que, mesmo diante de dificuldades, a maioria das pessoas resiste a situações como aquela à qual se entregou o agente absolvido pela Justiça Federal. Afinal, quantas pessoas em situação paupérrima, mesmo miserável, simplesmente aceitariam integrar uma rede de comércio internacional de drogas? Pouquíssimas, sem nenhuma dúvida.
A inexigibilidade de conduta diversa tem sido cada vez mais aventada na defesa de acusados da prática de determinados delitos. São recorrentes, por exemplo, pretensões de exclusão de culpabilidade no crime do art. 168-A do CP (apropriação indébita previdenciária) sob o argumento de que crises econômicas impossibilitam o repasse das contribuições previdenciárias descontadas dos funcionários. O tema tem sido tratado com rigor pela jurisprudência, que, com acerto, admite a dirimente apenas em situações de precária situação financeira:
“(…) 6. Não merece acolhida a tese de inexigibilidade de conduta diversa, em razão de dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa, pois não restou comprovada a precária situação econômica da empresa à época dos fatos, sendo insuficiente a prova testemunhal e os documentos trazidos. (…)” (TRF3 – Apelação Criminal 61.522/SP, j. 19/06/2018)
E, note-se, a restrição se aplica mesmo diante do fato de que, no caso da apropriação, a inexigibilidade de conduta diversa é incomparavelmente mais verossímil do que na situação em que alguém se põe a transportar, por diversos países, uma mala carregada de drogas.
A conduta de tráfico transnacional, de resto, é muito grave e complexa; pressupõe ampla organização e concatenamento da parte de todos os envolvidos. Só por ingenuidade se pode inferir que alguém seja recrutado aleatoriamente, sem nenhuma relação prévia com pessoa envolvida na operação criminosa (afinal de contas, traficantes internacionais não anunciam em jornais para recrutar interessados no transporte de drogas).
Por isso, também não procede o argumento de que o transportador de drogas não tem envolvimento direto com o tráfico por ter servido “somente como mula”. Ora, a conduta de quem, numa operação internacional, transporta a droga entre os diversos países não só é diretamente ligada ao tráfico como, por motivos mais do que óbvios, é parte crucial de toda a operação, pois, sem ela, o intento criminoso simplesmente não se perfaz em sua plenitude.
O tratamento menos severo ao transportador da droga contraria, ademais, a letra expressa da Lei 11.343/06, que, no caput do art. 33, equipara o transporte a diversas outras condutas como a preparação, a importação, a exportação, a guarda e a venda. Logo, o transportador é induvidosamente um agente direto do tráfico, e como traficante deve ser tratado.
Decisões como a que acabamos de comentar devem ser desencorajadas. Não é preciso muito esforço para concluir que se trata de um imenso incentivo a práticas criminosas semelhantes, que podem ser cada vez mais intentadas diante da perspectiva de benevolência dos órgãos de justiça criminal. E criminosos – sabemos todos – são no geral movidos pela ousadia (alguém de caráter hesitante dificilmente concordaria em transportar drogas num voo internacional, nem tampouco participaria de um assalto a banco…). Se não encontra limites, a ousadia tende a se exacerbar. E se hoje admitirmos, sob a falsa impressão de que o tráfico de drogas é um crime menos grave (porque normalmente não se lança mão de violência em suas operações finais), que traficantes sejam tratados com condescendência pela simples alegação de problemas financeiros, não poderemos nos espantar quando amanhã o mesmo caminho for tomado a favor de assaltantes violentos.
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