No dia 06 de setembro, durante um ato de campanha da cidade de Juiz de Fora, um indivíduo atacou com uma faca o candidato à presidência da República Jair Bolsonaro, que acabou gravemente ferido no abdômen. O criminoso foi detido imediatamente e a Polícia Federal iniciou investigação para apurar as circunstâncias do ataque (se outras pessoas auxiliaram, em que condições estava o agente na cidade, com quem se comunicara nos dias anteriores ao crime, etc.).
Na lavratura do flagrante, a autoridade policial subsumiu a conduta ao art. 20 da Lei de Segurança Nacional, que assim dispõe:
“Art. 20 – Devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas.
Pena: reclusão, de 3 a 10 anos.
Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até o dobro; se resulta morte, aumenta-se até o triplo.”
O flagrante foi remetido à Justiça Federal em Juiz de Fora e, com base na imputação inicial, decretou-se a prisão preventiva e determinou-se a transferência do agente para um presídio federal.
É claro que a tipificação mais segura será feita no momento em que o Ministério Público oferecer a denúncia baseando-se na totalidade dos elementos colhidos na investigação. Fazemos aqui, no entanto, um exercício hipotético baseado nas informações até o momento divulgadas na imprensa.
Temos, neste momento, duas opiniões correntes: a de que se trata efetivamente de crime contra a segurança nacional e a de que, na realidade, trata-se de tentativa de homicídio.
Os que advogam a tese de crime contra a segurança nacional se baseiam no fato de que atentar contra a vida de um candidato à presidência da República dias antes das eleições – especialmente diante da real possibilidade de vitória, segundo pesquisas divulgadas – é um atentado contra o regime representativo e democrático, que tem nas eleições um de seus pilares inabaláveis.
Os defensores da tese de que se trata de homicídio argumentam que a aplicação da Lei de Segurança Nacional pressupõe inquestionável motivação política e real possibilidade de lesão a um dos bens mencionados no art. 1º da referida lei: integridade territorial, soberania nacional, regime representativo e democrático, Federação e Estado de Direito e chefes dos Poderes da União, o que não se identifica no ataque perpetrado contra o candidato.
Seja como for, o que nos propomos a fazer é analisar a quem compete o julgamento: à Justiça Federal ou à Justiça Estadual?
Se a imputação realmente se firmar na Lei de Segurança Nacional, a competência é sem dúvida nenhuma da Justiça Federal, a quem cabe julgar, por expressa disposição constitucional, os crimes de natureza política:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(…)
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”
É político, com efeito, o crime que, para além de tipificado na Lei 7.170/83, é cometido com lesão ou com a intenção de lesar ou de expor a perigo os bens mencionados no art. 1º da mesma lei.
Se, no entanto, a conduta se subsumir ao tipo do art. 121 do Código Penal, a competência deve recair na Justiça Estadual.
Algumas vozes se levantam no sentido de que, ainda neste caso, a competência deve ser da Justiça Federal porque as eleições presidenciais são de responsabilidade do Tribunal Superior Eleitoral, que exerce jurisdição nacional e tem absoluto interesse em garantir que o pleito se desenvolva em condições de normalidade.
Além disso, a competência da Justiça Federal se justificaria pelo fato de que a segurança dos candidatos à presidência da República é de responsabilidade da União, como dispõe o art. 2º da Lei 7.474/86:
“Art 2º O Ministério da Justiça responsabilizar-se-á pela segurança dos candidatos à Presidência da República, a partir da homologação em convenção partidária.”
Este artigo é complementado pelo art. 10 do Decreto 6.381/08, que dispõe:
“Art. 10. Os candidatos à Presidência da República terão direito a segurança pessoal, exercida por agentes da Polícia Federal, a partir da homologação da respectiva candidatura em convenção partidária.”
Com todo o respeito, não podemos partilhar dessa opinião.
A competência criminal da Justiça Federal vem disciplinada no art. 109 da CF/88, cujo inciso IV – já transcrito acima – faz menção a infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.
No caso do ataque ao candidato, a lesão a bens e serviços da União está de plano e inegavelmente descartada. E, a nosso ver, também não há interesse da União a ser tutelado.
Para que se justifique a competência da Justiça Federal, a causa deve ter utilidade para a União, deve ser relativa a fatos que de alguma forma repercutam no efetivo exercício de suas competências constitucionais, tanto no plano interno quanto no internacional. É, por exemplo, interesse da União a malversação de verbas federais (que não são bens da União) nos estados e municípios:
“O fato de a verba repassada ser proveniente de recursos federais fiscalizáveis pelo TCU basta para afirmar a existência de interesse da União e a consequente competência da Justiça Federal para apreciar os autos. Precedentes da Suprema Corte.” (STJ – RHC 38.539/DF, j. 16/08/2018)
No caso do ataque contra a vida de candidatos à presidência, o fato de que o Tribunal Superior Eleitoral é responsável pelas eleições presidenciais e de que o Ministério da Justiça se incumbe da segurança dos candidatos não atrai interesse da União, pois a conduta criminosa não tem relação com suas competências constitucionais. Pode-se admitir, no máximo, a existência de um interesse reflexo, que potencialmente existe em incontáveis fatos hodiernamente julgados pela Justiça Estadual.
A vingar a tese contrária, um número imenso de crimes passaria a ser de competência federal simplesmente porque se identifica um interesse remoto da União. Seria o caso, por exemplo, dos crimes cometidos no Rio de Janeiro enquanto vigora a intervenção federal na segurança pública daquela unidade da federação. De fato, se, como determina art. 2º do Decreto 9.288/18, a intervenção está a cargo de um general do Exército, que por sua vez subordina-se ao presidente da República, poder-se-ia cogitar de interesse da União em todos os delitos que as forças de segurança não pudessem evitar. Seria algo deveras inusitado e contrário à natureza da competência federal.
Ainda nessa linha, lembramos da existência da Lei 10.446/02, que dispõe sobre infrações penais de repercussão interestadual ou internacional que exigem repressão uniforme e que podem ser investigadas pela Polícia Federal. A lei estabelece que o Departamento de Polícia Federal pode investigar, dentre outros crimes, furtos e roubos cometidos contra instituições financeiras quando houver indícios da atuação de associação criminosa em mais de um estado da federação. Se, por exemplo, uma organização criminosa atua cometendo tais crimes em diversos estados do sul e do sudeste, a investigação pode ser mais eficiente se levada a cabo no âmbito federal. Isso, no entanto, não faz com que esses crimes patrimoniais sejam julgados pela Justiça Federal, pois, no caso, o interesse da União no desempenho dos trabalhos da Polícia Federal é reflexo, não relacionado com o exercício de suas competências constitucionais.
Por isso, pensamos que, no caso do ataque contra Bolsonaro, eventual acusação por crime de homicídio deve ser processada perante o Tribunal do Júri estadual, juízo natural diante da ausência de interesse direto da União que justifique a atuação da Justiça Federal.
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