O art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal dispõe que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. Trata-se de um dos corolários do princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual o agente não é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
A regra é de aplicação obrigatória no interrogatório, que pode ser definido como a resposta dada pelo investigado ou pelo acusado às perguntas que lhe são formuladas para esclarecimento do fato delituoso e de suas circunstâncias.
As testemunhas, por outro lado, são obrigadas a falar, e a falar a verdade, como se extrai do texto expresso do art. 203 do CPP: “A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado (…)”. Não é possível que, indagada a respeito das circunstâncias do fato que tenha presenciado, a testemunha se cale, tanto que o crime de falso testemunho se tipifica não só na situação em que se faz afirmação falsa, mas também naquela em que se nega ou se cala a verdade.
Mas quer isto dizer que, uma vez chamado na qualidade de testemunha, o indivíduo deve responder a toda e qualquer indagação que lhe é dirigida? À primeira vista, e tendo em conta que o texto literal do art. 5º, inciso LXIII se refere apenas ao preso, a resposta seria positiva e, neste passo, somente o interrogado poderia se negar a responder às perguntas.
Ocorre, no entanto, que a obrigação de prestar o depoimento encontra certa mitigação diante de indagações em cujas respostas a testemunha possa se incriminar. Em inúmeras decisões, o Supremo Tribunal Federal garantiu que depoentes em comissões parlamentares de inquérito se mantivessem em silêncio diante de perguntas que lhes pudessem ser de alguma forma prejudiciais. E o mesmo Supremo tem proferido decisões nas quais faz referência à ilicitude da prova colhida em depoimentos testemunhais sem a observância do direito à não autoincriminação:
“Recebimento da denúncia. 3. Alegação de nulidade do processo por ofensa ao princípio do nemo tenetur se detegere em razão da confissão da autoria durante a inquirição como testemunha. 4. Denúncia recebida apenas com base em elementos obtidos na confissão. 5. Garantias da ampla defesa e do contraditório no curso da ação penal. 6. Recurso provido.” (RHC 122.279/RJ, j. 12/08/2014)
“I – É jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal Federal a possibilidade do investigado ou acusado permanecer em silêncio, evitando-se a auto-incriminação. II – O depoimento da paciente, ouvida como testemunha na fase inquisitorial, foi colhido sem a observância do seu direito de permanecer em silêncio. II – Ordem concedida.” (HC 136.331/RS, j. 13/06/2017)
Não destoa o Superior Tribunal de Justiça, que há alguns dias concedeu parcialmente a ordem no habeas corpus 330.559/SC por considerar ilícita a colheita do depoimento de um adolescente em processo criminal.
No caso julgado, o adolescente havia sido abordado juntamente com um maior de idade em um veículo no qual havia drogas. O imputável foi processado e condenado por tráfico de drogas, sendo que, na instrução, o adolescente havia sido arrolado como testemunha. Ao ser indagado se a droga apreendida era sua (imputação que havia sido feita pelo acusado), o adolescente perguntou ao magistrado que presidia a audiência se podia exercer o direito de permanecer em silêncio, mas foi advertido de que estava sendo ouvido na qualidade de testemunha e, caso se negasse a responder, poderia ser apreendido. Diante disso, respondeu que a droga pertencia ao acusado.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina entendeu que de fato o adolescente estava sendo ouvido como testemunha, razão por que não poderia se calar. Mas o STJ decidiu que, tratando-se de pergunta que poderia prejudicar o depoente, vedava-se ao magistrado negar-lhe o direito ao silêncio e adverti-lo de que poderia ser apreendido caso não respondesse:
“Na verdade, qualquer pessoa, ao confrontar-se ante o Estado em atividade persecutória deste, deve ter a proteção jurídica contra a tentativa de forçar ou induzir a produção da prova favorável ao interesse punitivo estatal.
Na lição de João Claudio COUCEIRO, “as testemunhas podem invocar o direito ao silêncio, quer para não se auto-incriminar, quer para escapar da responsabilidade civil e administrativa. […] Tal direito é amplo, e não depende da existência de procedimento investigativo para apurar os fatos em que a testemunha estava envolvida …” (A garantia constitucional do direito ao silêncio. São Paulo: RT, 2004, p. 220).
Mais especificamente sobre a oitiva de adolescentes, pontua COUCEIRO, que “o adolescente deverá ser lembrado, assim, de seu direito de permanecer em silêncio toda vez que for ouvido por qualquer autoridade (pouco importando seja ela policial, membro do Ministério Público ou judicial), … (idem, p. 260).
Essa é a compreensão moderna, não encontrada, por óbvio, na regra antiga, já presente no Direito Romano, do nemo tenetur se detegere, e que vem sendo aperfeiçoada ao longo dos séculos, sobretudo a partir das ampliações conceituais que lhe vêm dando as Cortes Constitucionais de diversos países centrais.
(…)
Não pode restar nenhuma dúvida, portanto, de que não apenas o preso, mas qualquer pessoa que seja chamada a depor perante agente estatal, não pode ser compelida, sob qualquer meio, a prestar declarações, máxime quando, como na hipótese sob análise, expressamente manifestou o desejo de permanecer em silêncio, motivo por que o juiz lhe endereçou a advertência de que, “se não falasse a verdade” poderia “ser novamente apreendido” (fl. 398).”
Para o STJ, portanto, a advertência feita ao depoente no lugar de lhe garantir o direito ao silêncio tornou viciado o depoimento na origem, pois as únicas opções eram a autoincriminação ou a imputação da responsabilidade ao acusado no processo.
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