A Lei 13.718/18 inseriu no Código Penal o art. 215-A, que pune, com reclusão de um a cinco anos, a importunação sexual, consistente em “Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”.
Antes do art. 215-A, condutas relativas à importunação de conotação sexual normalmente se subsumiam, conforme o caso, ao art. 61 ou ao art. 65 do Decreto-lei 3.688/41. O art. 61, revogado expressamente pela Lei 13.718/18, consistia em importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor. Já o art. 65 pune a conduta de molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável. A conduta tipificada neste dispositivo não tem necessariamente conotação sexual, razão por que não houve revogação, a não ser quanto a condutas que consistam em importunação sexual, que também passam a ser subsumir ao art. 215-A.
Não obstante a existência dos tipos contravencionais, não eram raras, diante das circunstâncias dos casos concretos, as controvérsias a respeito da correta tipificação. Muitas vezes a importunação que consistisse em algum tipo de contato físico era, ao menos inicialmente, classificada como estupro, como ocorreu – com grande repercussão – no caso do indivíduo que ejaculou em uma passageira dentro de um veículo de transporte coletivo na cidade de São Paulo. Preso em flagrante por estupro, logo foi posto em liberdade sob o argumento de que sua conduta consistira em importunação ofensiva ao pudor. Em decorrência da decisão, instalou-se intenso debate sobre a tipificação mais adequada, o que certamente contribuiu para que o legislador adotasse solução intermediária por meio do art. 215-A.
Recentemente, o STJ concedeu de ofício habeas corpusNúmero não divulgado em razão de segredo de justiça. para desclassificar a conduta do crime de estupro para o novo tipo da importunação sexual. Considerando, no entanto, as circunstâncias relatadas na decisão, parece-nos ter havido equívoco.
O agente havia sido condenado, em primeira instância, pela prática do crime de estupro por ter apalpado, por cima da roupa, os seios de uma mulher. Em apelação, o Tribunal de Justiça desclassificou a conduta para a contravenção do art. 65 do Decreto-lei 3.688/41, razão pela qual o Ministério Público interpôs recurso especial para que o STJ restabelecesse a sentença condenatória pelo crime sexual.
Em decisão monocrática, a ministra Laurita Vaz deu provimento ao recurso para restabelecer a sentença e, portanto, a condenação por estupro. A defesa recorreu ao colegiado, que chegou à conclusão de que a conduta, embora reprovável, não poderia se igualar ao estupro, que pressupõe o emprego de violência ou de grave ameaça, nenhuma das quais relatada pela vítima. Em razão disso, decidiu-se conceder habeas corpus de ofício com desclassificação da conduta para o novo art. 215-A do Código Penal sob o argumento de que se trata de retroatividade benéfica.
Ocorre que o art. 215-A é, na realidade, novatio legis in pejus, pois tornou criminosas condutas antes restritas à Lei de Contravenções Penais. É princípio básico de Direito Penal – e direito fundamental estabelecido no art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal – que a lei penal não retroage a não ser para beneficiar o réu.
No caso julgado, o STJ considerou não caracterizado o crime de estupro porque a conduta, cometida antes da entrada em vigor da Lei 13.718/18, não trouxera elementares do tipo do art. 213: violência ou grave ameaça. Ora, se a inexistência de elementares faz com que não se caracterize o estupro, analisa-se a lei em vigor à época dos fatos para buscar a tipificação adequada, que, no caso, seria a contravenção. Cotejada a figura da contravenção com a atual disciplina legal, conclui-se que o tratamento dispensado à conduta cometida pelo agente se recrudesceu, motivo pelo qual é equivocada a incidência da nova lei na qualidade de retroatividade benéfica.
Se estivéssemos diante de situação em que o tipo do estupro admitisse condutas de importunação, sem violência ou ameaça, e a Lei 13.718/18 tivesse inserido no Código Penal o art. 215-A para conferir a tais condutas tratamento distinto e menos severo, aí sim poderíamos cogitar a retroatividade benéfica. Mas, definitivamente, não é este o caso.