1) O simples fato de possuir ou portar munição caracteriza os delitos previstos nos arts. 12, 14 e 16 da Lei n. 10.826/2003, por se tratar de crime de perigo abstrato e de mera conduta, sendo prescindível a demonstração de lesão ou de perigo concreto ao bem jurídico tutelado, que é a incolumidade pública.
Esta tese vem na esteira de outras que compõem a primeira série de teses sobre o Estatuto do Desarmamento, já comentadas aqui. A diferença é que, neste caso, menciona-se expressamente apenas a posse e o porte de munição, tanto de uso permitido quanto de uso restrito.
São inúmeros os julgados nos quais se discute se a posse e o porte de munição justificam a punição, pois, sem o artefato capaz de efetuar prontamente o disparo, não haveria, segundo se sustenta, ofensa ao bem jurídico tutelado, tendo em vista que nada é possível fazer com a munição.
No entanto, a orientação firmada pelo STJ indica que, tratando-se de crime de perigo abstrato, dispensa-se a comprovação de que a conduta provocou dano ou submeteu ou poderia submeter alguém a perigo direto:
“III – O entendimento desta Corte de Justiça é assente no sentido de que o porte de munição – in casu, de uso restrito -, em desacordo com as normas de regência, por se tratar de crime de perigo abstrato e de mera conduta, é suficiente para a configuração do delito tipificado no art. 16, da Lei 10.826/03, pois o que se pretende é o resguardo da segurança pública e da paz social.
IV – Considerando a fundamentação exarada no v. acórdão, não há flagrante ilegalidade a ponto de ensejar a conclusão pela atipicidade material da conduta praticada ou pela incidência do princípio da insignificância, independentemente de ter havido ou não a apreensão da arma ou da pequena quantidade de munição apreendida com o paciente. Precedentes.” (RHC 102.406/BA, j. 04/10/2018)
2) A apreensão de ínfima quantidade de munição desacompanhada de arma de fogo, excepcionalmente, a depender da análise do caso concreto, pode levar ao reconhecimento de atipicidade da conduta, diante da ausência de exposição de risco ao bem jurídico tutelado pela norma.
Como vimos na tese nº 1, a posse ou o porte de munição desacompanhada de arma de fogo é suficiente para caracterizar o crime. Inicialmente, esta orientação servia para afastar a possibilidade de que se reconhecesse a atipicidade material da conduta nos casos em que o agente fosse surpreendido com poucos projéteis em seu poder.
A partir de decisão tomada pelo STF, no entanto, o STJ passou a aplicar o princípio da insignificância nas situações em que a conduta, analisada concretamente, não é capaz sequer de gerar o perigo abstrato que caracteriza o tipo penal:
“1. O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que “o crime de posse ou porte irregular de munição de uso permitido, independentemente da quantidade, e ainda que desacompanhada da respectiva arma de fogo, é delito de perigo abstrato, sendo punido antes mesmo que represente qualquer lesão ou perigo concreto de lesão, não havendo que se falar em atipicidade material da conduta”. (AgRg no RHC 86.862/SP, Relator Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 20/02/2018, DJe 28/02/2018).
2. No entanto, o Supremo Tribunal Federal, em recente julgado, analisando as circunstâncias do caso concreto, reconheceu ser possível aplicar a bagatela na hipótese de apreensão de apenas uma munição de uso permitido desacompanhada de arma de fogo, tendo concluído pela total inexistência de perigo à incolumidade pública (RHC 143.449/MS, Rel. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, SEGUNDA Turma, DJe 9/10/2017).
3. Hipótese em que, embora formalmente típica, a conduta de possuir apenas três munições, destituídas de potencialidade lesiva, já que desacompanhadas de armamento capaz de deflagrá-las, não enseja perigo de lesão ou probabilidade de dano aos bens jurídicos tutelados, permitindo-se o reconhecimento da atipicidade material da conduta.” (AgRg no HC 431.736/RS, j. 16/10/2018)
3) Demonstrada por laudo pericial a inaptidão da arma de fogo para o disparo, é atípica a conduta de portar ou de possuir arma de fogo, diante da ausência de afetação do bem jurídico incolumidade pública, tratando-se de crime impossível pela ineficácia absoluta do meio.
Nos comentários à tese nº 2 da primeira série de teses sobre o Estatuto do Desarmamento, vimos que o crime de porte ilegal de arma de fogo se caracteriza pela simples constatação da prática de uma das condutas típicas, dispensada a realização de exame pericial que ateste a eficácia do objeto apreendido.
Na ocasião, criticamos aquela orientação sob o argumento de que, tal como ocorre no crime de tráfico de drogas, o exame pericial não é realizado para que se demonstre a geração de perigo da conduta, mas para que se comprove a materialidade delitiva. Esta tese evidencia o equívoco da anterior ao estabelecer que, uma vez realizada a perícia, o fato se torna atípico se a arma for inapta para efetuar disparos:
“1. A Terceira Seção desta Corte pacificou entendimento no sentido de que o tipo penal de posse ou porte ilegal de arma de fogo cuida-se de delito de mera conduta ou de perigo abstrato, sendo irrelevante a demonstração de seu efetivo caráter ofensivo.
2. Na hipótese, contudo, em que demonstrada por laudo pericial a total ineficácia da arma de fogo (inapta a disparar), deve ser reconhecida a atipicidade da conduta perpetrada, diante da ausência de afetação do bem jurídico incolumidade pública, tratando-se de crime impossível pela ineficácia absoluta do meio.” (HC 445.564/SP, j. 15/05/2018)
4) A conduta de possuir, portar, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo, seja de uso permitido, restrito ou proibido, com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, implica a condenação pelo crime estabelecido no art. 16, parágrafo único, IV, do Estatuto do Desarmamento.
O art. 16, parágrafo único, inciso IV, da Lei 10.826/03 equipara ao caput as condutas de portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.
Embora esteja no dispositivo cuja figura básica (caput) se restringe a armas, munições e acessórios de uso restrito ou proibido, o inciso IV do parágrafo único se aplica inclusive a armas de fogo de uso permitido. Mas, como o tipo não contém nenhuma menção expressa, e devido à localização do dispositivo derivado, há quem busque nos tribunais a desclassificação de condutas que envolvam armas de uso permitido com numeração raspada, suprimida ou adulterada. O STJ, no entanto, não admite esta possibilidade, razão por que firmou a tese de que o inciso IV não se restringe a armas de uso restrito ou proibido:
“2. ‘Aquele que está na posse de arma de fogo com numeração raspada tem sua conduta tipificada no art. 16, parágrafo único, IV, da Lei n. 10.826/2003 […] mesmo que o calibre do armamento corresponda a uma arma de uso permitido’ – neste caso um revólver calibre 32 (Informativo de jurisprudência n. 0364, REsp. 1.036.597/RJ, Relator Ministro FELIX FISCHER, julgado em 21/08/2008).
3. Se, in casu, restou comprovado que ‘a arma de fogo encontrada com o réu […] possuía numeração raspada, correta a tipificação legal do art. 16, parágrafo único, IV, da Lei de Armas’.” (HC 285.767/SP, j. 05/05/2016)
5) O crime de comércio ilegal de arma de fogo, acessório ou munição (art. 17 da Lei n. 10.826/2003) é delito de tipo misto alternativo e de perigo abstrato, bastando para sua caracterização a prática de um dos núcleos do tipo penal, sendo prescindível a demonstração de lesão ou de perigo concreto ao bem jurídico tutelado, que é a incolumidade pública.
O art. 17 da Lei 10.826/03 pune, com reclusão de quatro a oito anos, o comércio ilegal de armas de fogo, consistente em adquirir, alugar, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, adulterar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Segundo o parágrafo único, equipara-se à atividade comercial ou industrial, para os efeitos relativos à tipificação, qualquer forma de prestação de serviços, fabricação ou comércio irregular ou clandestino, inclusive o exercido em residência.
O tipo se aplica tanto a armas de fogo, acessórios ou munições de uso permitido quanto aos de uso restrito ou proibido, mas este crime só se caracteriza se o agente estiver no exercício de atividade comercial ou industrial, pois, tratando-se de cessão ou venda eventual, entre duas pessoas que não se dedicam às atividades mencionadas, a conduta se subsume aos arts. 14 ou 16, conforme a natureza do objeto comercializado (cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas – 10 ed. – vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 47).
Na mesma linha de outros dispositivos que compõem a Lei 10.826/03, o art. 17 revela um tipo misto alternativo, ou seja, a prática de mais de um núcleo do tipo enseja apenas um crime. Assim, quem, no exercício de atividade comercial, adquire, transporta, expõe à venda e vende uma arma ilegalmente comete somente um delito, não delitos em concurso, embora as diversas condutas típicas possam justificar o aumento da pena-base, a depender das circunstâncias do caso concreto.
Além disso, também seguindo as características de outras figuras típicas do Estatuto do Desarmamento, o art. 17 é de perigo abstrato, razão pela qual não se exige a comprovação de geração de perigo de dano no exercício da atividade comercial ou industrial irregular:
“6. Esta Corte tem jurisprudência uniforme no sentido de que o crime de comércio ilegal de arma de fogo e munição é delito de tipo misto alternativo e de perigo abstrato, sendo prescindível a realização de laudo pericial para atestar a potencialidade lesiva da arma de fogo, acessório ou munição porque a prática de quaisquer das condutas previstas na norma já importam em violação do bem juridicamente tutelado, que é a incolumidade pública.” (AgRg no REsp 1.692.637/SC, j. 08/05/2018)
Reitera-se aqui a crítica já efetuada a respeito da desnecessidade de perícia sobre as armas de fogo, munições e acessórios. Novamente, a perícia não trata de apurar a geração de perigo concreto, mas de constatar que se trata dos objetos mencionados no tipo. Assim como na posse e no porte, se constatado que o objeto exposto à venda não é arma de fogo, munição ou acessório segundo estabelece o decreto regulamentar do Estatuto do Desarmamento, o fato é atípico.
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