Na época em que ocorreu a tragédia causada pelo rompimento das barragens da mineradora Samarco, escrevemosDisponível em: https://vitorgug.jusbrasil.com.br/artigos/257197349/acidente-da-samarco-aumentar-o-preco-da-agua-para-a-populacao-e-pratica-abusiva. Acesso em 25/01/2019. a respeito da infeliz prática de alguns comerciantes que, naquele momento de crise e consternação, se aproveitam da escassez de oferta e aumento da procura por água para elevar o preço do produto.
Em seu best-seller, Justiça – O que é fazer a coisa certa, Michael Sandel, referindo-se a tragédias provocadas pela passagem dos furacões Charley e Katrina, nos Estados Unidos, exorta o leitor a refletir se é justo que comerciantes cobrem o preço que quiserem por seus produtos diante de situações calamitosas.
Rizzatto Nunes denunciaDisponível em: https://www.migalhas.com.br/ABCdoCDC/92,MI163430,91041-A+ganancia+empresarial+e+o+direito+do+consumidor. Acesso em 25/01/2019. que tal prática não é nova e nem surpreende, tendo ocorrido no Brasil em outras ocasiões, como nos deslizamentos de terra na região serrana do estado do Rio de Janeiro, nas cidades de Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis.
O art. 39 do Código de Defesa do Consumidor prevê, em rol meramente exemplificativo (numerus apertus), as práticas consideradas abusivas pelo legislador consumerista. Dentre as vedações exemplificadas pelo código, está aquela etiquetada no inciso X do dispositivo em questão, que é exatamente a elevação de preços de produtos e serviços sem justa causa. Veja-se sua literalidade:
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:
(…)
X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.
Além disso, merece atenção o disposto no inciso X do § 3º, do art. 36, da Lei 12.529/11, que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, entre outros. Veja-se:
Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
(…)
§ 3º As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:
(…)
X – discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços.
A mesma lei define, nos arts. 37 a 45, as penas e os respectivos parâmetros de aplicação a que o infrator está sujeito.
Prosseguindo, o aumento injustificado do preço de produtos e serviços vai de encontro aos objetivos e princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, em especial o princípio da boa-fé, consoante disposto, respectivamente, no caput e no inciso III, do art. 4º, do CDC, assim redigidos:
Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
(…)
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Pertinente registrar também que a elevação de preços sem justa causa pode configurar abuso de direito, definido como ato ilícito pelo art. 187 do Código Civil, que tem a seguinte redação:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
No contexto deste breve artigo, precisas são as palavras de Bruno MiragemDisponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-28/garantias-consumo-direito-consumidor-ajudou-aperfeicoar-mercado. Acesso em 25/01/2019. ao ponderar que “o Direito do Consumidor compreende, em si, também uma projeção da proteção da pessoa humana. Consumir é uma necessidade existencial, ninguém vive sem consumir. Logo, resguardar a integridade de cada pessoa é fazê-lo também na sua tutela como consumidora”.
Se por um lado a livre iniciativa está prevista na Constituição Federal de 1988 como fundamento da República (art. 1º, IV) e da ordem econômica (art. 170), por outro é necessário lembrar que o consumidor é o sujeito presumidamente vulnerável na relação de consumo. Assim, para que cumpra sua função social, a livre iniciativa deve ser exercida observando-se preceitos éticos e morais e, principalmente a dignidade da pessoa humana, sendo que a defesa do consumidor é, por expressa previsão constitucional, um dos princípios a serem observados nesse aspecto (art. 170, V).
Por fim, espera-se que nesse momento de profunda comoção, em que o país ainda se indigna com a tragédia da Samarco e com a ausência de punição dos respectivos responsáveis, prevaleça o espírito de solidariedade, e que com esse espírito os comerciantes locais desempenhem sua atividade, evitando-se abusos, e com isso o agravamento do prejuízo da população já duramente atingida.