Informativo: 642 do STJ – Processo Penal
Resumo: Diante do duplo julgamento do mesmo fato, deve prevalecer a sentença que transitou em julgado em primeiro lugar.
Comentários:
Verifica-se a litispendência quando há dois processos em andamento pelo mesmo fato, ou seja, quando o mesmo autor, com o mesmo fundamento de fato, faz o mesmo pedido, contra o mesmo réu. Para evitar que alguém seja processado duas vezes por um só fato (bis in idem), a lei traz a exceção de litispendência, que tem nítido caráter peremptório, já que, se acolhida, importa em extinção do processo em que proferida a decisão. A litispendência deve ser arguida no processo em que se verificou a repetição, isto é, no segundo processo. A prioridade é estabelecida pela citação: havendo dois processos idênticos, deve ser mantido aquele em que foi réu primeiramente citado e extinto o outro.
Ocorre que nem sempre a parte interessada irá promover a exceção. São diversas as situações que podem levar a parte, por inadvertência, a não agir para evitar a dupla imputação, como também não se descarta a possibilidade de que, ignorando a boa-fé processual, a parte deixe de promover a exceção com a intenção de aguardar o resultado também da segunda ação, analisar se lhe interessa mais e, em seguida, buscar a anulação da primeira. Foi o que ocorreu em um caso julgado pelo STJ no recurso em habeas corpus RHC 69.586/PA (j. 27/11/2018).
No caso, o agente foi processado e condenado por estupro de vulnerável, mas, simultaneamente, contra ele tramitou, em razão do mesmo fato, outra ação penal que resultou em absolvição, o que levou a Defensoria Pública a impetrar habeas corpus pleiteando a revogação da primeira sentença condenatória para que prevalecesse a decisão mais favorável.
O tribunal estadual não conheceu do habeas corpus e, interposto recurso, o STJ negou provimento por decisão majoritária.
O ministro Sebastião Reis Junior – relator – deu provimento ao recurso sob o argumento de que o fato de a parte não ter promovido a exceção de litispendência é irrelevante, pois, se era obrigação dela impedir o processo em duplicidade, era também obrigação do Estado evitar que o órgão acusatório promovesse duas ações penais pelo mesmo fato e contra o mesmo acusado. Neste caso, segundo o ministro, deveria prevalecer a decisão mais favorável ao recorrente em homenagem aos princípios do favor rei e do favor libertatis:
“Diante do trânsito em julgado de duas sentenças, uma delas absolutória, contra as mesmas partes, por fatos idênticos, deve prevalecer o critério mais favorável em detrimento do critério temporal (de precedência), ante a observância dos princípios do favor rei e favor libertatis.
Ora, a responsabilidade pela duplicidade de processos é do Estado que é quem acusa (Estado-administração) e julga (Estado-juiz) não do réu que é quem se submete ao ritual fúnebre do processo penal (RANGEL, Paulo. A coisa julgada no processo penal brasileiro como instrumento de garantia. São Paulo: Atlas, 2012, pág. 260).
Nessa linha de prevalência do critério mais favorável em detrimento do critério temporal, confira-se o HC n. 281.101/SP, de minha relatoria, Sexta Turma, DJe 23/11/2017.”
Prevaleceu, no entanto, o voto do ministro Rogério Schietti Cruz, que, invocando precedentes do próprio tribunal e do STF, concluiu que deveria prevalecer a primeira sentença, já transitada em julgado quando a segunda – absolutória – foi proferida:
“No que atine ao conflito de coisas julgadas – situação verificada nos autos –, considerei, ao proferir voto no AgRg nos EmbExeMS n. 3.901/DF, em sessão realizada no dia 14/11/2018, que “a primeira decisão é a que deve preponderar”. Esse posicionamento foi assim motivado naquela ocasião (destaques no original):
(…)
‘Sem embargo de opiniões contrárias, a segunda coisa julgada não poderá se valer da mesma proteção constitucional porque sua formação se deu justamente com a violação da Constituição Federal. E, caso essa opção seja mais atraente ao credor, penso que sua prevalência implicaria, por via transversa, na convalidação do princípio nemo auditur propriam turpitudinem, o que soa inconcebível.
Inversamente, do mesmo modo, poder-se-ia incorrer na própria inviabilidade da execução, v. g., nas hipóteses em que o direito é reconhecido na primeira sentença alçada à condição de coisa julgada, mas não reconhecido na segunda. O direito adquirido pela primeira seria contraposto por uma situação processual absolutamente incongruente. Se prevalecesse a segunda, seria o caso de repetição de indébito? Além disso, como compreender que um direito adquirido pode ser violado pela mesma norma que o contempla?
Ademais, a manutenção de demandas repetidas implica abuso do direito de acesso ao Judiciário, além de poder violar, frontalmente, o princípio do juiz natural, caso a demanda seja analisada perante juízos distintos. Admitir a permanência desse estado de coisas seria o mesmo que convalidar a burla ao referido princípio.
Por tudo isso, penso que a leitura e a interpretação a serem feitas do art. 485, IV, do CPC devem alinhar-se à ideia de que, se há previsão para ação rescisória contra a decisão que ofende a coisa julgada, isso significa que o sistema prestigia a primeira res judicata, visto que a segunda pode vir a ser extinta (trancada). Tal raciocínio impõe a solução de que a primeira decisão é a que deve preponderar.’
Ainda que a análise anteriormente transcrita haja sido feita no âmbito do processo civil, considero que os apontamentos feitos podem ser aplicados, também, ao processo penal.
A solução proposta é consentânea com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, afirmada em mais de uma oportunidade. Confiram-se:
(…)
PROCESSO – DUPLICIDADE – SENTENÇAS CONDENATÓRIAS. Os institutos da litispendência e da coisa julgada direcionam à insubsistência do segundo processo e da segunda sentença proferida, sendo imprópria a prevalência do que seja mais favorável ao acusado. (HC n. 101.131/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Rel. p/ acórdão Ministro Marco Aurélio, 1ª T., DJe 10/2/2012, grifei)”.
Ainda segundo o ministro, a solução de prevalência da primeira sentença se reforça pelos sinais de quebra do dever de lealdade processual por parte da defesa:
“No caso em exame, a prevalência da primeira decisão imutável é reforçada pela quebra do dever de lealdade processual por parte da defesa. Ainda que os documentos anexados aos autos permitam concluir que eles foram assistidos pela Defensoria Pública nas duas ações penais – possivelmente, por profissionais distintos –, é pouco crível que, quando cientificados da segunda persecução criminal existente em seu desfavor, não hajam informado a pessoa responsável pela sua defesa que já estavam sendo processados pelos mesmos fatos.
A leitura da segunda sentença – proferida após o trânsito em julgado da condenação – permite concluir que a duplicidade não foi mencionada sequer nas alegações finais.
Tudo leva a crer que, sabedora da dupla persecução criminal contra os réus, e que já haviam sido condenados no outro processo (a primeira sentença foi proferida em 21/11/2013 e a segunda, em 22/5/2015), a defesa prosseguiu na segunda ação e, ao ser exitosa, buscou a anulação do primeiro decisum na via mandamental.”
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos