A execução das penas decorrentes de condenações criminais é regida não somente pela Lei de Execução Penal, que estabelece regras pormenorizadas sobre a forma como os órgãos estatais devem fazer valer o poder punitivo, mas também pela Constituição Federal, que proíbe genericamente tratamentos desumanos ou degradantes e penas cruéis (art. 5º, incs. III e XLVII, e), e ainda por regras internacionais que visam a garantir que todos os países signatários se empenhem em promover a execução penal dentro de condições mínimas de dignidade humana.
Num esforço de cumprimento dessas condições mínimas, o legislador de 1984 elencou, nos arts. 40 e 41 da Lei 7.210, alguns direitos a que fazem jus os presos condenados ou provisórios. A lei impõe às autoridades o respeito à integridade física e moral dos presos (art. 40) e estabelece, dentre outros direitos que têm a finalidade de cumprir o objetivo estampado já no art. 1º da lei (proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado), a proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação (art. 41, inc. V).
Uma das formas de garantir sobretudo a manutenção da integridade física e psicológica é o banho de sol, período no qual os presos são retirados das celas e direcionados a alguma dependência ao ar livre. Embora não esteja expresso no rol do art. 41, o banho de sol tem sido encarado como uma importante medida não apenas como forma de recreação e interação entre os presos, mas principalmente de preservação da saúde física, sabidamente debilitada pela falta de exposição ao sol e pela permanência em ambientes fechados (e, no caso, com número excessivo de pessoas em espaços exíguos). A falta do banho de sol – cuja execução é no geral simples – provoca impacto no sistema imunológico e proliferação de doenças de pele e respiratórias, o que não só acarreta o descumprimento das já mencionadas regras mínimas de dignidade humana como também eleva os custos de manutenção do sistema prisional, que acabam onerando ainda mais o contribuinte.
Em virtude disso, o STF concedeu medida cautelar em habeas corpus coletivoHC 172.136/SP, j. 01/07/2019 impetrado pela Defensoria Pública de São Paulo para garantir a indivíduos presos em estabelecimento situado no interior de São Paulo o banho de sol por ao menos duas horas diárias.
A Defensoria Pública havia tentado garantir o direito aos presos já perante o Tribunal de Justiça local, que, decidindo agravo em execução, apontou a existência de justificativa para que a administração do estabelecimento prisional vetasse o banho de sol, pois faltava estrutura para os presos permanecerem juntos em segurança. A preservação da integridade física, portanto, se sobrepunha ao direito ao banho de sol. O tribunal se referiu também a algumas justificativas apresentadas ainda pelo juiz de primeira instância:
“Como bem justificou o nobre prolator da decisão recorrida, além da falta de estrutura física da unidade prisional, deve-se considerar que “os sentenciados recolhidos no pavilhão de medida preventiva de segurança disciplinar permanecem por curto período em mencionado pavilhão, tão somente aguardando a sua remoção para outra unidade. E no caso de eventual demora, é assegurado o banho de sol aos mesmos. De outro lado, aqueles sentenciados que cometem falta disciplinar não permanecem junto dos demais, sob pena de inviabilizar a penalidade de isolamento celular para a garantia da ordem e segurança.”
Inconformado, o órgão defensor impetrou habeas corpus no STJ, que rejeitou a pretensão sob basicamente dois argumentos: a justificativa já apresentada pelas instâncias inferiores e a inadequação do habeas corpus para compelir a Administração Pública a criar a estrutura adequada para os presos:
“Por um lado, vê-se que o principal motivo para não se proporcionar o banho de sol de forma ideal – já que permitido de forma precária e com frequência reduzida –, aos detentos recolhidos no pavilhão de medida preventiva de segurança pessoal e disciplinar da Penitenciária “Tacyan Menezes de Lucena”, é a falta de estrutura física da unidade prisional, aliada à necessidade de se preservar a própria segurança dos detentos e a ordem no presídio.
Ou seja: há uma mitigação do direito do detento ao banho de sol em razão de um bem maior, que é justamente sua integridade física – ameaçada pelos demais presos –, bem como a manutenção da ordem na unidade prisional. Assim, considerando as apontadas limitações físicas do local e a ponderação dos valores em confronto, mostra-se satisfatória a solução encontrada pela Administração Penitenciária. Reverter tal entendimento esbarraria na necessidade de incursão na seara fático-probatória, o que não se coaduna com a via mandamental. Não há, portanto, ilegalidade a ser reparada por meio da presente via.
Por outro lado, cumpre observar que permanece hígido o outro fundamento da decisão, suficiente para a sua manutenção, qual seja, a inadequação do habeas corpus, que não comporta dilação probatória, para determinar à Administração Penitenciária a realização de obras e reformas na unidade prisional de modo a permitir o banho de sol aos presos mantidos no citado pavilhão, sem colocar em risco sua integridade física.”
Diante desta decisão, a Defensoria Pública impetrou outro habeas corpus, agora no Supremo Tribunal Federal. O ministro Celso de Mello – relator – discordou das decisões anteriormente proferidas e concedeu medida cautelar para que a administração do estabelecimento prisional garanta aos presos o direito ao banho de sol por ao menos duas horas diárias.
Inicialmente, o ministro lembrou que o STF admite a impetração de habeas corpus coletivo. De fato, no julgamento do habeas corpus 143.641/SP – que tratou da substituição da prisão preventiva pela domiciliar de mulheres presas gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes – o tribunal consignou que remédios processuais coletivos têm sido exigidos para solucionar problemas ligados a relações sociais massificadas e burocratizadas, prevenindo-se assim lesões a direitos de grupos vulneráveis, cujos componentes não são capazes de se impor individualmente.
Na fundamentação, após longa digressão sobre as condições do sistema penitenciário brasileiro, sobre o “estado de coisas inconstitucional” que o caracteriza e que já foi reconhecido pelo próprio Supremo, sobre a necessidade de proteção de quaisquer grupos submetidos a violação de direitos e sobre a legitimidade do controle jurisdicional das políticas públicas, inclusive em matéria penitenciária, o ministro afirmou que, embora não se desconheçam a escassez de recursos públicos e as dificuldades para estabelecer as prioridades de destinação, a cláusula da reserva do possível – que, grosso modo, limita a abrangência da atuação estatal de acordo com a disponibilidade de recursos – encontra limitação na imposição do “mínimo existencial”:
“Cabe ter presente, bem por isso, consideradas as dificuldades que podem derivar da escassez de recursos – com a resultante necessidade de o Poder Público ter de realizar as denominadas “escolhas trágicas” (em virtude das quais alguns direitos, interesses e valores serão priorizados “com sacrifício” de outros) –, o fato de que, embora invocável como parâmetro a ser observado pela decisão judicial, a cláusula da reserva do possível encontrará, sempre, insuperável limitação na exigência constitucional de preservação do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana, tal como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte”.
Adentrando especificamente nos fundamentos para a garantia ao banho de sol, o ministro fez referência à necessidade de manter a integridade física e psicológica dos presos, tratada pela legislação doméstica e pela legislação internacional como um direito básico, vinculado diretamente ao mínimo existencial. O fato de o banho de sol não estar inserido no rol do art. 41 da LEP não é relevante, pois aquele elenco de direitos do preso tem natureza exemplificativa, não taxativa, ou seja, tratando-se de medida destinada a preservar a dignidade humana, não há por que impor óbice.
“As razões que venho de expor permitem-me afirmar, sem qualquer dúvida, que a injusta recusa da administração penitenciária em permitir o exercício do direito ao banho de sol a detentos recolhidos a pavilhões especiais, como os indicados na presente impetração, contraria, de modo frontal, como anteriormente destacado, as convenções internacionais de direitos humanos subscritas pelo Brasil e cuja aplicação é inteiramente legitimada pelo § 2º do art. 5º da Constituição da República.
Cabe observar, no ponto, por relevante, que a norma ora referida traduz verdadeira cláusula geral de recepção que autoriza o reconhecimento de que os tratados internacionais de direitos humanos possuem, segundo entendo, hierarquia constitucional, considerada a relevantíssima circunstância de que o preceito em questão viabiliza a incorporação, ao catálogo constitucional de direitos e garantias individuais, de outras prerrogativas e liberdades fundamentais, que passam a integrar, mediante subsunção ao seu conceito, o bloco de constitucionalidade.”
Destacou-se, ademais, que privar do banho de sol diário os presos em situação regular é medida desproporcional, tendo em vista que se trata de uma garantia expressamente concedida a presos submetidos ao regime disciplinar diferenciado, como estabelece o art. 52, inc. IV, da LEP. Se o benefício é garantido até mesmo a autores de crime doloso que ocasione subversão da ordem e da disciplina internas, com mais razão o deve ser aos demais indivíduos recolhidos no estabelecimento prisional.
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos