A função punitiva – ou, como também é conhecida, punitivo-pedagógica – é encontrada com facilidade na jurisprudência brasileira das últimas décadas. Citemos um julgado emblemático a respeito. O STF reconheceu “a necessária correlação entre o caráter punitivo da obrigação de indenizar e a natureza compensatória para a vítima” (STF, Rel. Min. Celso de Mello, Agravo de Instrumento n. 455.846). A ementa consignou: “Dupla função da indenização civil por dano moral (reparação-sanção): a) caráter punitivo ou inibitório (exemplary or punitive damages) e b) natureza compensatória ou reparatória”. O STJ, em reiteradas ocasiões, teve oportunidade de sublinhar que os danos morais devem ser arbitrados “à luz da proporcionalidade da ofensa, calcada nos critérios da exemplariedade e da solidariedade” (STJ, REsp 1.124.471, em caso julgado pelo ministro Luiz Fux, quando ainda estava no STJ). Ou seja, são inúmeros os julgados, sobretudo do STJ, em que essa função é reconhecida de modo explícito, ainda que em certos casos possa não haver maior desenvolvimento argumentativo.
O STJ tem se pronunciado no sentido de que a indenização deve ser fixada em montante que desestimule o ofensor a repetir a falta, sem constituir, de outro lado, enriquecimento indevido (STJ, AgRg no Ag 1.410.038). A terceira e quarta turmas do STJ têm reafirmado a função pedagógico-punitiva da indenização por dano moral. Mencionam ainda a necessidade de observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (STJ, AgRg no AREsp 578.903).
Talvez possamos citar aqui, de modo extremamente breve, um dos casos julgados para ilustrar. Há algum tempo o STJ julgou determinado caso envolvendo o SBT. A produção de determinado programa (SBT Repórter) procurou uma comunidade de naturistas – pessoas que vivem sem roupa em comunidade, buscando, dizem, integração com a natureza –, numa comunidade gaúcha chamada Colinas do Sol, afirmando que gostaria de fazer uma reportagem com eles, focalizando o respectivo estilo de vida. A comunidade aceitou a realização das imagens e do programa, porém exigiu do SBT que fosse firmado um contrato em cujas cláusulas estaria previsto que as imagens lá feitas apenas poderiam ser usadas no referido programa (que tinha um tom mais jornalístico e menos sensacionalista). O SBT aceitou e o contrato foi assinado. As imagens foram feitas e o programa jornalístico exibido. Porém o que fez o SBT depois disso? De posse das imagens, pouco depois as exibou no… programa do Ratinho. Com grosseiros e ofensivos comentários sendo feitos à medida em que as imagens – e os detalhes anatômicos – de cada uma das pessoas eram exibidas. Sobretudo em relação às mulheres que estava acima do peso e tinham mais idade.
O STJ, ao julgar, explicitamente mencionou a função punitivo-pedagógica do dano moral, e lembrou que o agir das empresas de televisão, na guerra por audiência, deve ter limite, não podendo se transformar num vale-tudo. O SBT foi condenado a pagar 200 mil reais para cada um dos naturistas ridicularizados no programa do Ratinho. Sustentou o relator que tal conduta “há de ser reprimida com rigor, não só pela gravidade da situação concreta, como pela necessidade de se coibir novas condutas semelhantes. Há que se dar o caráter punitivo adequado para que não se concretize a vantagem dos altos índices de audiência sobre os riscos advindos da violação dos direitos constitucionalmente garantidos, honra e dignidade” (STJ, REsp 838.550). Nesse sentido, a sanção punitiva nos quadrantes do direito privado requer somente uma aferição do lamentável comportamento do agente: a reprovabilidade da conduta daquele que ofende situações jurídicas existenciais ou pratica danos sociais com desprezo à condição das vítimas em potencial.
Podemos indagar: enfim, a função punitiva da responsabilidade civil: existe ou não?
A discussão tem forte sabor polêmico. Na doutrina, por exemplo, no Brasil e lá fora, sempre houve vozes em favor da aceitação da função punitiva da responsabilidade civil. Para esses autores, existe, no âmbito da responsabilidade civil, uma função punitivo-preventiva paralela à função de ressarcimento de danos injustos. Sabe-se que essa função punitivo-preventiva é comumente associada ao no direito inglês e norteamericano, sobretudo através da da doutrina dos punitive damages ou exemplary damages. A primeira (punitive damages) é mais comum nos Estados Unidos, ao passo que a segunda (exemplary damages) é mais usada na Inglaterra.
É verdade que a doutrina brasileira não é uniforme no tratamento do tema. Nem há muita sistematicidade em sua abordagem. Percebe-se a dificuldade doutrinária e jurisprudencial ao cuidar do tema, que é realmente desafiador. Mesmo autores que defendem que “a finalidade precípua da indenização não é punir o responsável, mas recompor o patrimônio do lesado, no caso do dano material, e servir de compensação e servir de compensação, na hipótese de dano moral” afirmam, ao mesmo tempo, “que a reparação pecuniária, tanto do dano patrimonial como do dano moral, tem duplo caráter: compensatório para a vítima e punitivo para o ofensor. O caráter punitivo é puramente reflexo ou indireto: o causador do dano sofrerá um desfalque patrimonial que poderá desestimular a reiteração de condutas lesivas”. O jurista citado explicitamente aponta que no dano moral o grau de culpa também é levado em consideração, juntamente com a gravidade, extensão e repercussão da ofensa, bem como a intensidade do sofrimento acarretado à vítima.
Autores clássicos e cultos como Caio Mario da Silva Pereira já sustentavam que a indenização por dano moral traz um duplo caráter: não só compensar mas também punir. Haveria, portanto, segundo o jurista, nessas hipóteses, a conjugação entre: a) a punição do ofensor pela lesão de bem jurídico imaterial da vítima; b) a concessão ao ofendido de uma soma que não é o pretium doloris, mas o meio de lhe proporcionar uma satisfação de qualquer espécie (intelectual ou moral, ou mesmo patrimonial). Sérgio Cavalieri Filho, de modo semelhante, defende o caráter punitivo do dano moral, para que se atenda ao objetivo de prevenção. Argumenta que o intuito punitivo deve ser adotado “quando o comportamento do ofensor se revelar particularmente reprovável – dolo ou culpa grave – e, ainda, nos casos em que, independentemente de culpa, o agente obtiver lucro com o ato ilícito ou incorrer em reiteração da conduta ilícita”.
A justificação – filosófica e jurídico-conceitual – da função punitiva é importante, não negamos isso. Mas também é relevante, e talvez ainda mais, analisar os resultados concretos, funcionais, do instituto entre nós, no Brasil. O direito dos nossos dias caminha claramente em direção a dimensões de análise mais pragmáticas, mais próximas dos problemas e das aflições reais das pessoas. Busca-se soluções jurídicas que se afastem da pura abstração conceitual que tanto marcou o direito no século XIX e em boa parte do século XX.
A função punitiva tem sido uma realidade de nossa jurisprudência nas últimas décadas. Inclusive no STJ, que tem a função, atribuída pela Constituição, de uniformizar a interpretação da lei federal no Brasil. Flávia Portela Puschel, em artigo publicado há mais de 10 anos, abre suas reflexões, já no primeiro parágrafo, constatando a existência de uma realidade: “Partindo da constatação da existência de responsabilidade civil com fins punitivos no direito brasileiro, introduzida pela atividade jurisdicional nos casos de danos morais, este artigo tem como objetivo central estabelecer critérios a serem utilizados em uma pesquisa empírica, proposta para se conhecer a dimensão exata, os fundamentos e objetivos da jurisprudência brasileira que admite o caráter punitivo da responsabilidade civil por danos morais”. A própria autora reconhece que essa aceitação, pela jurisprudência, com frequência não é problematizada ou fundamentada. Seja como for, gostemos ou não, a função punitiva é um fato, isto é, a jurisprudência brasileira costuma aplicá-la, embora nem sempre com clareza ou sistematicidade.
Cremos equivocado, e potencialmente um passo atrás em termos de prevenção e combate de danos injustos, afastar a função punitiva da responsabilidade civil. Os argumentos contra a função punitiva são esquemáticos, estruturais, pouco condizentes com um sistema jurídico-material aberto, flexível, dinâmico. O direito dos danos do século XXI, em nossa visão, estará melhor com a função punitiva da responsabilidade civil. Terá, com ela, relevante instrumental para concretizar a proteção à pessoa humana e as dimensões existenciais das relações jurídicas. Aliás, empiricamente, a análise dos julgados evidencia que a função punitiva é uma ferramenta de equidade e de proteção dos mais vulneráveis (embora certamente existam casos em que a função punitiva foi mal aplicada, ou imposta de modo abusivo, com excessos).
O STJ, a propósito, destacou: “Sendo a conduta dolosa do agente dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima, mediante emprego de reprovável violência física, o arbitramento da reparação por dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e pedagógico da compensação, sem perder de vista a vedação do enriquecimento sem causa da vítima” (STJ, REsp 839.923). No caso, os ofensores espancaram a vítima apenas porque ela colidiu com a traseira do veículo que eles dirigiam. O acidente de trânsito, banal e comum, teve uma reação extremada, agressiva e perigosa dos ofensores. Houve, além disso, uso de força física desproporcional e excessiva. O STJ, no caso, elevou o valor da indenização por dano moral de 13 para 50 mil reais para cada um dos ofensores.
É certo que a aceitação da função punitiva da responsabilidade civil impõe novas reflexões, novos modelos conceituais que precisam ser desenvolvidos. Porém não nos parece correto argumentar que o princípio da legalidade vedaria a função punitiva, sendo certo o caráter aberto da ilicitude civil, a ausência de tipicidade fechada de seus ilícitos. Uma das maiores virtudes da responsabilidade civil é seu caráter aberto e dinâmico. Temos enfatizado, em outros livros, a flexibilidade orgânica da responsabilidade civil. O juiz, para decidir um caso, deverá: a) verificar se houve dano; b) se o dano é relevante; c) se há nexo causal entre o dano e determinada ação ou omissão; d) se há culpa (nos casos de responsabilidade civil subjetiva); e) se é o caso de impor sanções exemplares, punitivas ou pedagógicas. Isso sem falar no dificílimo problema da quantificação dos danos extrapatrimoniais (trata-se, sabemos, de quantificar aquilo que, ontologicamente, não comporta quantificação). Estamos diante, em todos os itens, de conceitos abertos, conceitos que não comportam precisão absoluta nesse ou naquele sentido. O mesmo se diga em relação aos ilícitos civis. Lembremos que a ilicitude civil opera por meio de cláusulas gerais, compondo um sistema aberto e atípico. Não temos, aqui, a tipicidade fechada tão característica do direito penal, assumindo a ilicitude civil uma feição mais plural e mais dinâmica.
Aliás, já em algumas das primeiras legislações com tintas objetivistas que foram editadas – iniciando-se com a legislação da Prússia de 1838 sobre as estradas de ferro, chamada de “ato genial” por Wilhelm Hedemann e sobretudo na lei suíça de 1875 – havia previsão da agravação da responsabilidade quanto ao dano moral, nos casos de desleixo grosseiro ou dolo. Aliás, já Savigny e Ihering – juntos nesse ponto – defendiam que a responsabilidade civil não deveria se restringir à compensação de danos, mas assumir, também, a função de desestimular a prática de ilícitos. Podemos dizer, de modo breve, que os tribunais norte-americanos costumam conceder indenização punitiva nos casos de responsabilidade por fato do produto quando se constata a inserção de bens “perigosos ou defeituosos, pelos produtores que conhecem tais vícios ou não fazem os testes se segurança, demonstrando, assim, flagrante indiferença pela segurança, saúde ou bem estar dos consumidores”.
Na lição de Judith Martins-Costa acerca da dimensão preventiva da responsabilidade civil, no processo evolutivo de um dado instituto jurídico é preciso que a doutrina não se aferre a dogmas que bem vestiam tão-só a função antiga, restando a nova como roupas mal cortadas, em massa produzidas. É precisamente o que ocorre com a insistência de atribuir-se à responsabilidade civil, como se integrasse a sua própria natureza, um caráter estritamente reparatório, sem nenhum elemento de punição ou de exemplaridade.
Aliás, mesmo países que tradicionalmente se colocavam fortemente contrários à função punitiva da responsabilidade civil começam a mudar de posição. Veja-se, por exemplo, o relevante caso da Itália. Em 2017, a Suprema Corte Italiana (Corte Suprema di cassazione) consignou: “No ordenamento vigente, à responsabilidade civil não é reservada apenas a função de restaurar a esfera patrimonial de quem sofreu a lesão, porque existem no sistema as funções de dissuasão (desestímulo) e punitiva”. O tribunal enunciou de modo categórico: “Não é portanto ontologicamente incompatível com o ordenamento italiano o instituto de origem americana das indenizações punitivas” (Cassazione Civile, SS. UU., sentenza 05/07/2017, n. 16601). Houve, porém, na sentença, algumas restrições para que a decisão estrangeira possa valer na Itália (sobretudo no que se refere à intermediação legislativa, isto é, a necessidade da previsão em lei das hipóteses). De toda sorte, trata-se de precedente realmente importante. O tribunal italiano destacou de modo expresso e claro a multifuncionalidade da responsabilidade civil em nossos dias.
Vejamos agora a função preventiva, de modo destacado.
Conforme dissemos antes, em inúmeras situações concretas os julgados tratam prevenção e punição de modo conjunto, no que toca à responsabilidade civil. Talvez não seja mesmo adequado separar as funções punitiva e preventiva. Fazemos aqui mais por razões didáticas, lembrando que as funções se misturam, dialogam entre si, não há razão para buscar – pensamos – uma rigorosa e absoluta separação entre elas, dada a flexibilidade orgânica da responsabilidade civil.
Tem-se que uma das funções precípuas da responsabilidade civil, atualmente, é a preventiva. O direito do século XXI não se satisfaz apenas com a reparação dos danos. Mais importante do que tentar reparar – sempre imperfeitamente, como se sabe – os danos sofridos, a tutela mais adequada, e mais conforme à Constituição, é a tutela preventiva, que busca evitar que os danos ocorram ou que continuem a ocorrer. A função preventiva assume, portanto, neste século, fundamental importância. O direito dos séculos passados, em sua feição mais tradicional, preocupava-se sobretudo em reparar as situações jurídicas ofendidas. Restabelecer a situação anterior ao dano. Isso é importantíssimo, e é, sem dúvida, uma das funções da justiça. Mas o nosso século se interessa mais em prevenir lesões ao invés de esperar que elas ocorram para só depois agir.
Talvez possamos estabelecer diálogos entre a função social da responsabilidade civil e sua dimensão preventiva. Nelson Rosenvald, a propósito, anota: “Vê-se que a função de prevenção está intimamente associada às sanções punitivas, eis que as sanções ressarcitórias miram apenas o equilíbrio da esfera patrimonial, não se propondo essencialmente a evitar o ilícito, mas em eliminar suas consequências danosas”. Aliás, há quem argumente que “pode-se cogitar do agravamento da indenização se o agente não se solidarizar com a vítima, procurando com ela cooperar, a fim de amenizar as consequências do evento danoso. Tais medidas, cujo fim é impor um comportamento solidário do agente para com a vítima, inserem-se no contexto da função preventiva que deve ser reconhecida ao instituto da responsabilidade civil”.
São inúmeros os casos concretos, na jurisprudência, as situações em que as funções preventiva e punitiva são tratados de modo conjunto. Em caso julgado em 2018 o STJ frisou que o dano moral coletivo é categoria autônoma de dano que traduz violação injusta e intolerável de valores fundamentais titularizados pela coletividade (grupos, classes ou categorias de pessoas). De acordo com o julgado, o dano moral coletivo tem três funções: 1) proporcionar reparação indireta à lesão de um direito extrapatrimonial essencial da coletividade; 2) sancionar o ofensor; e 3) inibir condutas ofensivas a esses direitos transindividuais. O STJ entende que o dano nesses casos é in re ipsa, ou seja, é presumido, independe de prova de prejuízo específico (STJ, REsp 1.586.515). Em relação ao dano moral individual, o STJ já destacou que “a indenização por danos morais possui tríplice função: a compensatória, para mitigar os danos sofridos pela vítima; a punitiva, para condenar o autor da prática ilícita e lesiva; e a preventiva, para dissuadir o cometimento de novos ilícitos” (STJ, REsp 1.440.721).