Embora não se trate de testemunha, o ofendido tem especial relevância na apuração do crime. Por conta disso, o legislador considerou relevante sua oitiva, dedicando-lhe um capítulo próprio na parte concernente à prova, e a jurisprudência tem especial apreço por sua palavra, “devendo seu relato ser apreciado em confronto com os outros elementos probatórios, podendo, então, conforme a natureza do crime, muito contribuir para a convicção do juiz”, como ensina Magalhães Noronha (Curso de direito processual penal, São Paulo: Saraiva, 2002, 28ª. ed., p. 111).
A doutrina mais tradicional sempre recebeu com enormes reservas a palavra do ofendido e, em virtude disso, conferiu-lhe pouco ou mesmo nenhum valor probatório. Isto porque em razão de sofrer diretamente as consequências do delito, lhe faltaria a isenção necessária para que seu relato pudesse ser confiável a ponto de fundamentar a condenação
Sem embargo, contudo, de tais ressalvas e sob determinadas condições, a doutrina e a jurisprudência têm conferido relevância ao relato do ofendido, conforme realça Tourinho Filho:
“Em certos casos, porém, é relevantíssima a palavra da vítima do crime. Assim, naqueles delitos clandestinos – qui clam comittit solent – que se cometem longe dos olhares de testemunhas –, a palavra da vítima é de valor extraordinário” (Código de Processo Penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2005, 9ª. ed. 2005, p. 296).
Portanto, nesses delitos, cometidos às ocultas e naqueles em que não se vislumbra, no proceder da vítima, nenhuma intenção em incriminar pessoa até então desconhecida, seu depoimento assume valor decisivo.
É exatamente nisso que se fundamenta a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento da apelação 0056918-15.2016.8.26.0050 (j. 10/12/2019).
Os recorrentes haviam tomado parte em um roubo a um prédio residencial, juntamente com outros indivíduos que não puderam ser identificados. Embora tivessem sido reconhecidos por mais de uma vítima (um deles, inclusive, como sendo líder do grupo), pretendiam reverter a condenação de primeira instância alegando ter havido engano no reconhecimento.
Mas o Tribunal de Justiça não endossou a tese, justificando que o reconhecimento promovido pelas vítimas não foi isolado do restante do conjunto probatório, especialmente se considerados os relatos sobre a ação criminosa, todos coerentes:
“Postas as declarações dos ofendidos, cabe relembrar que, em delitos patrimoniais, suas palavras têm forte peso, até porque raramente contam com testemunhas presenciais, merecendo maior destaque no conjunto probatório amealhado.
(…)
No caso dos autos, distintamente das pueris negativas dos réus, as vítimas ofertaram relatos firmes e coerentes entre si.
Ademais, Anailton foi reconhecido por José Eduardo, Antônio, Rosana e Ester, ao passo que Oscar foi reconhecido, por duas vezes, por José Eduardo.
Aqui, afirma a defesa que o fato de Oscar ter sido reconhecido por apenas uma vítima enfraquece sobremaneira a prova da autoria, especialmente em contexto no qual envolvidas diversas vítimas.
No entanto, razão não lhe assiste.
Ora, Anailton foi reconhecido por mais de uma vítima, porque era o coordenador da ação, o líder do grupo de criminosos, de modo que seu trânsito pelo condomínio durante a ação permitiu que mais ofendidos pudessem ter contato com ele e fixar sua fisionomia.
Já a Oscar teve sua presença restrita a locais específicos, de acordo com as tarefas que lhe incumbiam no assalto, de modo que não teve intenso contato com todas as vítimas, senão com o ofendido José Eduardo, o qual, em razão disso e por terem lhe chamado a atenção traços fisionômicos de origem árabe, pôde memorizar a face do indigitado réu.
Tais aspectos, aliás, já foram muito bem observados na r. sentença ora guerreada.
Demais disso, pequenas discrepâncias entre as declarações são absolutamente normais e, ao invés de desacreditá-las, justamente por serem periféricas, conferem ainda maios veracidade aos relatos, pois que, na essência, os ofendidos confirmaram integralmente os termos da denúncia”.
Não se trata, portanto, de atribuir valor absoluto à palavra da vítima, que pode conduzir a condenações injustas. Trata-se de conferir-lhe a devida relevância quando outros indícios, reunidos, conferem verossimilhança ao relato.