O Superior Tribunal de Justiça decidiu no CC n. 168.522-PR, em 11/12/2019, que não é possível realizar audiência de custódia por videoconferência.
A Resolução n. 213 do CNJ é clara ao estabelecer que, no caso de cumprimento de mandado de prisão fora da jurisdição do juiz que a determinou, a apresentação do preso, para a audiência de custódia, deve ser feita à autoridade competente na localidade em que ocorreu a prisão, de acordo com a Lei de Organização Judiciária local. No caso de audiência de custódia realizada por juízo diverso daquele que decretou a prisão, observa que competirá à autoridade judicial local apenas, caso necessário, adotar medidas necessárias à preservação do direito da pessoa presa. As demais medidas, ou não são aplicáveis no caso de prisão preventiva ou não possui o juízo diverso do que decretou a prisão competência para a efetivar. De fato, uma das finalidades precípuas da audiência de custódia é aferir se houve respeito aos direitos e garantias constitucionais da pessoa presa. Assim, demanda-se que seja realizada pelo juízo com jurisdição na localidade em que ocorreu o encarceramento. É essa autoridade judicial que, naquela unidade de exercício do poder jurisdicional, tem competência para tomar medidas para resguardar a integridade do preso, bem assim de fazer cessar agressões aos seus direitos fundamentais, e também determinar a apuração das responsabilidades, caso haja relato de que houve prática de torturas e maus tratos. Nesse contexto, foge à ratio essendi do instituto a sua realização por meio de videoconferência. Registre-se que o Presidente do Conselho Nacional de Justiça, ao deferir a medida liminar para suspender a Resolução CM n. 09/2019, que permitia a realização da audiência de custódia por meio de videoconferência destacou que “o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) considerou que a apresentação pessoal do preso é fundamental para inibir e, sobretudo, coibir, as indesejadas práticas de tortura e maus tratos, pois que a transmissão de som e imagem não tem condições de remediar as vantagens que o contato e a relação direta entre juiz e jurisdicionado proporciona”. Não se admite, portanto, por ausência de previsão legal, a realização da audiência de custódia por meio de videoconferência, ainda que pelo Juízo que decretou a custódia cautelar. (CC 168.522-PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 11/12/2019, DJe 17/12/2019.)
O Conselho Nacional de Justiça também decidiu no PCA n. 0000930-47.2020.2.00.0000, em 07/02/2020, pela impossibilidade de se realizar audiência de custódia por videoconferência e mencionou como argumento que deixar de apresentar o preso pessoalmente ao juiz “é desperdiçar um instrumento e uma oportunidade eficazes para impedir e coibir práticas de tortura e maus tratos, eis que a ´transmissão de som e imagem´não tem condições de remediar as vantagens que o contato e a relação direta entre juiz e jurisdicionado proporciona.”
Em que pese os argumentos das decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, tenho que deve haver permissão para que a audiência de custódia seja realizada por videoconferência em razão dos argumentos a seguir apresentados.
a) O Presidente da República vetou o § 1º do art. 3º-B da Lei Anticrime que vedava o emprego de videoconferência para realizar Audiência de Custódia, o que demonstra que a finalidade foi permitir que a Audiência de Custódia fosse realizada por videoconferência;
b) O Código de Processo Penal já prevê a utilização de videoconferência para se interrogar o preso, conforme arts. 185, § 2º e 217. Como é possível que no interrogatório, que é um ato de defesa e de suma importância para o réu, seja utilizado videoconferência, com maior razão deve-se permitir a sua utilização na Audiência de Custódia, pois nesta não se adentrará ao mérito da prisão, não haverá exercício de defesa por parte do preso, e será verificada se a sua integridade foi respeitada pelos policiais que efetuaram a prisão, o que é possível ser constatado por videoconferência. Além do mais, é possível extrair interpretação ampliativa;
c) O art. 3º do Código de Processo Penal prevê que a “lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito.” e por haver previsão no próprio CPP a respeito da realização de interrogatório por videoconferência, nada impede que haja uma interpretação analógica para assegurar que a videoconferência seja também aplicada nas audiências de custódia.
d) Argumenta-se que a transmissão de som e imagem não tem condições de remediar as vantagens que o contato e a relação direta entre juiz e jurisdicionado proporciona, todavia por videoconferência é perfeitamente possível detectar se houve agressões, que é a finalidade precípua, sendo possível registrar eventuais lesões pela filmagem da própria videoconferência e solicitar que o servidor que estiver com o preso fotografe, se for necessário;
e) A Audiência de Custódia, segundo o art. 310 do Código de Processo Penal, com o advento da Lei n. 13.964/19, deve ser realizada em até 24 (vinte e quatro) horas após o juiz ser comunicado da prisão, não sendo possível assegurar o cumprimento deste dispositivo caso se exija a presença física do preso e do juiz nas comarcas em que não houver juiz, o que vai de encontro à celeridade dos atos processuais;
f) Vedar a realização de Audiência de Custódia por videoconferência terá efeito contrário ao pretendido, pois ainda que a intenção seja a melhor, a consequência será negativa, pois inúmeras audiências de custódia deixarão de ser realizadas nas comarcas sem juiz, em razão da impossibilidade do constante deslocamento do juiz para comarca diversa ou do preso para a comarca do juiz, o que remete à aplicação da teoria do impacto desproporcionalToda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semi-governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas. (GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001) Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarTesauro.asp?txtPesquisaLivre=TEORIA%20DO%20IMPACTO%20DESPROPORCIONAL >. Acesso em 15/02/2020., segundo a qual ao se adotar uma medida de cunho igualitário, deve-se analisar se a adoção dessa medida não agravará a desigualdade de forma indireta. Isto é, visa-se permitir que todos os presos passem por audiência de custódia com a presença física do juiz, todavia, os efeitos serão adversos, dada a impossibilidade de sua concretização, e ao vedar a realização da audiência de custódia por videoconferência, acabará por acarretar na sua não realização, o que agravará a desigualdade entre os presos, pois a desigualdade entre a audiência de custódia presencial e a realizada por videoconferência implica em uma desigualdade mínima, enquanto que a não realização da audiência de custódia, dada a vedação de sua realização por videoconferência e impossibilidade da presença física do juiz e do preso, implicará na real desigualdade;
g) A realidade do país não permite o deslocamento constante do juiz, sobretudo no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, em razão das dificuldades de acesso, sendo que algumas comarcas são acessíveis somente com barco ou pequenos aviões e caso seja possível o deslocamento por transporte terrestre, muitas vezes o fórum fica distante da comarca em que o juiz é titular, o que implica em um gasto de tempo precioso, que o juiz poderia utilizar para despachar ou realizar audiências, dada a excessiva demanda de processos judiciais;
h) Geralmente, o juiz possui inúmeras audiências para realizar na comarca em que é titular, o que inviabiliza as constantes viagens;
i) Obrigar um juiz a viver nas estradas é obrigá-lo a correr riscos frequentemente, em razão da possibilidade de acidentes, mormente quando as estradas não possuem boas condições de tráfego. O mesmo se aplica à obrigatoriedade dos policiais penais se deslocarem, diariamente, pelas estradas, sobretudo com presos, o que aumenta os riscos;
j) O juiz pode ser obrigado a responder por outra comarca, mas deve-se observar a agenda e compromissos do juiz na comarca em que é titular, pois possui inúmeras audiências e processos para despachar, sendo sempre fiscalizado pela Corregedoria quando há excesso de prazo e ao ser avaliado analisam a situação dos processos na comarca em que o juiz é titular;
k) Não é possível obrigar que um juiz realize viagens diariamente ou em curto intervalo de tempo, independentemente, da situação da vara em que trabalha, o que caracteriza uma relativização da inamovibilidade;
l) Caso entenda-se que a Polícia Penal deva levar o preso até o juiz em outra comarca, certamente, não haverá efetivo, o que impossibilita a realização da viagem, pois, diariamente, já devem conduzir os presos para as audiências criminais, inclusive em outras cidades, e não é incomum haver dificuldades de ordens operacional, por questões de efetivo e logística, o que dificulta a condução diária de presos para outras comarcas, exclusivamente, para se realizar a Audiência de Custódia;
m) Os policiais penais devem permanecer, em maior número, dentro do presídio, para a realização da segurança, não sendo prudente que haja um redirecionamento de policiais penais, além daqueles que já possuem responsabilidade por conduzirem presos para as audiências criminais, para os conduzirem para as audiências de custódia;
n) Os deslocamentos dos juízes para realizarem audiências de custódias ou dos policiais penais para levarem os presos aos juízes em outras comarcas implicarão em excessivos gastos para os cofres públicos, em razão das despesas com diárias e combustível, gastos estes que poderiam ser revertidos, inclusive, para a melhoria dos presídios e dos órgãos policiais;
o) O impacto econômico e social das decisões judiciais devem ser levado em consideração, tanto é que o ordenamento jurídico permite os efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal sejam modulados ao se declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (art. 27 da Lei n. 9.868/99) e quando houver alteração de jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos (art. 927, § 3º, do CPC), além da possibilidade do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça determinarem a suspensão de processos em todo o território nacional quando do processamento do incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 1.029, § 4º, do CPC);
p) A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, com a alteração dada pela Lei n. 13.655, de 2018, passou a prever que as decisões administrativas e judiciais devem levar em consideração as consequências jurídicas e administrativas (art. 21);
q) Ao se interpretar a norma, o gestor público – e o juiz – deve considerar as dificuldades e obstáculos reais que serão enfrentados pelos destinatários das decisões (art. 22 do Decreto-Lei n. 4.657/42). As decisões judiciais devem ser exequíveis e terem aplicabilidade prática, observando-se a realidade e possibilidade de implementação, não devendo desconsiderar a realidade social e econômica;
r) Muitas comarcas não possuem carros oficiais que estejam em boas condições e que permitam viajar pelas estradas com segurança, não sendo possível obrigar que o juiz utilize seu próprio carro, por ser particular, para viajar. Além do mais, é inviável obrigar o juiz a viajar de ônibus, em razão dos horários e compromissos profissionais, o que causaria um tumulto na agenda profissional do magistrado. Soma-se ainda o desgaste e cansaço das constantes viagens para outras comarcas, atrelado à restrição do convívio familiar, o que comprometerá, inclusive, a qualidade da prestação jurisdicional na comarca de origem e na Audiência de Custódia;
s) A Audiência de Custódia deve contar com a presença do Ministério Público e da defesa e a proibição de se realizar a audiência por videoconferência é um dificultador, pois seria necessário compatibilizar a agenda do juiz, do Ministério Público e da defesa e não é a melhor solução o juiz impor um horário de acordo com a agenda do juiz, pois haverá sério risco de não haver promotor de justiça ou defesa no momento da audiência, caso possuam outros compromissos profissionais previamente agendados;
t) O art. 310, § 4ºA eficácia deste dispositivo está suspensa em razão da decisão do Ministro do STF Luiz Fux, na Medida Cautelar na ADI 6.299., do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n. 964/19, passou a prever que “Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva”, ou seja, a própria legislação processual penal permite a não realização da Audiência de Custódia no prazo estabelecido e não sendo possível a sua realização em curto espaço de tempo poderá perder a oportunidade de se detectar eventuais lesões causadas no preso;
u) A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) – ratificada pelo Brasil diante do Decreto 678/92 – assevera no art. 7º, item 5, que “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”. Ou seja, a Convenção obriga a condução à presença do juiz, mas não menciona que a presença, necessariamente, será físicaEm sentido diverso, Luiz Henrique Silva Almeida, argumenta que: “A normativa internacional é clara ao estabelecer que o preso deve ser conduzido à presença da autoridade judicial e a realização da audiência pelos meios virtuais violam ambas expressões destacadas. O termo “conduzir” significa transportar de um local a outro. E por óbvio que existe um abismo semântico que separa a expressão “presença” da “ausência”, efetivada na prática com audiências virtuais. Ora, somente o contato físico com o detido possibilita o exame da veracidade relacionada a eventuais relatos de maus-tratos sofridos, pois celulares e câmeras são incapazes de reproduzir todo o ambiente e jamais se saberá se, por trás de uma porta fechada ou por meio de escuta ambiental, não haverá quem esteja tomando ciência da fala do preso, de modo a castigá-lo se denunciar os abusos a que tenha sido submetido. Ademais, não há como ignorar que o preso se sentirá naturalmente mais intimidado para denunciar ações arbitrárias cometidas pela polícia de dentro de qualquer tipo de prisão onde esteja, muitas vezes nas dependências da própria polícia que efetuou sua prisão. A realização da audiência de custódia em meio virtual desnatura o sentido do ato, inviabilizando, em boa medida, eventual apuração de tortura e maus tratos no momento da prisão.” Disponível em: <https://www.justificando.com/2017/05/31/as-audiencias-de-custodia-e-o-jeitinho-brasileiro/ >. Acesso em: 15/02/2020. , razão pela qual não há nenhum impeditivo de que a condução seja à presença remota, pois ao mencionar que haverá condução é possível interpretar que será levado ao fórum para que tenha contato com o juiz (físico ou por videoconferência), pois o mais importante é a ocorrência da Audiência de Custódia quando não houver possibilidade da presença física, como a hipótese de inexistência de juiz na comarca;
v) O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – ratificado pelo Brasil diante do Decreto 592/92 – assegura no art. 9º, item 3, que “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. (…)”, devendo-se aplicar as mesmas razões acima exposta;
w) O artigo 1º da Resolução n. 213/15 do Conselho Nacional de Justiça determina que “toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, seja obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.”, o que permite afirmar que a Resolução n. 213 do CNJ obriga a apresentação, mas não veda que a apresentação ocorra por videoconferência;
x) Permitir a realização de Audiência de Custódia por videoconferência possibilita, inclusive, a participação da Defensoria Pública, que na maior parte das comarcas do país, não está presente, e Defensores Públicos de plantão na Capital do Estado, por exemplo, poderão participar das audiências de custódia, o que permitirá assegurar os direitos dos presos de forma mais intensa, na medida em que advogados nomeados somente para as audiências de custódia, muitas vezes, trabalham de “graça”, seja em razão da demora de anos e anos para receberem os honorários, seja pelo baixo valor fixado para a realização da Audiência de Custódia, o que acaba por não motivá-los a exercerem uma defesa plena, como exercem ao serem remunerados diretamente pelas partes que os contratam.
y) É perfeitamente possível que na audiência por videoconferência, o preso tenha contato prévio e reservado com o defensor, o que pode ocorrer quando o defensor estiver, fisicamente, ao lado do preso, ou então por intermédio de uma videoconferência exclusivamente entre o preso e o defensor, para só após, iniciar a videoconferência da Audiência de Custódia;
z) Deve haver uma ponderação de valores e todos os argumentos ora expostos devem ser analisados para se chegar à conclusão que diante da dificuldade real de se exigir a presença constante de um magistrado nas comarcas desprovidas de juiz para realizar Audiência de Custódia, dada a impossibilidade fática do juiz ter contato pessoal com o preso, a consequência de se impedir a realização de Audiência de Custódia por videoconferência terá efeito reverso e as audiências de custódia poderão deixar de serem realizadas, razão pela qual deve-se passar a permitir a presença remota do juiz.
Diante de todo o exposto, para encerrar, faz-se o seguinte questionamento: entre realizar a Audiência de Custódia por videoconferência e não realizá-la, qual opção deve prevalecer? Sem dúvidas, é a primeira opção.