Limites à criminalização do descumprimento de medidas administrativas sanitárias
Para o controle do coronavírus no Brasil foram implementadas várias medidas sanitárias por órgãos do Poder Executivo da União, Estados e Municípios. Sua fiscalização foi realizada pela polícia, e se considerou que seu descumprimento configuraria um delito de desobediência ou de infração de medida sanitária preventiva.
Este artigo tem por objeto a análise da tipificação penal dessas condutas, independentemente do mérito da adequação ou necessidade da implementação das medidas sanitárias correspondentes.
Seu objetivo é demonstrar a impossibilidade jurídica de responsabilização penal em decorrência do descumprimento de medidas sanitárias definidas por governos estaduais e municipais mediante atos administrativos que prevejam sanções para o caso de suas infrações. A argumentação será baseada em dois fundamentos:
a) a impossibilidade de complementação de uma lei penal (art. 268 do Código Penal) por Estados e Municípios, devido à competência exclusiva da União para legislar sobre Direito Penal, e;
b) a impossibilidade da incidência de sanção penal para os casos de desobediência a uma ordem de um funcionário público (art. 330 do Código Penal) cujo conteúdo seja o cumprimento de uma norma administrativa, e para cuja infração seja prevista uma sanção de natureza
1 – A legislação federal:
A Lei nº 13.979/2020 definiu três medidas sanitárias que podem ser adotadas para o enfrentamento desta emergência de saúde pública:
a) o isolamento de pessoas doentes ou contaminadas, além de objetos e animais afetados (arts. 2º, I e 3º, I);
b) a quarentena, definida como a restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação, das pessoas que não estiverem doentes (arts. 2º, II e 3º, II) e;
c) a restrição excepcional e temporária da entrada e saída do país, e da locomoção interestadual e intermunicipal, por rodovias, portos ou aeroportos (art. 3º, VI, com a redação dada pela MP nº 926, de 26/03/2020).
Posteriormente, a Portaria nº 454/2020 do Ministério da Saúde definiu uma medida restritiva adicional, não prevista na Lei nº 13.979/2020. Trata-se do distanciamento social imposto às pessoas com mais de 60 anos de idade, que devem restringir seus deslocamentos para a realização de atividades estritamente necessárias, evitando transporte de utilização coletiva, viagens e eventos esportivos, artísticos, culturais, científicos, comerciais e religiosos e outros com concentração próxima de pessoas (art. 4º).
Esta medida viria a ser denominada “isolamento vertical”.
2 – As legislações estaduais e municipais:
Posteriormente, vários Estados e Municípios adotaram medidas complementares, com a restrição de atividades laborais, comerciais e prestação de serviços de forma generalizada, e também limitação da circulação interestadual e intermunicipal de pessoas, assim como de veículos de transporte coletivo de passageiros. Além disso, foram suspensas as aulas presenciais em instituições de ensino, foi proibida a reunião de pessoas a qualquer título, e ainda foi proibida a circulação de pessoas por espaços públicos, tais como praças, parques, praias e, inclusive, calçadas de ruas.
Estas medidas passaram a ser denominadas “isolamento horizontal”, e a quantidade de regulamentações, assim como a variedade de seus conteúdos, abrangências, prazos e requisitos, inviabiliza uma descrição minimamente homogênea que permita uma definição geral das atividades proibidas, bem como de suas características e períodos.
3 – A consequências penais:
A polícia passou a fiscalizar o cumprimento das medidas, e a considerar que seu descumprimento poderia configurar a prática de crimes de descumprimento de medida sanitária preventiva ou desobediência.
De fato, os arts. 4º e 5º da Portaria Interministerial nº 5/2020 estabelecem que o descumprimento das medidas de isolamento e quarentena previstas no art. 3º, I e II, da Lei nº 13.979/2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais cominadas nos arts. 268 e 330 do Código Penal.
Porém, a classificação de um fato como um delito não decorre da força normativa de uma portaria. Esta classificação jurídica resulta da correspondência do fato com hipótese definida na lei penal, e não de qualquer definição implementada por um ato do Poder Executivo. Portanto, a análise da tipicidade do fato deve ser realizada diretamente em relação ao tipo penal. Isto é o que se fará a seguir.
a) o crime de descumprimento de medida sanitária preventiva:
O art. 268 do Código Penal define este crime da seguinte forma: “infringir determinação do poder público, destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa”.
Esta é uma lei penal em branco, pois as determinações do poder público são estabelecidas em atos normativos complementares. O texto normativo complementar é a Lei nº 13.979/2020, e o conteúdo do elemento do tipo “determinação do poder público” é definido em seus arts. 2º e 3º, da seguinte forma:
O isolamento de pessoas doentes ou contaminadas é uma medida de abrangência individual, determinada por prescrição médica, e cuja validade é condicionada à notificação da pessoa mediante termo de consentimento, conforme dispõe o art. 3º da Portaria/MS nº 356/2020, e os arts. 2º e 3º da Portaria/MS nº 454/2020.
O isolamento de objetos e animais afetados, e a quarentena pessoal, consiste na separação de pessoas, objetos e animais suspeitos de contaminação, de pessoas que não estiverem doentes. Esta também é uma medida de abrangência individual, cuja implementação deve ser realizada conforme os protocolos clínicos e o plano nacional indicados no art. 10 da Portaria nº 356/2020.
A restrição da entrada e saída do país é uma medida de abrangência geral que foi regulamentada por diversas portarias interministeriais, em atendimento ao disposto no art. § 6º do art. 3º da Lei nº 13.979/2020.
O conteúdo destas complementações à lei penal foi implementado por um instrumento idôneo para esta finalidade (uma lei ordinária regulamentada por portarias federais), e é suficientemente determinado, embora sua quantidade e complexidade dificultem o conhecimento de seu conteúdo pelos destinatários das normas.
Porém, em relação às medidas de âmbito geral de quarentena, consistente na restrição de atividades, e de limitações à locomoção interestadual e intermunicipal, há lacunas de complementação da lei penal que impedem sua aplicação.
A legislação federal não definiu quais seriam as atividades restringidas, e também não estabeleceu nenhuma limitação à locomoção interestadual ou intermunicipal. Portanto, na Lei nº 13.979/2020 não há complementação suficiente ao tipo para a especificação de qual “determinação do poder público” seria infringida nestes casos.
No caso da quarentena pela restrição de atividades, o conteúdo tipo não é suficientemente determinado porque a lei não especifica qual atividade esteja restringida, e nem de que forma. Portanto, não está identificada que medida possa ser descumprida pelo destinatário da norma. Isto inviabiliza a configuração de uma hipótese delitiva, pois as restrições mencionadas não tiveram seu objeto definido. Ou seja, embora a lei tenha previsto formalmente a existência da medida, não definiu qual seria esta medida.
Como o complemento do tipo integra o próprio tipo, também é submetido ao princípio da taxatividade, em decorrência do qual a lei deve ter um conteúdo certo. A mera previsão legal da medida da quarentena com a restrição de atividades, sem a especificação de quais sejam estas atividades, é uma disposição vaga que não satisfaz os requisitos de certeza do princípio da legalidade. Portanto, não pode complementar uma lei penal em branco, nem produzir efeitos penais.
Um problema diferente pode ser identificado em relação à medida de distanciamento social (ou “isolamento vertical”) implementada pela Portaria/MS nº 454/2020.
Apesar de o objeto desta medida ser suficientemente determinado, a Lei nº 13.979/2000 não atribuiu ao Ministério da Saúde a competência para a criação de outras medidas sanitárias complementares, distintas das definidas nos arts. 2º e 3º da referida lei. A única competência ministerial definida na lei em relação ao conteúdo das medidas sanitárias foi especificada no § 5º do art. 3º, e consiste na disposição relativa à fixação de condições e prazos das medidas de isolamento e quarentena.
Como a medida de distanciamento social foi instituída mediante uma portaria, sem que a lei correspondente tenha atribuído expressamente a competência ao emissor do ato para sua implementação, esta disposição não pode complementar uma lei penal em branco, devido ao princípio da legalidade definido no art. 1º do Código Penal.
Por este motivo, independentemente da valoração do conteúdo do ato, e da possibilidade jurídica de seus eventuais efeitos administrativos, a medida sanitária de distanciamento social (ou “isolamento vertical”) implementada pela Portaria/MS nº 454/2020 não pode complementar uma lei penal.
Porém as medidas que ensejam maiores dificuldades de aplicação no âmbito penal são as medidas de “isolamento horizontal” estabelecidas por atos normativos estaduais e municipais.
A Lei nº 13.979/2000, em seu art. 3º, § 7º, II, possibilitou aos gestores locais de saúde a adoção das medidas relacionadas nos incisos I, II e VI, do art. 3º (o isolamento, a quarentena e a restrição à circulação de pessoas), mas não a definição de outras medidas distintas daquelas. Porém, várias medidas foram implementadas em diferentes Estados e Municípios, cujo conteúdo é diferente do definido pela Lei nº 13.979/2000, e que têm uma abrangência mais restritiva.
O problema é que o art. 22, I, da Constituição Federal estabelece expressamente que: “compete privativamente à União legislar sobre direito penal”. Consequentemente, não é juridicamente possível a utilização de decretos estaduais e municipais para integrar uma lei penal em branco.
Esta vedação constitucional garante a uniformidade do Direito Penal em todo o território nacional, e se não existisse esta reserva de competência, um mesmo fato poderia ser considerado crime em uma cidade, e não em outra. Se isto ocorresse, teríamos uma legislação penal completamente caótica no país, porque cada Estado e Município restringiu diferentes atividades, de diversas formas, e com prazos distintos.
Portanto, o eventual descumprimento de medidas sanitárias implementadas por regulamentações estaduais e municipais que não correspondam exatamente ao conteúdo especificado na Lei nº 13.979/2000, não poderá ser classificado como um fato típico nos termos do art. 268 do Código Penal.
Em síntese, as medidas sanitárias cujo conteúdo pode corresponder a uma “determinação do poder público” para a configuração da hipótese prevista no art. 268 do Código Penal, são somente as definidas nos arts. 2º e 3º da Lei nº 13.979/2020. Nos demais casos, se a norma que impõe as respectivas medidas sanitárias for válida, seus efeitos serão restritos ao âmbito administrativo, e suas eventuais consequências jurídicas terão esta mesma natureza.
a) o crime de resistência:
O art. 330 do Código Penal define este crime da seguinte forma: “desobedecer a ordem legal de funcionário público”.
O significado do elemento objetivo do tipo “ordem” de funcionário público, corresponde a um comando pessoal, proferido de forma direta por uma pessoa física que tenha a qualidade de funcionário público, e dirigido especificamente a uma outra pessoa física perfeitamente individualizada.
Esta “ordem” não se confunde com o comando geral, abstrato e impessoal, que forma o conteúdo de uma norma jurídica, porque, se não fosse assim, qualquer conduta ilegal seria classificável como uma “desobediência”. Portanto, uma proibição, seja ela estabelecida por uma lei ou um decreto, não é uma “ordem”, no sentido do art. 330 do Código Penal.
Por exemplo, se uma pessoa estiver caminhando pela rua e for abordada pela polícia, o fato de estar descumprindo uma norma jurídica geral implementada por um decreto que imponha o “isolamento social” pode configurar uma infração administrativa, mas ela não estará descumprindo uma “ordem” emitida por um “funcionário público”, e diretamente endereçada a si.
A desobediência somente poderia se configurar se o funcionário público (no caso, o policial) lhe ordenasse de forma pessoal e direta a cessação da atividade proibida pelo decreto, e a pessoa descumprisse esta ordem de forma imediata. Porém, o mero exercício de qualquer atividade proibida pelo decreto não configura, em si, uma desobediência a uma “ordem”, nos termos do art. 330 do Código Penal. Portanto, o fato não é típico em relação a esta norma penal.
De todo modo, mesmo no caso de descumprimento da ordem proferida pelo policial, há um requisito estrutural adicional à classificação deste fato como um delito. Trata-se da inexistência de sanção administrativa aplicável pela infração cometida. Caso o descumprimento da medida sanitária enseje a incidência de alguma sanção administrativa, o desatendimento a uma ordem de um policial que exija seu cumprimento não produzirá efeitos penais.
Portanto, se houver previsão de sanção administrativa pelo descumprimento da medida sanitária cuja observância o policial determinou ao proferir a ordem, a infração não ensejará a incidência de consequências penais, mas somente administrativas.
Conclusões:
As medidas sanitárias cujo descumprimento pode configurar o crime tipificado no art. 268 do Código Penal são: a) o isolamento individual de pessoas doentes ou contaminadas, além de objetos e animais afetados; b) a quarentena individual, consistente na separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estiverem doentes, e; c) a restrição da entrada e saída do país.
As medidas de quarentena cujo objeto seja a restrição de atividades, e de restrição da locomoção interestadual e intermunicipal por rodovias, portos ou aeroportos, não foram definidas na regulamentação federal.
Eventuais medidas adicionais definidas por órgãos estaduais ou municipais, não produzem efeitos no âmbito penal, embora possam produzir efeitos jurídicos no âmbito administrativo.
A fiscalização do cumprimento das medidas sanitárias pode ser realizada pela polícia, mas eventual desatendimento a uma ordem cujo conteúdo seja a observância dessa norma, somente configurará crime de desobediência se não houver uma sanção administrativa cominada para esta hipótese.
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