Conforme sinalizamos na coluna da última semana, voltaremos ao tema do conflito entre liberdade de imprensa e a preservação da honra, imagem e intimidade das pessoas. Ambos os valores, como sabemos, são protegidos constitucionalmente, e não é fácil nem simples optar por um em detrimento do outro. Traremos, a seguir – mais para levantar a discussão do que para propor qualquer critério definitivo, naturalmente – alguns tópicos que podem ser levados em conta nas interpretações e decisões que se vejam diante do difícil problema de saber até que ponto é lícita a divulgação de fatos ou imagens.
Balzac, o admirável escritor francês, dizia: “Se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la”. Rancores à parte, ninguém discute a extraordinária relevância da imprensa nos dias que correm. Diga-se, aliás, que Balzac, embora não gostasse de jornalistas (tendo sido mesmo muito ridicularizado por eles), tentou fundar dois jornais, falindo – em ambas as tentativas – em poucos meses.
Voltemos ao ponto central da discussão. O direito constitucional contemporâneo maneja, habitualmente, um tema cuja relevância ganha a cada dia intensidade: a ponderação de bens. Como resolver o conflito entre princípios? Como optar por um deles – liberdade de imprensa versus intimidade, honra e vida privada – se ambos tem idêntico status constitucional? No caso da liberdade de imprensa – direito de informar e direito de ser informado – contra o direito à intimidade e a vida privada, temos um clássico caso da necessidade de ponderar bens e princípios.
Não é possível dizer, de modo prévio, qual princípio irá prevalecer. A resposta depende da ponderação dos valores relevantes nas circunstâncias específicas. Nossa ordem jurídica não tolera a censura; por outro lado, também não aceita que se esvazie o princípio que resguarda a intimidade e a vida privada das pessoas.
Analisaremos a seguir, circunstancialmente, a partir dos critérios sugeridos – veracidade do fato, licitude do meio empregado na obtenção da informação, personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia, local e natureza do fato, existência de interesse público na divulgação, e a preferência por medidas que não envolvam a proibição prévia da divulgação – alguns critérios de aferição da razoabilidade ou não da divulgação jornalística.
Um dos mais importantes critérios a respeito da legitimidade da informação jornalística diz respeito à sua veracidade. Informação cuja divulgação se protege, portanto, é a informação verdadeira. Informação falsa gera indenização por danos morais, cujo arbitramento variará conforme as circunstâncias. A doutrina, no Brasil e lá fora, reconhece este ponto. Argumenta Luis Gustavo Grandinetti: “Todos os doutrinadores citados, mesmo os que, em maioria, adotam uma disciplina comum entre expressão e informação, deparam-se com, pelo menos, uma distinção importante entre os dois institutos: a veracidade e a imparcialidade da informação. E é, justamente, em razão dessa distinção fundamental que se deve pensar em um direito de informação que seja distinto em sua natureza da liberdade de expressão”.
Há algum tempo adquiriu notoriedade o caso do pediatra acusado de terríveis casos de pedofilia. Parece evidente que esse médico – condenado a 114 anos de prisão pelo TJSP – não tem direito à indenização por danos morais se revista de grande circulação publica notícia dando conta do caso, com o título: “O médico é o monstro” – fazendo trocadilho com a célebre obra literária “O médico e o monstro”. O pediatra – um renomado profissional até que suas práticas foram descobertas (costumava sedar crianças para abusar sexualmente delas), alegou – na ação civil que propôs contra a revista “Época” – que sofreu danos à imagem. O TJSP constatou que os fatos narrados na publicação são verdadeiros, sequer foram negados pelo autor, e que a reportagem se manteve nos limites do dever de informar (TJSP, AC 484.279.48-00).
Porém nem sempre – diríamos até: quase nunca – é simples discernir, com clareza, a verdade da informação. Em grande parte dos casos haverá nebulosidade e contradita. Argumenta Castanho de Carvalho: “É certo que, nos casos concretos, torna-se difícil estabelecer o que é verdade e o que é falsidade. Qualquer que seja o critério adotado, há que levar em conta essa dificuldade e há que ser flexível. O que se deve exigir dos órgãos de informação é a diligência em apurar a verdade; o que se deve evitar é a despreocupação e a irresponsabilidade em publicar ou divulgar algo que não resista a simples aferição”.
O que se exige dos veículos de comunicação é que ajam banhados pela boa-fé. Que busquem padrões mínimos de cuidado e zelo, com a constante checagem do que publicam. Serão responsabilizados se agem levianamente nessa delicada tarefa. Diga-se, a bem da verdade, que – excepcionados certos abusos, lamentáveis e nefastos – os órgãos de comunicação brasileiros apresentam níveis louváveis nos pontos referidos. Outro ponto de relevância: o meio empregado deve ser lícito. Se não for, a informação surge com esse vício de origem. Informações sigilosas vazam frequentemente para a imprensa, o que, se por um lado pressiona as instituições públicas a agirem com eficiência e sem corporativismos, por outro pode atingir irreversivelmente pessoas inocentes.
A tendência, em linha de princípio, é guardar prudente cautela diante de informações provindas de meios ilícitos. Não estamos, é certo, em âmbito estritamente processual, a cujo respeito a Constituição Federal, de modo absoluto, proscreve as provas obtidas por meios ilícitos (CF, art. 5º, LVI). O que discutimos neste tópico são informações veiculadas pela imprensa cuja obtenção ocorreu de forma irregular – através de escuta telefônica não autorizada pela justiça, por exemplo, ou escuta telefônica cuja investigação segue em segredo de justiça. É preciso, no entanto, não adotar posição inflexível neste tópico. A ponderação de bens deverá atuar também aqui. Não se exclui que o interesse da sociedade na divulgação de certos fatos seja maior do que a preservação da forma eventualmente violada. O direito atual, aliás, caminha no sentido de privilegiar a função no lugar da estrutura, comprometendo-se com fins.
Diga-se ainda que a Constituição Federal preserva o sigilo da fonte jornalística. Prevê o art. 5º, XIV ser “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Um pouco antes, o inciso IX proclama: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Se a imprensa obteve a informação a partir de registros públicos, não haverá, em linha de princípio, dever de indenizar por danos morais. Luis Roberto Barroso teve ocasião de proclamar: “Note-se ainda que a circunstância de a informação estar disponível em arquivos públicos ou poder ser obtida por meios regulares e lícitos torna-a pública e, portanto, presume-se que a divulgação desse tipo de informação não afeta a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem dos envolvidos”.
Porém, mesmo aqui, certas ponderações se impõem. Conforme já alertamos mais de uma vez, em se tratando de responsabilidade civil as respostas serão sempre circunstanciais, dependendo dos contornos do caso concreto. É possível, em alguns casos, que mesmo que a notícia provenha de registros públicos, sua divulgação se mostre esvaziada de qualquer interesse social, sendo agressiva aos direitos da personalidade. Nessa ordem de ideias, a “simples reprodução, por empresa jornalística, de informações constantes na denúncia feita pelo Ministério Público ou no boletim policial de ocorrência consiste em exercício do direito de informar”. Relativiza, porém, o Tribunal: “Na espécie, contudo, a empresa jornalística, ao reproduzir na manchete do jornal o cognome – apelido – do autor, com manifesto proveito econômico, feriu o direito dele ao segredo da vida privada, e atuou com abuso de direito, motivo pelo qual deve reparar os consequentes danos morais” (STJ, REsp. 613.374).
Teremos, na hipótese acima descrita, dano moral. Em outra situação, a editora responsável pela publicação de certo Jornal, em Maringá, foi condenada pela sétima Câmara Cível do TJPR em razão de haver reproduzido boletim de ocorrência que versava sobre flagrante de adultério. O marido traído, que teve a traição tornada pública pelo jornal, receberá quinze mil reais em razão da abusiva divulgação. Note-se que a defesa do jornal se centrou no fato de haver se limitado a divulgar nota constante de boletim de ocorrência elaborado pelo Estado, portanto, se responsabilidade houvesse, seria desse. O Tribunal afastou tal argumentação e condenou o jornal – corretamente, em nosso juízo.
Outro fator da mais alta relevância diz respeito à personalidade pública ou estritamente privada da pessoa objeto da notícia. Alguém que optar, por exemplo, pela vida política, não pode razoavelmente pretender gozar do mesmo grau de privacidade de alguém cuja vida profissional não tenha relação com verbas e interesses públicos. Ninguém é obrigado a ser político. Quem escolhe funções que decidem os rumos da nação deve arcar com os ônus próprios da representação popular. A privacidade do político é nenhuma no que se refira aos negócios públicos, ainda que travestidos de transações privadas. As lentes da imprensa não podem, contudo, de modo desproporcional, se voltar para aspectos da vida do político que só diga respeito a si ou a sua família (dolorosa morte de sua filha, com câncer, por exemplo).
Há, porém, situações em que a balança, em linha de princípio, deve pender para o lado oposto: “Em situação não distante está um ministro da Indústria que mantenha relações privadas, ou estreita relação pessoal, com empresários da indústria química ou farmacêutica” (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 476). Lembremos, rente aos exemplos do jurista italiano, que recentemente a imprensa brasileira revelou que vários dirigentes da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil – mantinham relações comerciais extremamente próximas com as empresas que deviam investigar, em perigosa confusão de interesses.
É preciso ponderar que personalidade pública não significa, necessariamente, ocupante de cargo, emprego ou função pública. O conceito é mais amplo. Cantores, apresentadores, escritores são personalidades públicas, especialmente num mundo cada vez mais cioso da fama e do espetáculo. Devem estar dispostas a um grau menor de privacidade e vida íntima, sem que isso signifique autorização para invasões grosseiras e ofensivas da intimidade de quem quer que seja. Há alguns anos atrás a imprensa publicou minúcias sobre a vida fiscal do então técnico da seleção brasileira de futebol. Foram publicados, inclusive, extratos de suas declarações de renda – a cujo respeito havia fortes indícios de irregularidade. O cargo em questão, em termos formais, é privado, pois a CBF não integra a administração pública. É inegável, porém, a importância que a função de técnico da seleção ocupa do imaginário popular brasileiro, com fortíssima conotação simbólica.
A respeito, em lírico voto, ponderou o desembargador Rui Domingues: “Um grande jogador de futebol como Jairzinho é tão importante para o povo brasileiro como Kant ou Heidegger para um estudante de filosofia na Alemanha. Tais nomes, tais imagens, não podem ser tomadas em vão, nem a troco de nada” (citado em Carlos Affonso Pereira de Souza, “Contornos atuais do direito à imagem”, in RTDC, ano 4, vol. 13, jan/mar de 2003, p. 69). Na semana que vem finalizaremos essa série de artigos, concluindo a análise dos critérios que podem, a título de sugestão, orientar o intérprete ao enfrentar os difíceis casos que envolvem o conflito entre a liberdade de imprensa e a hora, imagem e vida privada das pessoas.