INTRODUÇÃO
Um dos temas recorrentes no sistema penal brasileiro é o das más condições carcerárias, em estabelecimentos penitenciários superlotados e que apresentam constantes e graves violações aos direitos humanos.
Ao lado disso, o Brasil tem apresentado um aumento importante do número de pessoas submetidas ao sistema penal, seja pela privação da liberdade, durante o curso do processo penal ou em consequência de condenação criminal, seja pela imposição de penas ou medidas alternativas.
No Brasil contemporâneo, a punição continua sendo identificada com a imposição de privação da liberdade e, em que pese haver hoje mais pessoas submetidas a penas e medidas alternativas do que encarceradas, isto não mudou a perspectiva social em relação à punição.
Neste contexto, muito se tem relacionado o aumento expressivo do contingente carcerário no Brasil, nos últimos vinte anos, com a adoção de políticas neoliberais, que teriam gerado exclusão social e, por consequência, criminalização da pobreza.
Diante deste quadro, no presente texto, pretende-se questionar se o que acontece no Brasil é inevitável, em face do modelo social e econômico adotado, como sugerido por muitos, ou se é um caso em que a discricionariedade do sistema de justiça de criminal tem sido essencial.
1. EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL
No que se refere à base legal, a execução penal no Brasil se organiza a partir da Constituição da República Federativa do Brasil (CF), em conjunto com outros dispositivos, tais como o Código Penal (CP), o Código de Processo Penal (CPP) e a Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/84 – LEP). A LEP, aliás, foi a resposta a um anseio antigo, mas tem se mostrado incapaz de, por si só, resolver a questão penitenciária no Brasil.
De todo modo, há uma legislação que prevê direitos àqueles submetidos ao sistema penal brasileiro, como nunca antes. Frise-se, a título ilustrativo, que é adotada, de maneira expressa, a jurisdicionalização do processo de execução penal, conforme estabelecido, por exemplo, pelos artigos 1º., 2º., 66 e 194 da LEP.
Uma outra ressalva preliminar que deve ser feita diz respeito ao fato de que o Brasil, com seus elevados índices de criminalidade e importante aumento dessas taxas nas últimas décadas, tem assistido ao incremento bastante mais expressivo da taxa de encarceramentos, além de reformas legais no sentido de tornar mais severa a legislação penal e de execução de penas.
Assim e correndo os riscos das simplificações, pode-se dizer que o sistema penitenciário brasileiro teria cinco características fundamentais: superlotação carcerária, cultura do autoritarismo, violência sistêmica, falta de condições de higiene e oferta insuficiente de trabalho e de estudo.
A superlotação carcerária decorre do fato de há quase o dobro de presos no Brasil do que vagas no sistema penitenciário, como será demonstrado adiante. Diante do excesso de presos, existe também uma cultura autoritária que tenta se justificar na necessidade de manutenção de disciplina.
Com isso, desenvolveu-se uma violência sistêmica, isto é, relações violentas entre funcionários da administração penitenciária e presos, originando-se nos agentes estatais bem como nos internos. Da mesma forma, a própria relação entre os indivíduos privados de sua liberdade não raro é marcada pela prática de atos violentos.
Neste ambiente de violações de direitos, as condições de higiene são muito ruins, tanto como há insuficiente oferta de trabalho e de estudo.
Dentro deste quadro, permanecem os mesmos desafios históricos da execução penal e do sistema penitenciário brasileiro: reduzir a superlotação carcerária, melhorar as condições penitenciárias e tornar efetivo um sistema de direitos dos presos.
2. AUMENTO DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA
A tendência brasileira de aumento acelerado da população carcerária tem sido identificado com frequência com a adoção de políticas neoliberais desde a década de 90 do século passado.
Aliás, segundo este entendimento, esta seria uma tendência mundial. A implantação de políticas neoliberais e excludentes teriam gerado aumento do encarceramento em escala planetária.
Diversamente, a comparação entre sistemas prisionais e índices de encarceramento de diversos países induz à identificação de diferentes realidades e tendências, não obstante a uniformização de princípios legais e decisões de política criminal nacionais ou internacionais, podendo-se distinguir três tipos de tendências:
De um lado, alguns países situados em diferentes continentes apresentam um crescimento da taxa de encarceramento igual ou superior a cem por cento nas duas últimas décadas. Alguns integrantes desse grupo destacam-se da média regional. No continente Europeu, a Croácia (276%) e Turquia (203%), e, na América do Sul, o Brasil (241%).
Os restantes mantêm percentual entre cem e duzentos pontos percentuais, como por exemplo, na Europa, Macedônia (197%), Sérvia (133%), Chipre (133%), entre outros. Na América Latina, Uruguai (157%), Argentina (143%), Peru (123%), México (101%) e Panamá (100%). No Caribe, o Haiti (161%). Na Ásia, Afeganistão (145%) e Vietnam (126%). Na Oceania, a Nova Zelândia (154%). Na África, as Seichelles (151%), Angola (146%), São Tomé e Príncipe (104%) e Burkina Faso (100%).
Em posição intermediária, outros países apresentam crescimento da taxa de encarceramento inferior a cem pontos percentuais. Na Europa, os Países Baixos (87%) a Inglaterra e País de Gales (70%) e Espanha (58,07%) apresentam os maiores crescimentos desse grupo, seguidos, entre outros, pela Escócia (45,63%), Itália (34%), Noruega (31%), Rússia (25,5%), Alemanha (23,94%) Suécia (23%) e França (16,6%). Na América do Norte, cresce nesses patamares a taxa dos Estados Unidos (23%) e na Oceania, a australiana (51%). Na África, Argélia (32,25%), Cabo Verde (76%), Egito (56,45%), Libéria (34%), Quênia (5,2%) e outros. Na Ásia, Irã (58%) e Brunei (54%).
No extremo oposto ao primeiro grupo, alguns países apresentam taxa de encarceramento decrescente. É o caso da Finlândia, Irlanda do Norte, Andorra, Armênia, Azerbaijão, Estônia, Lichtenstein e Moldávia, todos europeus. Constata-se o mesmo fenômeno na América do Sul, no Suriname e na Venezuela, assim como na África, Camarões, Botswana, Burundi, Congo, Costa do Marfim, Tanzânia, Uganda, Zâmbia, Zimbabwe, Chad, Comoros, Djibouti, Lesoto e, na América do Norte, o Canadá.
A superlotação carcerária, por sua vez, é frequente, mas não é regra, além de seus níveis variarem de país para país. Como exemplos, podem ser mencionados: Austrália (105,9%), Irã (192%), África do Sul (131,7%), Argentina (101%), Itália (140,1%), Inglaterra e País de Gales (105,2%) e França (118,1%), sendo a maior taxa de ocupação a do Haiti (417%).
Há também taxas de encarceramento bastante elevadas, como o caso dos Estados Unidos (707 por 100.000 habitantes) e da Rússia (472 por 100.000 habitantes).
Ressalte-se, todavia, que nestes dois que são seguidamente identificados como Estados penais e que adotaram políticas alegadamente neoliberais, a situação é bastante distinta da brasileira.
Isto porque não existe superlotação carcerária no sistema norte-americano (99% das vagas ocupadas) e redução do número de presos de maneira regular desde 2008.
Já na Federação Russa, após atingir o número de 1.009.863 presos e uma taxa de encarceramento de 688 presos por 100.000 habitantes em 1998, em 1 de janeiro de 2014, havia 677.200 presos, 472 presos por 100.000 habitantes e uma taxa de ocupação de 83,6%.
Como pode ser percebido dessa pequena amostra de dados de diversos países do mundo e da existência de uma certa tendência de aumento do número de presos em países que adotam um certo modelo ocidental, não existe regra geral e ainda que se considere uma possível influência de políticas neoliberais, para que a situação em cada país encontre fundamento muito mais em razões locais, do que na adoção modelos globalizados ou universais.
Se a opção pelo encarceramento em larga escala parece ser nacional e não decorrência natural e inevitável da adoção modelo neoliberal, é preciso entender a realidade brasileira e buscar alternativas a esse modelo.
3. SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO
Atualmente, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), os dados consolidados quanto à população carcerária, números relativos a dezembro de 2012, havia 548.003 presos, sendo 513.713 no sistema penitenciário e 34.290 detentos em outros estabelecimentos. Frise-se que um dos problemas mais graves do atual sistema penitenciário brasileiro consiste na superpopulação carcerária, pois há apenas 310.687 vagas, o que gera toda sorte de dificuldades e más condições no cárcere.
Neste contexto, alguns aspectos precisam ser realçados. O primeiro diz respeito ao constante aumento do encarceramento no País. Apenas entre dezembro de 2007 e dezembro de 2010, o contingente prisional passou de 422.590 para os mencionados 496.251 presos.
Outro ponto diz respeito ao fato de que o Estado brasileiro tem feito um esforço muito grande de construção de estabelecimentos penitenciários. É por esta razão que, em 2003, havia 211.255 vagas nos estabelecimentos penitenciários brasileiros e, em 2010, 298.275 vagas. Ao mesmo tempo, a taxa de encarceramento aumentou muito. Em 1995, havia 95,5 presos por 100.000 habitantes. Em 2003, 181,6
presos por 100.000 habitantes, em 2010, 259,17 presos por 100.000 habitantes, até atingir 287,31 em dezembro de 2012.
Significa dizer que, embora o Brasil esteja construindo mais vagas do as que existem na maior parte dos países do mundo, isto não tem tido um impacto importante na superlotação carcerária, visto que as taxas de encarceramento seguem muito elevadas e crescendo de maneira acelerada. Neste contexto de superpopulação carcerária, as condições dos presos são, em geral, muito ruins e o respeito às regras penitenciárias é muito difícil.
Outro problema é a importância dos presos cautelares nesses números. A prisão cautelar representa mais de um 1/3 do total das pessoas presas no Brasil. Em dezembro de 2012, havia 229.326 presos cautelares. Além disso, existe uma grande concentração no estado de S. Paulo, no qual existiam, em dezembro de 2012, 195.695 presos, com apenas 102.312 vagas. Desse total, outro dado a ser observado é que, desse total, havia 62.843 presos provisórios, para os quais não havia ainda condenação penal.
As principais causas de encarceramento são: crimes contra o patrimônio (267.975 presos), drogas (138.198 presos) e homicídio (63.066 presos).
Quanto a este último ponto, nota-se que a expansão do sistema penitenciário brasileiro não se deveu ao que se convencionou chamar de “expansão do direito penal”, em que haveria novas incriminações para novos bens ou interesses, surgidos na sociedade pós-moderna, mas, sim, a crimes previstos tradicionalmente e relacionados com o que se convencionou chamar de direito penal liberal.
4. MEDIDAS NECESSÁRIAS PARA LIDAR COM A SITUAÇÃO CARCERÁRIA
Pode-se fazer referência a três medidas que seriam necessárias e que talvez sejam as respostas mais óbvias ao desafio que o sistema penitenciário impõe: a construção de novos estabelecimentos penitenciários, a adoção de medidas legais para redução do contingente carcerário e a conscientização da gravidade da situação.
Como já foi mencionado, tem havido a construção de prisões, mas tal inciativa não tem sido suficiente para reduzir a superlotação carcerária diante do aumento acelerado do número de pessoas privadas de liberdade no Brasil.
No que se refere a inovações legislativas que reduzam contingentes carcerários, nas últimas duas décadas – período caracterizado pela acelerada expansão penitenciária brasileira – foram adotadas medidas desencarceradoras importantes no âmbito da política criminal, quais sejam:
- Lei 714/98, que possibilita a substituição de penas privativas de liberdade pelas restritivas de direito ou pecuniárias para infrações cometidas sem violência com grave ameaça com pena de até 4 anos e o réu não for reincidente;
- Lei 099/95, que prevê possibilidade de transação penal, suspensão condicional do processo nas infrações de menor potencial ofensivo;
- Lei 258/10, que introduz o monitoramento eletrônico na execução penal;
- Lei 403/11, que amplia o rol de medidas cautelares no processo penal
Não obstante as estratégias adotadas, persiste a tendência de crescimento da taxa de encarceramento no Brasil, não se identificando, porém, projetos de longo prazo destinado ao enfrentamento da questão, além de um esforço governamental para a ampliação do número de vagas e a edição de indultos natalinos.
Em realidade, pode-se dizer que as leis pretensamente desencarceradoras serviram mais para aumentar a rede penal, do que para reduzir contingentes carcerários.
Para ilustrar o que aqui foi dito, as penas alternativas foram estabelecidas no direito brasileiro com a Parte Geral do Código Penal brasileiro (Lei nº 7.209/1984) e ampliadas com a Lei nº 9.714/1998. Em ambos os casos, pretendia-se reduzir contingentes carcerários. Desde então, houve uma mudança estatística importante no sistema penal brasileiro: o número de pessoas submetidas a penas e medidas alternativas ultrapassou o número de pessoas presas. Em 2009, havia, no Brasil, 671.078 pessoas submetidas a penas ou medidas alternativas em 2009, quase 200.000 a mais que presos, incluindo condenados ou presos cautelares.
Nesse sentido, as penas alternativas não foram capazes de reduzir contingentes carcerários e nem sequer reduzir o ritmo de crescimento da população carcerária. Como dito acima, parece, portanto, que, ao invés de haver desencarceramento de indivíduos com a adoção de penas alternativas, estaria ocorrendo no Brasil, uma ampliação do controle penal. Ou seja, indivíduos que, no passado, talvez não fossem submetidos a nenhuma sanção ou mesmo restrição penal, passaram a ter impostas medidas alternativas à prisão, enquanto que o encarceramento segue em altíssimas taxas.
O que se pode concluir é que, com os números acima apresentado, as penas alternativas, ao invés de desencarcerar, serviram para ajudar o Brasil a se tornar o verdadeiro Estado penal.
Desta maneira, reformas legais que pretendam reduzir contingentes carcerários e promover o respeito aos direitos dos condenados, por si só, não deverão ser capazes de atingir as metas pretendidas, que é o que a experiência brasileira tem indicado.
Parece que a opção pelo encarceramento em larga escala, como adotado no Brasil, é uma opção político criminal brasileira, ou seja, um exemplo evidente de discricionariedade que tem se mostrado inadequado e danoso. Ao invés se mostrar uma solução aos problemas contemporâneos, tal opção tem sido responsável por péssimas condições carcerárias, violações constantes e graves dos direitos, além de pouco efeito para redução de criminalidade.
Sendo assim, é absolutamente necessário que ocorra uma conscientização geral da gravidade da situação brasileira, que não encontra paralelo no mundo.
No entanto, tomada de consciência e modificação, em sociedade, da maneira com que a resposta penal é entendida e adotada não parece factível a curto prazo e, por isso mesmo, ainda que necessária e urgente, não deverá gerar resultados de imediato.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que se pretendeu demonstrar no presente artigo é o que o modelo penal brasileiro, com ampliação dos contingentes carcerários e, mais ainda, do número de pessoas submetidas a penas e medidas alternativas, parece ser insustentável.
Certo é que, nunca na antes história brasileira, houve um conjunto de regras protetivas dos direitos dos presos, decorrentes de documentos internacionais, da Constituição Federal e da legislação penal e de execução penal.
Esse conjunto legal, todavia, não foi capaz de, por si só, modificar a realidade penitenciária.
Sendo assim, modificações na execução penal e no sistema penitenciário são absolutamente necessárias e urgentes.
Ressalte-se que a situação do Brasil não decorre de nenhuma inevitabilidade estrutural, mas sim de escolhas nacionais, que, provavelmente só serão realmente modificadas com uma mudança cultural quanto à punição e ao encarceramento.
Assim, o futuro da prisão no Brasil depende, para que a realidade carcerária brasileira seja melhor que a atual, de uma atualização, afastando a ideia do “Nothing works” e de que a prisão será sempre péssima, assim como a naturalidade com se convive com a miséria prisional.
Mais que isso, a situação prisional brasileira decorre de uma opção discricionária do Estado brasileiro e, em particular, do sistema de justiça criminal, que tem produzido esta distorção.
Para aprofundar-se, recomendamos: A Discricionariedade nos Sistemas Jurídicos Contemporâneos (2019)