É triste perceber que a história humana, em muitas e sangrentas páginas, foi uma coleção de brutais perseguições a pessoas ou comunidades que, por esta ou aquela razão, pensavam ou se comportavam de modo diferente do padrão da época. Dando seguimento ao que falamos na semana passada, abordaremos, hoje, outras tristes formas de preconceito. As discriminações em razão das opções sexuais, as discriminações em razão da origem geográfica e a discriminação em virtude do gênero.
A qualquer observador razoavelmente atento é fácil perceber que o direito em geral caminha, a passos firmes, rumos a um futuro de progressiva interação com a ética. O direito não se legitima mais – como se pensou no passado – apenas pela forma. É fundamental a observância de certos conteúdos. Pontes de Miranda, com a genialidade que o distinguia, ponderou no início do século passado: “Há evolução intrínseca do direito. Algo que hoje reputamos por bom e estável, tempo virá que o tenha por imprestável e iníquo. A relatividade das coisas humanas e das instituições sociais é a mais evidenciada e fecunda das lições da história das sociedades; é ainda, porém, a ideia em que menos creem os nossos contemporâneos: julgam-se ao topo de um castelo e dele contemplam, como os mais felizes, as gerações que os antecederam. É a ilusão produzida pelo presente; mas dia virá em que consideraremos injustas regras jurídicas de hoje e escrever-se-ão entre iniquidades, como agora o fazemos quanto aos costumes de Santarém e de Cima-Coa, muitos artigos dos melhores códigos” (Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, tomo LIII. Rio de Janeiro: Borsoi, 1966, p. 19/20). Atualmente – como proclamou, com finura, García de Enterría – o interesse público reside na promoção dos direitos fundamentais.
Em relação às discriminações oriundas das opções sexuais ainda há muito que se caminhar. São frequentes as discriminações, explícitas ou veladas, dirigidas a quem realizou opções sexuais que fogem do padrão clássico entre homem e mulher. Embora tenhamos avançado nas últimas décadas, é inegável que ainda existem, em graus variados, na sociedade brasileira, preconceitos contra as opões sexuais. O direito civil, tradicionalmente conservador, tem se mostrado, no entanto, nos últimos anos, um fiel combatente dos preconceitos.
A doutrina mais atenta sempre insistiu na necessidade do reconhecimento da aplicação dos direitos fundamentais não apenas perante o Estado, mas também, de igual modo, perante os particulares. O STF reconheceu a tese da aplicação direta dos direitos fundamentais às relações privadas (Drittwirkung) – também chamada de eficácia horizontal dos direitos fundamentais – aplicando as garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa às associações privadas (STF, RE 201.819, DJ 27/10/06). Os poderes não-estatais, dessa forma, estão sujeitos à observância dos direitos fundamentais.
Não apenas aos particulares como também ao Estado são vedadas interferências indevidas na comunhão criada pela família, salvo, naturalmente, para proteger um ou alguns de seus membros de violência de outro ou de outros. Estatui o art. 1.513 do Código Civil: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Desse modo, o “respeito aos princípios consensuais da humanidade, consubstanciados na dignidade da pessoa humana, na igualdade, na liberdade e na intimidade, servirão de fundamento para a construção da nova literatura jurídica do Direito de Família e das decisões judiciais no âmbito dessas relações” (Maria Claudia Crespo Brauner, “Reinventando o Direito de Família: novos espaços de conjugalidade e parentalidade”, RTDC, vol. 18, abr/jun 2004, p. 107).
A Revista Trimestral de Direito Civil, em editorial, constatou: “Que as normas constitucionais, e particularmente o rol dos direitos e garantias individuais, possuam direta eficácia nas relações de direito privado, parece pouco a pouco constituir um consenso para a melhor doutrina, animada sobretudo pelos debates doutrinários desenvolvidos na Alemanha, na Itália e em Portugal, nos últimos 30 anos (…)”(RTDC, editorial, vol.4. out/dez 2000)
No rol de ignorâncias humanas, há aquelas relacionadas aos preconceitos pela origem das pessoas. Há quem julgue seus irmãos pelo local onde nasceram, ou por onde passaram. Tristes equívocos. Pouco há a dizer sobre eles. Há erros que, de tão evidentes, anulam-se por si. Ben Jonson, dramaturgo e poeta inglês do final do século XV, já dizia: “A melhor resposta à calúnia é o silêncio”.
No há, no Brasil, salvo em episódios isolados, graves discriminações relacionadas à origem. Culturalmente multiforme, o Brasil, embora não seja livre de preconceitos – como certos estudiosos apregoam –, também não é, como outros países, visceralmente dividido em grupos em razão da origem étnica ou geográfica de seus habitantes. Verificada, porém, a discriminação, concretizado o dano, cabe a reparação (alguém, em reunião de final de semana, em frente a várias pessoas, diz que a filha não se casará com nordestino).
O Jornal Zero Hora noticiou a brutal intolerância dos surfistas de Florianópolis em relação aos surfistas visitantes. Os “nativos” intimidam severamente os surfistas de fora, ameaçando-os fisicamente, sendo, em vários casos, os visitantes perseguidos e expulsos da água. Ignorância, aliada a uma mal compreendida ideia de identidade cultural, gera torpes episódios como os noticiados.
Em editorial afinado com os rumos contemporâneos da discussão, a Revista Trimestral de Direito Civil exorta que seja “fortalecida a Vontade da Constituição, das leis democráticas e da palavra jurisprudencial”. Diz ainda que: “seja possível alterá-las, criticá-las, discuti-las e conhecê-las amplamente, para a solidificação de nossa identidade cultural e dos valores sociais expressos na ordem pública constitucional” (RTDC, editorial, vol. 17, jan/mar 2004).
Embora cada vez menos comum no atual estágio da evolução social – pelo menos no Ocidente -, a discriminação sofrida pelas mulheres ainda é uma realidade em certos setores. Maria Berenice Dias explica: “Da mesma forma, a desigualdade de gêneros foi banida, e, depois de séculos de tratamento discriminatório, as distâncias vêm diminuindo” (Manual de Direito das Famílias. São Paulo: RT, 2007, p. 63). Em relação a níveis salariais, por exemplo, é espantoso constatar que as mulheres, de fato, ganham menos do que os homens, embora frequentemente sejam mais competentes e responsáveis.
Desníveis salariais, no entanto, escapam aos propósitos da nossa análise. Em relação ao dano moral, se alguém ofender outrem em razão do sexo, a indenização deverá se fazer presente. Se, por exemplo, em reunião de trabalho, um colega ou superior ofende uma colega de trabalho (“uma besteira desse tamanho só poderia vir de uma mulher!”), a indenização compensatória terá lugar. Há pouco tempo um juiz considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), que estabelece normas contra a violência doméstica. O juiz, em sentença, argumentou que a referida lei traz “um conjunto de regras diabólicas”, e completa, com infelicidade difícil de ser superada: “A desgraça humana começou por causa da mulher”.
Diante de tão estreita visão, só cabe invocar o poeta Mário Quintana, que certa vez desabafou: “Cada um pensa como pode…”.