8) Para reconhecimento do crime de furto privilegiado é indiferente que o bem furtado tenha sido restituído à vítima, pois o critério legal para o reconhecimento do privilégio é somente o pequeno valor da coisa subtraída.
O furto é privilegiado (art. 155, § 2º, CP) se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada. A análise do requisito objetivo não é baseada na eventual restituição ou na reparação do dano, mas sim no valor mesmo do objeto:
“A aplicação do privilégio previsto no § 2º do art. 155 do Código Penal exige a conjugação de dois requisitos objetivos, quais sejam, a primariedade do réu e o pequeno valor da coisa furtada, que, na linha do entendimento pacífico desta Corte Superior de Justiça, deve ter como parâmetro o valor do salário mínimo vigente à época dos fatos, sendo indiferente que o bem seja restituído à vítima. Precedentes. Hipótese em que as instâncias ordinárias assentaram que o bem subtraído possuía valor estimado de R$ 2.000,00, montante superior ao valor do salário mínimo à época dos fatos (R$ 954,00), motivo pelo qual é inviável o reconhecimento da forma privilegiada” (AgRg no HC 583.651/SC, j. 23/06/2020).
9) Para efeito da aplicação do princípio da bagatela, é imprescindível a distinção entre valor insignificante e pequeno valor, uma vez que o primeiro exclui o crime e o segundo pode caracterizar o furto privilegiado.
No furto, o pequeno valor do objeto subtraído (requisito do furto privilegiado) não se confunde com o prejuízo insignificante, que, se presente, exclui a tipicidade material:
“1. O princípio da insignificância jamais pode surgir como elemento gerador de impunidade, mormente em se tratando de crime contra o patrimônio, pouco importando se o valor da res furtiva seja de pequena monta, até porque não se pode confundir bem de pequeno valor com o de valor insignificante ou irrisório, já que para aquela primeira situação existe o privilégio insculpido no § 2º do artigo 155 do Código Penal. 2. Para a verificação da lesividade mínima da conduta, apta a torná-la atípica, deve-se levar em consideração a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. 3. A aplicação do princípio da insignificância demanda o exame do preenchimento de certos requisitos objetivos e subjetivos, traduzidos no reduzido valor do bem tutelado e na favorabilidade das circunstâncias em que foi cometido o fato criminoso e de suas consequências jurídicas e sociais. 4. Caso em que se verifica se tratar de situação que atrai a incidência excepcional do princípio da insignificância, consideradas a primariedade do réu e as circunstâncias em que o delito ocorreu (tentativa de furto simples de tubos de desodorante contra estabelecimento comercial), o valor reduzido da res furtiva e a natureza do bem subtraído. 5. Agravo regimental desprovido” (AgRg no AgRg no REsp 1.705.182/RJ, j. 28/05/2019).
10) É inadmissível aplicar, no furto qualificado, pelo concurso de agentes, a majorante do roubo.
No crime de furto qualificado pelo concurso de agentes, a pena cominada varia de dois a oito anos de reclusão. No roubo majorado, a mesma circunstância faz aumentar de um terço a metade a pena de quatro a dez anos de reclusão.
Nota-se a desproporcionalidade criada pelo legislador, que qualifica a pena do crime de furto, no caso de concurso de agentes, de forma mais drástica do que a do roubo, em idêntica situação fática. No furto, dobra-se a reprimenda básica, que passa de 1 a 4 anos para 2 a 8 anos; no roubo (crime mais grave), aumenta-se a pena de 1/3 a 1/2. Diante desse quadro, alguns, por questão de equidade, desconsideram a qualificadora do furto e aplicam a fração de aumento existente no roubo, isto é, no caso de furto qualificado pelo concurso de agentes, em vez de dobrar a pena básica, preferem aumentá-la de 1/3 a 1/2. Em que pese o esforço de justiça, os tribunais têm negado o contorcionismo. O STJ, inclusive, editou a súmula nº 442, que tem exatamente a mesma redação desta tese.
11) Para a caracterização do furto privilegiado, além da primariedade do réu, o valor do bem subtraído não deve exceder à importância correspondente ao salário mínimo vigente à época dos fatos.
O art. 155, § 2º, do CP dispõe que o furto é privilegiado se o bem subtraído é de pequeno valor. A lei, contudo, não define o que se entende por “pequeno valor”. A orientação dominante é de que o objeto furtado não pode ter valor superior ao salário mínimo vigente no momento do crime:
“Em relação à figura do furto privilegiado, o art. 155, § 2º, do Código Penal impõe a aplicação do benefício penal na hipótese de adimplemento dos requisitos legais da primariedade e do pequeno valor do bem furtado, assim considerado aquele inferior ao salário mínimo ao tempo do fato. Trata-se, em verdade, de direito subjetivo do réu, não configurando mera faculdade do julgador a sua concessão, embora o dispositivo legal empregue o verbo ‘poder’” (HC 583.023/SC, j. 04/08/2020).
12) O reconhecimento das qualificadoras da escalada e rompimento de obstáculo – previstas no art. 155, § 4º, I e II, do CP – exige a realização do exame pericial, salvo nas hipóteses de inexistência ou desaparecimento de vestígios, ou ainda se as circunstâncias do crime não permitirem a confecção do laudo.
Quando perpetrado o furto pela destruição ou rompimento de obstáculo a subtração da coisa, ou por meio de escalada, ordena o legislador, para a comprovação da qualificadora, a realização de exame de corpo de delito. É o que dispõe o art. 171 do CPP: “Nos crimes cometidos com destruição ou rompimento de obstáculo a subtração da coisa, ou por meio de escalada, os peritos, além de descrever os vestígios, indicarão com que instrumentos, por que meios e em que época presumem ter sido o fato praticado”.
Em que pese ser peremptório, o dispositivo deve ser interpretado em consonância com o disposto no art. 167 do CPP, segundo o qual, “Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”. Suponha-se que uma residência tenha sido furtada por meio do arrombamento de uma porta. Quando os peritos se dirigem ao local, horas depois, o fecho já está reparado, pois o ofendido não poderia permitir que sua residência permanecesse vulnerável. Nesse caso, porque desapareceram os vestígios, é possível a elaboração do exame de corpo de delito indireto e a formação da prova por outros meios:
“1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é assente no sentido de que a incidência das qualificadoras previstas no art. 155, § 4º, inciso I e II, do Código Penal exige exame pericial para a comprovação do rompimento de obstáculo e da escalada, somente admitindo-se prova indireta quando justificada a impossibilidade de realização do laudo direto.Nesse sentido: AgRg no REsp 1.513.004/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 1º/10/2015, DJe 7/10/2015; AgRg no HC 300.808/TO, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/3/2015, DJe 26/3/2015. 2. No caso, considerando o decurso de prazo entre o fato delitivo e o exame, foi confeccionada perícia indireta dos vestígios no local do crime, na qual foi atestado que a janela do alçapão da obra estava parcialmente danificada e que o cadeado estava no chão totalmente destruído, o que implicou reconhecimento do arrombamento, além de ter sido constado que a escalada seria a única maneira de ingressar no imóvel. Importa destacar, ainda, que a perícia restou assinada por dois peritos. 3 Além do auto de constatação, a incidência das qualificadoras foi reconhecida com fundamento em testemunhos e pela confissão do réu – que admitiu durante o inquérito e em juízo ter arrombado parcialmente uma janela e quebrado um cadeado, além de ter escalado o muro do imóvel -, elementos probantes admitidos pela jurisprudência desta Corte Superior para a incidência do inciso art. 155, § 4º, I e II, do Código Penal. 4. Agravo regimental desprovido” (AgRg no HC 573.801/MS, j. 18/08/2020).
“1. ‘Estando devidamente demonstrada a existência de provas referentes à utilização da escalada para realizar o furto, por meio de filmagem, fotos e testemunhos, ainda que não tenha sido realizado exame de corpo de delito – o qual pode ser suprido pela prova testemunhal, nos termos do que disciplina o art. 167 do Código de Processo Penal -, não há se falar em violação ao art. 155, § 4º, inciso II, do Código Penal, encontrando-se, dessarte, legalmente comprovada a materialidade. Não pode o processo penal andar em descompasso com a realidade, desconsiderando-se elementos de prova mais modernos e reiteradamente usados’ (REsp n. 1.392.386/RS, relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 3/9/2013, DJe 9/9/2013). 2. No caso dos autos, consta do acórdão recorrido que o delito foi registrado por meio de gravação audiovisual, corroborada pelo depoimento da vítima em juízo, bem como pelo relatório de investigação. Desse modo, não há que se falar no decote da qualificadora referente ao rompimento de obstáculo. 3. Agravo regimental desprovido” (AgRg no HC 601.270/SC, j. 20/10/2020).
13) Reconhecido o privilégio no crime de furto, a fixação de um dos benefícios do § 2º do art. 155 do CP exige expressa fundamentação por parte do magistrado.
Se caracterizado o furto privilegiado – de cujos requisitos já tratamos –, o juiz deve optar por substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços ou aplicar somente a pena de multa. Não se trata, todavia, de pura discricionariedade. Ao optar por uma das soluções possíveis, o juiz deve justificá-la conforme as circunstâncias do caso concreto, observando a suficiência e a adequação da pena:
“1. Quando o Magistrado reconhece a figura do furto privilegiado, deve declinar as suas razões para optar por quaisquer dos privilégios constantes no § 2.º do art. 155 do Código Penal. A inobservância dessa regra ofende o preceito contido no art. 93, inciso IX, da Constituição da República. 2. No caso, as instâncias ordinárias justificaram a opção por um dos benefícios previstos no § 2.º do art. 155 do Código Penal a partir das circunstâncias do caso concreto – considerando que “a pena pecuniária, na hipótese, não poderá ser arcada pelo acusado, diante de sua condição de hipossuficiente” –, em atendimento ao preceito contido no art. 93, inciso IX, da Constituição da República, de modo que não há constrangimento ilegal a ser sanado. 3. Nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, “Não merece reparo o acórdão recorrido que, aplicando o privilégio estabelecido no § 2º do art. 155 do CP, e visando o caráter retributivo da pena, que não seria alcançado caso fosse aplicada a pena de multa, reduziu a sanção reclusiva imposta, justificando que a pena pecuniária, na hipótese, não poderia ser arcada pelo réu, diante de sua falta de condições financeiras” (AgRg no REsp 1.781.675/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 19/02/2019, DJe 01/03/2019). 4. Conforme orientação jurisprudencial desta Corte, “[s]e ao tipo penal é cominada pena de multa cumulativa com a pena privativa de liberdade substituída, não se mostra socialmente recomendável a aplicação da multa substitutiva prevista no art. 44, §2º, 2ª parte do Código Penal” (AgRg no HC 415.618/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 04/06/2018). 5. Agravo regimental desprovido” (AgRg no HC 582.516/SC, j. 23/06/2020).
14) A lesão jurídica resultante do crime de furto não pode ser considerada insignificante quando o valor dos bens subtraídos perfaz mais de 10% do salário mínimo vigente à época dos fatos.
Como vimos nos comentários à tese nº 9, é necessário diferenciar, no furto, o objeto de pequeno valor do objeto de valor insignificante. É considerado de pequeno valor o bem avaliado em algo próximo do salário mínimo vigente no momento do crime. Para que o furto seja considerado insignificante, convencionou-se que o valor do objeto subtraído não pode ultrapassar 10% (dez por cento) do salário mínimo:
“Na hipótese, tendo em vista o valor da res furtivae, avaliada em R$ 107,67, portanto, superior a 10% do salário-mínimo à época do fato, em 2019, que correspondia a R$ 998,00, resta superado o critério adotado pela jurisprudência e, ausente, pois, o requisito da inexpressividade da lesão ao bem jurídico. Tais circunstâncias, decerto, obstam o reconhecimento da atipicidade material” (AgRg no HC 626.351/SC, j. 15/12/2020).
15) Nos casos de continuidade delitiva o valor a ser considerado para fins de concessão do privilégio (artigo 155, § 2º, do CP) ou do reconhecimento da insignificância é a soma dos bens subtraídos.
Na continuidade delitiva, a série de crimes cometidos nas mesmas circunstâncias de tempo, local e modo de execução é considerada como crime único para os efeitos da aplicação da pena. Nessas circunstâncias, o furto só é considerado de pequeno valor se, somados, os objetos subtraídos não ultrapassam o valor do salário mínimo vigente à época das condutas criminosas. Da mesma forma, o furto só pode ser insignificante se o resultado da soma de todos os objetos permanecer no limite de 10% (dez por cento) do salário mínimo:
“A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que, tratando-se de crimes em continuidade delitiva, o valor a ser considerado para fins de concessão do privilégio (artigos 155, §2º, e 171, §1º, do CP) é a soma da vantagem obtida pelo agente do crime. Precedentes” (AgRg no AREsp 712.222/MG, j. 03/11/2015).
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