Recentemente, no início do mês de julho, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), publicou a Portaria CARF n. 7.974, a qual convoca o Pleno e as Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) e estabelece procedimentos para a análise e votação de enunciado, revisão e cancelamento de súmulas.
Tal norma apresentou diversas propostas de súmulas vinculantes, dentre as quais, se destacam, as propostas 43, 44 e 45, de interesse para o Direito Marítimo e Aduaneiro, principalmente ao mercado shipping.
Primeiramente, a proposta de Súmula Vinculante 43 prevê a responsabilidade tributária solidária dos Agentes Marítimos pelo adimplemento das popularmente conhecidas, multas “SISCARGA”, as multas aplicadas pela Receita Federal do Brasil em razão do descumprimento dos prazos para prestação e retificação de informações no SISCOMEX-CARGA.
Foi por meio do Decreto n° 660/92 que o Sistema Integrado de Comércio Exterior (“SISCOMEX”) foi instituído, sendo conceituado como “o instrumento administrativo que integra as atividades de registro, acompanhamento e controle das operações de comércio exterior, mediante fluxo único, computadorizado, de informações”.
Já o SISCARGA corresponde ao mecanismo de controle aduaneiro sobre cargas e unidades de carga (containers) nos portos alfandegados, regulamentado pela Instrução Normativa RFB n° 800/2007[1], prevendo diversas obrigações a serem cumpridas, que, acaso sejam desrespeitadas, o infrator estará sujeito a um conjunto de penalidades, dentre elas, ao pagamento de uma multa prevista no artigo 107, inciso IV, alíneas “e” e “f”, do Decreto-Lei n° 37/66[2].
Neste caso, devido à redação do caput do art. 37, do Decreto-Lei nº 37/66, assim como do seu §1º, está consolidada a obrigatoriedade ao transportador e ao agente de carga quanto à prestação de informações à Secretaria da Receita Federal do Brasil as informações sobre as cargas transportadas, bem como sobre a chegada de veículo procedente do exterior ou a ele destinado. Verifica-se, portanto, que a norma não contempla a figura do agente marítimo.
Desta forma, a partir da análise do inciso I, do art. 124, do Código Tributário Nacional (CTN), não se pode atribuir a responsabilidade solidária ao agente marítimo, uma vez que, segundo a norma tributária, tal responsabilidade somente se verificará quando houver menção expressa em lei ou decorrente de interesse comum do indivíduo a ser responsabilizado na situação vinculada ao fato jurídico tributário que constitua o fato gerador da obrigação tributária principal, podendo corresponder a um ato lícito ou ilícito.
Conhecendo os personagens do Direito Marítimo, assim como os contratos marítimos e a legislação aduaneira, a responsabilidade somente poderá recair sobre: a) a empresa de transporte internacional[3]; b) a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta; c) o agente de carga[4] e; d) o operador portuário[5]. Tais figuras não se confundem com o agente marítimo, portanto, deve-se ter cautela.
Ademais, a esses personagens é aplicável o art. 94, § 2º, do Decreto-Lei nº 37, de 1966[6] que trata da responsabilidade objetiva pela infração praticada, conjugado com o art. 137, III, b, do CTN[7]. Por esse último dispositivo, a responsabilidade tributária é pessoal havendo dolo específico na prática de infrações, por parte dos mandatários contra seus mandantes.
Paulo Henrique Cremoneze[8] conceitua objetivamente o agente marítimo, como aquele que possui a função de prestar assistência logístico-administrativa ao navio e a sua tripulação, representando o armador:
O agente marítimo é representante do transportador marítimo e/ou, conforme o caso, do Armador. A Agência Marítima, a rigor, não é parte da relação jurídica de transporte, sendo, apenas, mandatária do transportador.
Ora, se a doutrina especializada descarta a presença do agente marítimo da relação jurídica de transporte, conceituando-o, apenas, como um sujeito mandatário do transportador, qual a razão de atribuí-lo uma responsabilidade tributária solidária?
A partir da explicação doutrinária e levando em consideração o art. 137, do CTN, tem-se que para que haja a responsabilidade pessoal (e não, solidária), do agente marítimo, o mandatário do transportador, deve haver prova cabal de que este atuou dolosamente, pois trata-se de uma terceira pessoa na relação jurídico tributária acessória. Deve-se lembrar que o agente marítimo representa o mandante no SISCOMEX CARGA, não atuando em nome próprio, assim como faz um empregado nas relações comerciais, representando a empresa na venda de um bem, diferentemente do agente de carga, conforme abordado oportunamente.
Também, importante o destaque do entendimento jurisprudencial que, embora trate da responsabilidade civil do agente marítimo, excluindo-a, em face do armador, quando são praticados os atos nos limites do mandato mercantil, para fins de argumento quanto à inexistência da responsabilidade tributária solidária se faz indispensável. Vide:
Este Tribunal Superior, ao apreciar o tema, firmou entendimento de que o agente marítimo, figura específica do direito náutico, atua como mandatário mercantil do armador. Isso porque o agente marítimo recebe poderes para, em nome do armador, praticar atos e administrar seus interesses, em terra, de forma onerosa e no interesse deste (art. 653 do Código Civil). Assim, a natureza jurídica da relação entre o agente marítimo e o armador é de mandato mercantil. Logo, a consequência inarredável é a de que o mandatário, quando age nos limites do mandato, não tem responsabilidade pelos danos causados a terceiros, pois não atua em seu próprio nome, mas em nome e por conta do mandante. Ademais, mesmo que o mandatário aja em desconformidade com o mandato, causando danos pela exacerbação de seus poderes, sejam eles fraudulentos ou culposos, ainda assim será o mandante quem responderá perante os terceiros lesados, resguardando-se, neste caso específico, o direito de regresso do mandante contra o mandatário (STJ, REsp nº 1448120-SP, rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. em 03.02.2015).
Inclusive, a própria Receita Federal do Brasil possui esse entendimento estampado no art. 4º, §1º, da já mencionada IN RFB n. 800/2007[9], quanto à representação, do transportador, pela agência marítima.
Vale, também, destacar, interessante entendimento do Tribunal Regional Federal, da 4ª Região, em matéria de Direito Aduaneiro, que compreendeu pela irresponsabilidade, por parte do agente marítimo, ao adimplemento da multa aduaneira, reconhecendo que, apenas, a empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta a porta, e o agente de carga sujeitam-se ao pagamento de multa na hipótese de omitirem-se no dever de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute. Vide:
TRIBUTÁRIO. ADUANEIRO. MERCADORIA TRANSPORTADA. SISCOMEX. DECRETO-LEI Nº 37/66. MULTA. AGENTE MARÍTIMO. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. INOCORRÊNCIA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. HONORÁRIOS.
- Nos termos do art. 107, IV, e, do Decreto-Lei nº 37/66, a empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta a porta, e o agente de carga sujeitam-se ao pagamento de multa na hipótese de omitirem-se no dever de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute.
- A imposição de penalidades, tanto no âmbito administrativo como no âmbito tributário, deve observar o princípio da legalidade. Visto que o agente marítimo não se encontra dentre os sujeitos arrolados no citado dispositivo legal, não subsiste o auto de infração que aplicou a penalidade de multa à empresa.
- O agente marítimo, quando no exercício exclusivo das atribuições próprias, não é considerado responsável tributário, nem se equipara ao transportador para efeitos do Decreto-Lei n.º 37 de 1966 (Súmula 192 do TFR).
- A assinatura de termo de responsabilidade pelo pagamento dos tributos não torna o agente marítimo sujeito passivo da obrigação tributária, sob pena de afronta ao princípio da legalidade.
- Honorários advocatícios fixados em conformidade com o disposto no art. 20, § 4º do CPC (Tribunal Regional Federal da 4º Região, Apelação Cível nº 5001890-54.2012.404.7101/RS, Relator Ivori Luis da Silva Scheffer, julgado em 01.07.2015).
Outra proposta de súmula interessante é quanto à responsabilidade do operador de carga:
45ª PROPOSTA DE ENUNCIADO DE SÚMULA: O agente de carga responde pela multa prevista no art. 107, IV, “e” do DL nº 37, de 1966, quando descumpre o prazo estabelecido pela Receita Federal para prestar informação sobre a desconsolidação da carga.
O agente de carga é o agente da mercadoria, atuando durante todo o trâmite da importação e da exportação, ao passo que o agente marítimo, é o agente da navegação, isto é, é o mandatário da empresa de navegação. Essa diferença é crucial para compreender a participação de cada personagem e sua respectiva responsabilidade ou irresponsabilidade perante o Fisco. Inclusive, há entendimento do CARF distinguindo ambos os personagens:
É ilegítimo para figurar no polo passivo o agente marítimo, que não se confunde com o transportador ou agente de carga, responsáveis pelo cumprimento da obrigação e, se for o caso, responder pela multa de que trata a alínea e do inciso VI do artigo 107 do Decreto-lei nº 37/66(…) Mesmo que assim não fosse, ou seja, que o lançamento em causa não fosse materialmente nulo, fato é que o mesmo também não poderia prosperar, diante da flagrante ilegitimidade do sujeito passivo, agente marítimo, para responder pela multa de que trata a alínea e do inciso VI do artigo 107 do Decreto-lei nº 37/66, segundo o qual: (…) É certo que o agente marítimo não se confunde com o transportador ou agente de carga, responsáveis pelo cumprimento da obrigação prevista na norma acima citada, sob pena de não o fazendo responderem pela multa também prevista no referido dispositivo legal.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso voluntário em razão da caracterização de vício na eleição do sujeito passivo (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, Processo nº 10711.003636/2006-44, Acórdão nº 3102-00.791, julgado em 27.10.2010).
Logo, diferentemente quanto à 43ª proposta de súmula, acertou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), uma vez que, conforme entendimento doutrinário, jurisprudencial e previsão legislativa, o operador da carga possui responsabilidade tributária quanto ao adimplemento da multa, pelos motivos expostos.
Outro destaque, que a Portaria prevê expressamente, é a 44ª proposta de Súmula:
44ª PROPOSTA DE ENUNCIADO DE SÚMULA: A retificação de informações tempestivamente prestadas não configura a infração descrita no artigo 107, inciso IV, alínea “e” do Decreto-Lei nº 37/66.
Acaso seja aprovada, a súmula trará segurança jurídica ao mercado shipping, uma vez que é corriqueiro que imprevistos ocorram quando do transporte de mercadorias por via marítima, demandando, portanto, a retificação de informações tempestivamente prestadas.
A partir da matéria sumulada, será afastada a possibilidade da aplicação de multa, por parte da autoridade aduaneira, fundamentada no §1º, do artigo 45 da IN RFB n° 800/07, revogado pela IN RFB n° 1.473/2014, segundo o qual previa
Art. 45. O transportador, o depositário e o operador portuário estão sujeitos à penalidade prevista nas alíneas “e” ou “f” do inciso IV do art. 107 do Decreto-Lei no 37, de 1966, e quando for o caso, a prevista no art. 76 da Lei no 10.833, de 2003, pela não prestação das informações na forma, prazo e condições estabelecidos nesta Instrução Normativa.
- 1°Configura-se também prestação de informação fora do prazo a alteração efetuada pelo transportador na informação dos manifestos e CE entre o prazo mínimo estabelecido nesta Instrução Normativa, observadas as rotas e prazos de exceção, e a atracação da embarcação.
Mesmo com a revogação do dispositivo em destaque, o §9°, do artigo 27-C, da IN RFB n° 1.473/2014, ainda dá margem à aplicação da multa, ao prever que “a retificação no sistema não exime o transportador da responsabilidade pelos tributos e penalidades cabíveis”.
Devido ao grande equívoco foi formulada consulta interna à Coordenação-Geral de Tributação (COSIT), sendo o impasse dirimido por meio da Solução de Consulta Interna n° 02, de 04 de fevereiro 2016, pela COSIT, compreendendo que “as alterações ou retificações das informações já prestadas anteriormente pelos intervenientes não configuram prestação de informação fora do prazo, não sendo cabível, portanto, a aplicação da citada multa”.
Por fim, contemplando o Direito Tributário, de modo geral, mas, em especial, a multa SISCOMEX CARGA (SISCARGA), a Portaria CARF n. 7974/2021, prevê a 22ª PROPOSTA DE REVISÃO DE SÚMULA: “Alteração do enunciado da Súmula CARF nº 11 para: “Não se aplica a prescrição intercorrente para créditos tributários no processo administrativo fiscal.”
Até então, diferentemente do processo de execução fiscal, não é admissível a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal (PAF). Com a possível revisão da Súmula CARF n. 11, passando a admitir a previsão o da prescrição intercorrente no PAF, contemplando, então, os créditos fiscais tributários, também passaria, portanto, a ser contemplada a multa SISCARGA, algo benéfico para os contribuintes.
[1] A IN RFB n. 800/2007 traz diversos dispositivos acerca do processo administrativo de controle aduaneiro de cargas e de containers, devendo ser prestadas informações e cumpridos os prazos específicos previstos. Vide as principais obrigações previstas na norma: a) Apresentação do número do manifesto eletrônico; b) dados do navio e da viagem; c) escalas previstas; d) data e hora da atracação da embarcação; e) numeração do conhecimento de embarque; f) qualificação do embarcador e do consignatário da carga; g) numeração do contêiner; h) especificação da carga, conforme a classificação e código da Nomenclatura Comum do Mercosul; i) peso da carga; e j) numeração da declaração do despacho de importação ou exportação.
[2] Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas:
IV – de R$ 5.000,00 (cinco mil reais):
- e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga; e
- f) por deixar de prestar informação sobre carga armazenada, ou sob sua responsabilidade, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada ao depositário ou ao operador portuário.
[3] O transportador, o mandante da relação jurídica com o agente marítimo.
[4] Trata-se do transportador sem navio, conceituado, no Direito Marítimo, como NVOCC (Non Vessel Operator Common Carrier). O agente de carga visa a minimizar os custos, sendo o responsável pelo door to door, providenciando tudo o que for necessário para o transporte da mercadoria de um ponto a outro, negociando fretes, realizando os tramites aduaneiros para entrada e saída das mercadorias pelas fronteiras pátrias, dentre outras atribuições, tendo a obrigação de prestar informações ao Fisco, como previsto no §1º do Art. 37 do Decreto-Lei nº 37, de 1966, uma vez que atua no SISCOMEX CARGA em nome próprio.
[5] Conforme o art. 2º, XIII, da Lei nº 12.815/2013 (Lei dos Portos), o operador portuário consiste na pessoa jurídica pré-qualificada para exercer as atividades de movimentação de passageiros ou movimentação e armazenagem de mercadorias, destinadas ou provenientes de transporte aquaviário, dentro da área do porto organizado.
[6] Art.94 – Constitui infração toda ação ou omissão, voluntária ou involuntária, que importe inobservância, por parte da pessoa natural ou jurídica, de norma estabelecida neste Decreto-Lei, no seu regulamento ou em ato administrativo de caráter normativo destinado a completá-los.
- 2º – Salvo disposição expressa em contrário, a responsabilidade por infração independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato
[7] Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente:
III – quanto às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo específico:
- b) dos mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores.
[8] CREMONEZE, Paulo Henrique. Prática de Direito Marítimo. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 55.
[9] Art. 4º A empresa de navegação é representada no País por agência de navegação, também denominada agência marítima.
- 1º Entende-se por agência de navegação a pessoa jurídica nacional que represente a empresa de navegação em um ou mais portos no País.