Em decorrência da greve dos caminhoneiros, em maio de 2018, a qual acarretou impactos econômicos consideráveis, principalmente pelo país ter uma política fortemente ligada ao transporte rodoviário de mercadorias, alternativas logísticas passaram a ser consideradas, dentre elas, a cabotagem, um modal aquaviário que consiste no transporte de bens e produtos de um porto brasileiro a outro porto brasileiro. Trata-se de uma opção bem-vista, uma vez que os principais portos brasileiros se encontram próximos aos grandes centros urbanos, como, por exemplo, o Porto de Santos.
Para viabilizar a prática da cabotagem, encontra-se em análise, no Congresso Nacional, o projeto de Lei (PL) nº 4.199/2020, denominado como “BR do Mar”, objeto de muita discussão, principalmente por alterar dispositivos da Lei nº 9.432, de 8 de janeiro de 1997, a qual dispõe sobre a ordenação do transporte aquaviário, assim como a Lei nº 10.893, de 13 de julho de 2004, que dispõe sobre o Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) e o Fundo da Marinha Mercante (FMM). Primeiramente, é importante compreender as principais mudanças que o projeto de lei visa a implementar no Direito Marítimo e, posteriormente, quanto à contribuição de intervenção no domínio econômico.
Uma das grandes novidades é quanto à possibilidade de que a empresa brasileira de navegação (EBN), habilitada no BR do Mar possa afretar por tempo embarcações de propriedade de sua subsidiária integral estrangeira ou embarcações que estejam em posse, uso e controle desta, sob contrato de afretamento a caso nu.
Interessante mencionar que essas embarcações afretadas autorizadas a operar no transporte por cabotagem serão automaticamente submetidas ao regime aduaneiro de admissão temporária, sem registro de declaração de importação, com suspensão total do pagamento de tributos federais, tais quais: imposto de importação (II); imposto sobre produtos industrializados (IPI-importação); Contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público incidentes sobre a importação de produtos estrangeiros ou serviços (PIS/Pasep-Importação); Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social devida pelo Importador de Bens Estrangeiros ou Serviços do Exterior – (Cofins-Importação) e ; Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – Combustíveis (Cide-Combustíveis). Nota-se que o projeto de lei beneficia o afretamento dessas embarcações que sejam de propriedade ou estejam sob uso, posse e controle da empresa subsidiária estrangeira através dos benefícios fiscais listados, desincentivando o investimento em frota própria pela empresa brasileira de navegação (EBN) habilitada no BR do Mar.
Essa falta de incentivo quanto aos investimentos em frota própria é notável pela simples leitura do §1º, do art. 5º, do PL no 4.199/2020, o qual elenca diversas possibilidades em que o afretamento mencionado poderá ser realizado. Logo, o BR do Mar, nitidamente, preocupa-se com a ampliação do modal aquaviário em questão, sem, no entanto, encorajar a construção de embarcações nos estaleiros brasileiros. Essa é uma crítica feita por diversos especialistas na área, até porque, o Brasil tem fama de ser um país transportado e não, transportador.
Além disso, o BR do Mar, como mencionado, possibilita o afretamento de embarcações a casco nu, podendo, o afretador, nomear o comandante e a tripulação da embarcação estrangeira, suspendendo a bandeira para navegação de cabotagem, alterando o art. 10, da Lei nº 9.432/1997[1].
Todas essas inovações previstas no projeto de lei em questão, acabam por gerar uma discrepância entre empresas brasileiras de navegação (EBN), habilitadas no BR do Mar, e aquelas que fomentam a construção naval brasileira. Por um outro lado, aumentará a oferta no mercado nacional de cabotagem, pois com a vinda de outras embarcações, aumentará a competitividade e, espera-se que, consequentemente, a diminuição no valor do frete.
No que concerne ao frete, outra questão bastante importante, prevista no BR do Mar, é quanto ao Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM). Como já citado. O AFRMM consiste em uma contribuição de intervenção no domínio econômico (Cide), parafiscal, com a finalidade de atender aos encargos da intervenção da União no apoio ao desenvolvimento da Marinha Mercante e da indústria de construção e reparação naval brasileiras, e constitui fonte básica do Fundo de Marinha Mercante (FMM).
Interessante mencionar que muito se questiona sobre a constitucionalidade do AFRMM na doutrina tributarista[2], isto porque, vislumbra-se a invasão de competência já que se tributa os serviços de transporte marítimo, de cabotagem, fluvial e lacustre, sendo a base de cálculo o valor do frete, o qual, nada mais é, do que a remuneração do serviço de transporte.
José Eduardo Soares de Melo[3] afirma que
(…)fica assentada a legitimidade da premissa de incidência do ICMS nos serviços de transporte de bens provenientes do Exterior. Resta elucidar a respeito da permissão constitucional para também impor-se ao AFRMM, ou seja, a possibilidade jurídica de haver dúplice exigência tributária (…) Realmente, o AFRMM havia considerado como seu fato gerador a prestação de serviço de transporte de carga, e como base de cálculo o preço desse serviço, isto é, as mesmas operações e quantificações econômicas do ICMS.”
De fato, é muito questionável a incidência do AFRMM pela doutrina tributarista, embora o Supremo Tribunal Federal, no longínquo ano de 1995 pacificou seu entendimento compreendendo pela sua constitucionalidade.
Seu contribuinte, em regra, é o destinatário da mercadoria, ou seja, o indivíduo mencionado no conhecimento de embarque, sendo o proprietário da carga transportada, o responsável solidário pelo adimplemento do tributo.
Fora os casos de isenção e de não incidência, o pagamento dessa contribuição de intervenção no domínio econômico é requisito para que a mercadoria importada seja liberada ou para que deixe a zona primária ou seja incluída em algum regime aduaneiro especial, devendo ser comprovado o recolhimento do tributo. Vale lembrar, também, que o fato gerador do AFRMM é o início do descarregamento da mercadoria importada da embarcação em um porto brasileiro.
No que tange às alíquotas do AFRMM, atualmente, são determinadas de acordo com o tipo de navegação: 25% na navegação de longo curso; 10% na navegação de cabotagem e; 40% na navegação fluvial e lacustre, para transporte de granéis líquidos nas regiões Norte e Nordeste. Em relação as rotas de exportação e de navegação lacustre e fluvial (interior) há isenção tributária, exceto quanto ao transporte de granéis líquidos nas regiões Norte e Nordeste.
Conforme o PL do BR do Mar, as alíquotas dessa contribuição passariam para 8% para navegação de longo curso, cabotagem e fluvial e lacustre, para granéis líquidos e sólidos e outras cargas no Norte ou Nordeste, ou seja, seria mantida a isenção para exportação e navegação de interior, exceto das regiões Norte e Nordeste, ocorrendo a incidência da contribuição[4], e haveria uma equiparação dos diferentes tipos de navegação, além, obviamente, de redução da alíquota incidente.
Tal medida, de redução das alíquotas, é vista com bons olhos em um cenário que o frete não para de encarecer e há um nítido congestionamento nos portos marítimos do mundo todo. Diminuir a alíquota da contribuição em questão corroborará para uma diminuição do valor do frete, aliviando o peso da carga tributária no valor das mercadorias importadas. Logicamente que, o uso de outros artifícios, tais como os regimes especiais aduaneiros Drawback Suspensão e RECOF-SPED, são alternativas para aliviar o contribuinte.
No entanto, quanto ao fim da “não incidência” prevista no art. 17, da “Lei do Transporte Aquaviário”, isto é, a incidência, igualmente, da alíquota de 8% para navegação de longo curso, cabotagem e fluvial e lacustre, para granéis líquidos e sólidos e outras cargas no Norte ou Nordeste, acarretará algumas mudanças, principalmente quanto a geração de créditos por parte das empresas brasileiras de navegação (EBNs). Isto porque, a não incidência do AFRMM nestes casos mencionados, corrobora para a ausência de destinação de parte do valor arrecadado da referida contribuição, conforme previsto nos incisos II e III, do art. 17, da Lei nº 10.893/2004, devendo a Secretaria da Receita Federal do Brasil processar e viabilizar, mediante recursos decorrentes da arrecadação do AFRMM que cabem ao Fundo da Marinha Mercante, o ressarcimento às empresas brasileiras de navegação das parcelas previstas no dispositivo mencionado que deixarem de ser recolhidas em razão da não incidência tributária.
Embora as críticas prevaleçam quanto ao não incentivo à construção naval por parte das empresas brasileiras de navegação, o projeto de lei determina que o montante correspondente a 100% do valor arrecadado de AFRMM das operações de embarcações estrangeiras afretadas pelas EBNs seja destinado ao Fundo da Marinha Mercante (FMM), sendo que 10% da receita arrecadada da contribuição será destinado ao melhoramento da infraestrutura aquaviária, como obras de dragagem de portos, hidrovias e canais de navegação.
Para finalizar, outa situação que ganha destaque com a discussão desse projeto de lei é quanto ao REPORTO, o regime tributário para fins de incentivo à modernização e à ampliação da estrutura portuária, instituído pela Lei nº 11.033/2004. Por ele, a aquisição de mercadorias, no mercado interno, estava isenta do pagamento do IPI e do PIS e da Cofins, além da importação de máquinas, equipamentos, peças de reposição e outros bens destinados ao ativo imobilizado da beneficiária, igualmente estavam isentos da incidência do II, IPI, PIS e da Cofins desde que não haja similar nacional, até 31 de dezembro de 2020.
Não houve renovação desse regime tributário, algo que vem desagradando (e muito) os representantes dos terminais portuários, corroborando para o aumento da carga tributária no setor portuário e, consequentemente, para a ausência de investimentos em modernização dos portos.
Espera-se que com o avanço das discussões sobre o PL nº 4.199/2020, no Congresso Nacional, o REPORTO seja renovado, beneficiando, não apenas, os terminais portuários, assim como todos que dependam dos portos brasileiros, isto é, toda a população brasileira, além do amadurecimento quanto à expansão da cabotagem e, concomitantemente, o fortalecimento da indústria naval pátria.
[1] O art. 10, da Lei do Transporte Aquaviário, passaria ter a seguinte redação:
“§ 1º Sem prejuízo do disposto no inciso III do caput, fica
autorizado o afretamento de uma embarcação estrangeira a casco nu,
com suspensão de bandeira, para navegação de cabotagem,
independentemente de contrato de construção em eficácia ou de
propriedade de embarcação brasileira.
- 2º O limite de afretamento de que trata o § 1º será ampliado:
I – em 1º de janeiro de 2021, para duas embarcações; e
II – em 1º de janeiro de 2022, para três embarcações.
- 3º O afretamento a casco nu de embarcação estrangeira, com
suspensão de bandeira, para a navegação de cabotagem, será livre a
partir de 1º de janeiro de 2023, observadas as condições de segurança
definidas em regulamento.
- 4º As empresas brasileiras de navegação poderão operar na
navegação de cabotagem, com embarcações afretadas de acordo com o
disposto nos § 1º ao § 3º, hipótese em que não será necessário ter
frota própria ou ter contratado a construção de embarcações.
- 5º As embarcações afretadas a casco nu de acordo com o
disposto nos § 1º ao § 3º não poderão ser utilizadas para verificação e
comprovação de existência ou disponibilidade, nos termos do disposto
no inciso I do caput do art. 9º.”
[2] Dentre os tributaristas renomados, cita-se Sacha Calmon Navarro Coêlho e José Eduardo Soares de Melo.
[3] MELO, José Eduardo Soares de Melo. Contribuições Sociais no Sistema Tributário. 7ª ed., rev.,atual. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2018. p. 152.
[4] A “Lei do Transporte Aquaviário”, em seu art. 17, prevê que “Por um prazo de dez anos, contado a partir da data da vigência desta Lei, não incidirá o Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante – AFRMM sobre as mercadorias cuja origem ou cujo destino final seja porto localizado na Região Norte ou Nordeste do País”.