O presente estudo visa analisar a possibilidade de aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes praticados contra crianças e adolescentes, considerando o advento do § 1º do art. 226 do ECA, introduzido pela Lei 14.344/2022.
A Lei Henry Borel prevê procedimentos especializados para a investigação criminal e processamento de crimes de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes. Diferentemente da Lei Maria da Penha, que determinou a criação de Juizados especializados, com competência mista cível e criminal, a nova lei não determinou a criação de tais juizados. Todavia, o art. 23 da Lei 13.431/2017 já recomendava (não determinava) a criação de varas especializadas em crimes contra crianças e adolescentes.
No sistema da Lei Maria da Penha, uma inovação importante foi o seu art. 41, que determinou a não aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher – VDFCM. Os impactos mais relevantes dessa disposição são: permitir prisão em flagrante para todos os delitos de VDFCM, proibir conciliação civil, transação penal e a suspensão condicional do processo e tornar o crime de lesão corporal sujeito a ação penal pública incondicionada.
Todavia, a Lei Henry Borel não criou norma semelhante no seu bojo. Apesar de a lei ser uma cópia da Lei Maria da Penha, preferiu a inclusão de dispositivo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Essa alteração de estratégia legislativa em relação à Lei Maria da Penha certamente gerará controvérsia sobre seu alcance, para se esclarecer se ela se estende a todos os crimes contra crianças, ou apenas aos crimes previstos no ECA.
Esta discussão é relevante especialmente no contexto da violência doméstica e familiar contra os meninos (já que a contra as meninas está alcançada diretamente pela Lei Maria da Penha). E, especialmente, para o crime de maus-tratos, o mais usual no contexto dos Juizados Especiais Criminais. Vale relembrar que casos mais graves, como a lesão corporal contra meninos no contexto de violência doméstica, já não estão no sistema do Juizado Especial Criminal, pois o crime do art. 129, § 9º, do CP possui pena máxima de três anos (em que pese admitir suspensão condicional do processo). No mesmo sentido, os crimes sexuais e a tortura contra os meninos são processados na vara criminal.
A proibição de aplicação da Lei n. 9.099/1995 é introduzida no art. 226, § 1º, do ECA, que é um capítulo introdutório aos crimes previstos no ECA e todos os 4 dispositivos normativos que estão inseridos nesse capítulo referem-se aos crimes previstos no ECA. Inclusive, o caput do art. 226 do ECA refere-se expressamente aos crimes do ECA. O novo dispositivo não disciplina especificamente o tema da violência doméstica contra crianças (que é o escopo geral da Lei n. 14.344/2022), mas fala genericamente “Aos crimes cometidos contra a criança e o adolescente, independentemente da pena prevista […]”. Portanto, a interpretação sistemática a partir da inserção topográfica deste dispositivo sinaliza no sentido de que a retirada do sistema do JEC é apenas para os crimes previstos no ECA (mesmo que não sejam de violência doméstica) e não para todos os delitos do Código Penal e legislação especial. Pois se a intenção da norma fosse retirar tudo do sistema do JEC, a alteração teria sido feita diretamente no corpo da Lei n. 14.344/2022, assim como o fez a LMP, e não no capítulo introdutório dos crimes previstos no ECA.
Caso se interpretasse que a nova disposição proibiu a aplicação da Lei 9.099/1995 a absolutamente todos os crimes contra crianças e adolescentes, isso geraria resultados absolutamente contraditórios. Por exemplo, um furto ou estelionato contra criança ou adolescente passaria a não mais admitir suspensão condicional do processo. Aliás, nem mesmo a própria Lei Maria da Penha chegou ao extremo de proibir a aplicação da Lei 9.099/1995 a todos os crimes contra mulheres, mas tão somente aos crimes em contexto de VDFCM.
A realização de acordos processuais é expressão da atual tendência no processo penal, sendo inclusive ampliada para diversos novos delitos com a criação pelo pacote anticrime do denominado acordo de não persecução penal (ANPP) no art. 28-A do CPP, para crimes com pena mínima inferior a 4 anos (desde que sem violência ou grave ameaça), além de outras condições legais. Acordos processuais permitem uma agilização da resposta pelo sistema de justiça, dispensando a instrução processual obrigatória e um contexto em que acusação e defesa estão de acordo com a solução do caso criminal. Acordos processuais permitem a construção de respostas individualizadas para enfrentar enfrentem as conjunturas que estão na raiz do fenômeno criminológico, com a possibilidade de atender às expectativas de proteção e reparação à vítima em suas condições. Evita-se o desgaste do processo para réu, vítima e testemunhas, com uma solução imediata do caso criminal. O benefício para o réu em se evitar uma condenação criminal é compensado com o estabelecimento de condições individualizadas de responsabilização, evitando-se o risco de omissão de resposta jurisdicional (com a prescrição do processo, ou com a absolvição por não mais se localizar as testemunhas após vários anos dos fatos, ou porque as partes não mais se recordam dos fatos).
Portanto, acordos processuais não são sinônimo de banalização da resposta pelo sistema penal, deve-se zelar para que as condições estabelecidas nos acordos sejam efetivas para se assegurar a adequada responsabilização. Uma efetiva incorporação do paradigma vitimológico de compreensão das necessidades reais das vítimas e de efetiva promoção da responsabilização criminal no bojo dos acordos processuais é substancialmente mais efetiva que a institucionalização de uma persecução penal morosa e usualmente tendente à omissão de intervenções significativas às partes envolvidas. A representação social de que acordos processuais são uma banalização da resposta é muito mais uma crítica às condições do acordo do que propriamente à possibilidade de se realizar acordos em si. Portanto, cabe ao Ministério Público fazer uma autocrítica e assegurar que as condições para os acordos processuais não sejam irrisórias. Muitas vezes estas representações sociais são reflexo de uma deriva punitivista que enxerga no encarceramento a única resposta possível ao conflito criminal, negligenciando o custo social e os riscos envolvidos na movimentação de um processo criminal.
Vale registrar que o STF, ao julgar a constitucionalidade do art. 94 do Estatuto do Idoso, entendeu que o escopo daquela norma é tão somente de permitir a aplicação do procedimento sumaríssimo da Lei 9.099/1995 para os crimes contra idosos com pena máxima de até 4 anos[1]. Pela análise dos votos dos diversos ministros nesse julgamento, fixou-se o entendimento de que a lei em referência não alargou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo para os crimes contra idosos com pena até 4 anos, apenas permitiu a possibilidade de aplicação do procedimento sumaríssimo; todavia, também se entendeu que a lei não altera a possibilidade de aplicação de transação penal aos crimes contra idosos com pena máxima até 2 anos ou de suspensão condicional do processo para crimes com pena mínima até 1 ano. Neste julgamento, chegou-se a discutir a tese de que a aplicação dos benefícios despenalizadores da Lei 9.099/1995 para autores de crimes contra idosos seria inconstitucional, sendo que os votos dos ministros analisaram a questão e entenderam que não haveria inconstitucionalidade em se aplicar tais benefícios aos crimes contra idosos, desde que dentro do regramento legal.
Apesar de a Lei Maria da Penha ter previsto em seu art. 41 a impossibilidade de acordos processuais para os crimes em contexto de VDFCM, tema referendado pelo STF no julgamento da ADIN 4424 e ADC 19, cremos que tal foi feito como estratégia político-criminal para se desconstruir a invisibilidade histórica da violência contra as mulheres, retirando tais delitos do conceito de “menor potencial ofensivo” e modificando a representação à época de que o ofensor poderia fazer um acordo irrisório e eludir a responsabilização criminal. No contexto da VDFCM, a discriminação de gênero, estrutural às relações sociais, levou os órgãos do sistema de justiça a sistematicamente banalizarem a responsabilização criminal, levando mulheres a se retratarem em juízo, ou estabelecendo condições irrisórias nos acordos processuais (como cestas básicas). Todavia, esta foi uma escolha que também trouxe consequências negativas, ao impedir uma solução rápida de processos criminais, institucionalizando o processamento criminal (com audiências de instrução processual) de todos os casos, o que gera hoje um elevado congestionamento dos Juizados de VDFCM, com elevadas taxas de prescrição nestes delitos ou com eventuais (e poucas) sentenças condenatórias proferidas diversos anos após os fatos. E um não engajamento ideal dos ofensores em programas reflexivos para autores de violência. Pesquisas documentam que a maioria das vítimas não desejam a punição dos ofensores, elas desejam ser protegidas. Assim, não raro algumas vítimas deixam de colaborar com a instrução processual porque não veem sentido na punição do ofensor anos após os fatos, quando as medidas protetivas de urgência já resolveram os seus problemas de segurança. Certamente não cabe ao intérprete recusar aplicação à lei por eventualmente discordar das escolhas político-criminais feitas pelo legislador, dentro de uma moldura de opções legítimas: definitivamente não se aplica a Lei 9.099/1995 aos crimes de VDFCM (STF, ADIN 4424 e ADC 19). Havia uma lógica na escolha feita pelo legislador. Todavia, também não se pode negligenciar que toda escolha político-criminal tem seu preço.
Especificamente para o contexto da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes (aos meninos, onde não se aplica a Lei Maria da Penha), cremos que há boas razões para se justificar a possibilidade de acordos processuais, portanto, respaldando-se a interpretação sistemática do art. 226, § 1º, do ECA. O princípio da prioridade absoluta recomenda o fomento a intervenções jurisdicionais que tenham a aptidão de serem efetivas à criança e adolescente; portanto, a solução célere da demanda criminal é uma diretriz especialmente relevante para crimes contra crianças e adolescentes. O acordo processual permitirá evitar-se a nova oitiva da vítima em juízo, uma importante diretriz para evitar a revitimização de crianças e adolescentes.
Ademais, acordos processuais permitirão o encaminhamento do ofensor aos programas oferecidos nos centros de educação e de reabilitação para os agressores (art. 7º, inciso V, da Lei 14.344/2022). Ainda que seja possível este encaminhamento em sede de medidas protetivas de urgência, o engajamento em sede de acordo processual é substancialmente mais efetivo, diante da prévia concordância pelo ofensor, e com incentivo de receber a solução do caso criminal com esta condição. Infelizmente, ainda há uma resistência no sistema de justiça em se estabelecer a medida protetiva de encaminhamento obrigatório para tais programas. Pesquisa realizada no Distrito Federal, relativa a processos anteriores à decisão pelo STF na ADIN 4424, época em que ainda se aplicava a suspensão condicional do processo aos crimes de VDFCM, documentou que o encaminhamento dos ofensores em intervenções psicossociais era substancialmente mais elevado nos processos em que havia o acordo processual (39%) do que nos demais processos (7%), bem como o engajamento nos encaminhamentos também era maior (84% contra 36%)[2].
Há ainda mais uma boa razão para a realização dos acordos processuais. É que, não raro, os crimes de violência doméstica contra crianças e adolescentes são marcados por contradições emocionais: a criança (e, normalmente, o responsável legal) não deseja que os atos de violência prossigam, mas na maioria dos casos não se representa que a punição criminal seja a melhor solução ao conflito, por trazer mais prejuízos que benefícios. A punição poderá comprometer a capacidade laboral do ofensor, muitas vezes responsável pelo sustento da criança ou adolescente. Punição pode gerar distanciamento emocional entre membros da família onde, apesar da violência (sempre inaceitável), ainda nutrem sentimentos de afeição. Há outras formas de responsabilização para além da punição, da mera imposição de sofrimento estéril. Estas contradições levam muitas vezes as crianças e adolescentes, ao perceberem o sofrimento gerado na família a partir da revelação da violência, a posteriormente se retratarem, negarem a violência inicialmente relatada. Isso pode ocorrer tanto por pressões de familiares, como também pela própria percepção pela criança quanto às consequências negativas à família da revelação. Assim, para fatos mais gravosos de violências contra as crianças certamente não haverá espaço para acordos processuais pelo próprio limite da pena (como nos crimes sexuais ou a tortura). Todavia, para casos intermediários, um acordo bem construído (dentro das hipóteses legais) será muito mais apto à proteção célere e efetiva da criança que a institucionalização da persecução penal.
E a persistência de aplicação da Lei 9.099/1995 não compromete o direto à proteção, pois o art. 14, § 3º, da Lei 14.344/2022 permite à autoridade policial efetuar a prisão em flagrante e negar liberdade provisória quando houver risco à integridade física ou à efetividade da proteção à vítima, e o art. 17 permite a decretação da prisão preventiva no contexto de violência doméstica e familiar contra criança e adolescente como uma hipótese autônoma em relação ao art. 313 do CPP.
Portanto, a interpretação sistemática do art. 226, § 1º, do ECA, derivada de sua localização topográfica, no sentido de que ele não veda a realização de acordos processuais para todos os crimes contra crianças e adolescentes, apenas os crimes previstos no ECA, permite a saudável opção legislativa de manter os maus tratos contra crianças no sistema do Juizado Especial Criminal, onde será possível uma célere transação penal para se encaminhar o ofensor a um programa de responsabilização individualizado a uma intervenção preventiva no caso concreto, conforme a diretriz do art. 7º, inciso V, da Lei 14.344/2022, bem como permite a suspensão condicional do processo para demais delitos, que deverão considerar a diretriz político-criminal de construção de soluções que toquem efetivamente na raiz da violência no caso concreto e atendam às necessidades da vítima.
Por outro lado, os crimes do ECA, mesmo com pena máxima inferior a 2 anos, irão para a vara criminal e não terão mais aplicação da Lei 9.099/1995 (pois alçados pelo novo art. 226, § 1º, do ECA).
Conclusões:
1 – A Lei Henry Borel, visando dar aos crimes contra crianças e adolescentes, tratamento mais rigoroso, diferentemente da Lei Maria da Penha, preferiu proibir a aplicação da Lei 9.099/95 incluindo dispositivo no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 226, §1º), e não no seu bojo.
2 – A interpretação sistemática a partir da inserção topográfica deste dispositivo sinaliza no sentido de que a retirada do sistema do JEC é apenas para os crimes previstos no ECA (mesmo que não sejam de violência doméstica) e não para todos os delitos do CP e legislação especial. Pois se a intenção da norma fosse retirar tudo do sistema do JEC, a alteração teria sido feita diretamente no corpo da Lei 14.344/2022, assim como o fez a LMP, e não no capítulo introdutório dos crimes previstos no ECA.
3 – A proibição da aplicação da Lei 9.099/1995 a absolutamente todos os crimes contra crianças e adolescentes geraria resultados absolutamente contraditórios. Por exemplo, um furto ou estelionato contra criança ou adolescente passaria a não mais admitir suspensão condicional do processo. Aliás, nem mesmo a própria Lei Maria da Penha chegou ao extremo de proibir a aplicação da Lei 9.099/1995 a todos os crimes contra mulheres, mas tão somente aos crimes em contexto de VDFCM.
4 – Não podemos ignorar o fato de que acordos processuais permitem a construção de respostas individualizadas para enfrentar enfrentem as conjunturas que estão na raiz do fenômeno criminológico, com a possibilidade de atender às expectativas de proteção e reparação à vítima em suas condições. Evita-se do desgaste do processo para réu, vítima e testemunhas, com uma solução imediata do caso criminal.
5 – O princípio da prioridade absoluta recomenda o fomento a intervenções jurisdicionais que tenham a aptidão de serem efetivas à criança e adolescente; portanto, a solução célere da demanda criminal é uma diretriz especialmente relevante para crimes contra crianças e adolescentes. O acordo processual permitirá evitar-se a nova oitiva da vítima em juízo, uma importante diretriz para evitar a revitimização de crianças e adolescentes.
6 – Acordos processuais permitirão o encaminhamento do ofensor aos programas oferecidos nos centros de educação e de reabilitação para os agressores (art. 7º, inciso V, da Lei 14.344/2022). Ainda que seja possível este encaminhamento em sede de medidas protetivas de urgência, o engajamento em sede de acordo processual é substancialmente mais efetivo, diante da prévia concordância pelo ofensor, e com incentivo de receber a solução do caso criminal com esta condição.
[1] STF, ADI 3096 / DF, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento 16/06/2010.
[2] DINIZ, Debora (Coord.). MP Eficaz Lei Maria da Penha: Avaliação da efetividade da intervenção do sistema de justiça do Distrito Federal para a redução da violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília: ESMPU, 2014, p. 26. Disponível em: https://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/nucleos/nucleo_genero/publicacoes/Pesquisa_ANIS_Avaliacao_efetividade_intervencao_sistema_justica_DF.pdf