A lei 14.365/2022 foi publicada em 03.06.2022 e alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Dentre as principais mudanças no campo penal e processual penal, podem ser citadas[1]:
(a) a possibilidade de os ocupantes de cargos ou funções vinculados direta ou indiretamente a atividade policial de qualquer natureza e os militares de qualquer natureza, na ativa, de exercer advocacia em causa própria, estritamente para fins de defesa e tutela de direitos pessoais;
(b) autodefesa para servidores vinculados às instituições do art. 144 da CF;
(c) o sigilo na cadeia de custódia;
(d) a suspensão de prazos processuais em período de recesso forense; e
(e) vedação do advogado efetuar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente e, em caso de descumprimento, possiblidade de responsabilização pelo art. 154 do Código Penal.
Na ocasião, a lei foi publicada com dispositivos vetados pelo Presidente da República. Ocorre que o Congresso Nacional, em 5 de julho de 2022, derrubou determinados vetos e, dentre eles, alguns dispositivos possuem influência direta nos meios de obtenção de prova e na atividade investigativa. Faremos uma breve análise no presente estudo.
Art. 7º § 6º-A da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994
A medida judicial cautelar que importe na violação do escritório ou do local de trabalho do advogado será determinada em hipótese excepcional, desde que exista fundamento em indício, pelo órgão acusatório.
O art. 7º do Estatuto da OAB trata dos direitos dos advogados. Em seu § 6º, é estipulado que “presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II do caput deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da OAB, sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.”
A inviolabilidade citada no inciso II do caput do art. 7º é a do escritório ou local de trabalho, bem como dos instrumentos de trabalho, correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. Assim, havendo indícios de autoria e materialidade da prática de crime por advogado, a quebra da inviolabilidade será decretada e, dentre as medidas judiciais a serem deferidas, situa-se a busca e apreensão.
Neste aspecto, o § 6º-A do art. 7º não possui maior repercussão, pois apenas refere que a medida judicial cautelar que importe na violação do escritório ou do local de trabalho do advogado será determinada em hipótese excepcional, desde que exista fundamento em indício, pelo órgão acusatório.
A redação possui técnica duvidosa, pois, desavisadamente, pode sugerir que medida judicial cautelar será determinada pelo órgão acusatório. Da leitura do dispositivo deve se inferir, por óbvio, que a medida cautelar que importe na relativização da inviolabilidade do local de trabalho, bem como dos instrumentos de trabalho, correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática deve possuir fundamento em indícios demonstrados pelo “órgão acusatório”.
Outro ponto importante é de que, por “órgão acusatório” há que se entender “órgão com atribuição para a investigação criminal”, ou seja, a Polícia Judiciária e o Ministério Público. Uma interpretação restritiva da locução “órgão acusatório” poderia sugerir que apenas o Ministério Público pode requerer medida judicial pela relativização das inviolabilidades mencionadas, o que não parece ter sido a mens legis e, tampouco, poderá restringir a legitimidade da Autoridade Policial para a representação por medidas judiciais cuja legitimidade é legal e historicamente asseguradas no seu mister constitucional de conduzir as investigações de crimes comuns e de dirigir as polícias civil e federal.
Na mesma linha, até mesmo o Ministério Público, quando investiga na fase preliminar, não age na condição de “órgão acusador”, que somente ocorre, técnica e formalmente, com o oferecimento da denúncia. Assim, levada à literalidade, o dispositivo poderia conduzir à aberrante interpretação de que as medidas judiciais de obtenção de prova somente poderiam ser requeridas iniciada a fase judicial.
Portanto, a Polícia Judiciária e o Ministério Público, na fase investigativa, poderão provocar a jurisdição para a obtenção de medidas judiciais relativizadoras das inviolabilidades previstas no art. 7º, inciso II do EOAB, bem como o Ministério Público no âmbito do processo criminal.
Art. 7º, § 6º-B da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994:
É vedada a determinação da medida cautelar prevista no § 6º-A deste artigo se fundada exclusivamente em elementos produzidos em declarações do colaborador sem confirmação por outros meios de prova.
O dispositivo veda que medida cautelar que autorize a violação escritório de advocacia ou local de trabalho do advogado seja determinada com base, exclusivamente, em elementos produzidos em declarações do colaborador sem confirmação por outros meios de prova.
Em outras palavras, busca-se exigir a corroboração das declarações do colaborador para que sejam deferidas as medidas cautelares.
A disposição não é novidade, pois a Lei de Repressão às Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), com a redação conferida pelo Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019), prescreve em seu art. 4º-B, § 16, inciso I, que nenhuma medida cautelar ou pessoal será decretada ou proferida com fundamento apenas nas declarações do colaborador. Portanto, exige-se a observância da regra da corroboração segundo a qual as declarações do colaborador devem ser confirmadas por outros elementos de prova para legitimar a medida.
Mesmo que já exista exigência da regra de corroboração em lei especial, a previsão no EOAB é pertinente para demonstrar que as declarações do colaborador que poderiam ensejar as medidas cautelares que relativizam as inviolabilidades do art. 7º, inciso II não são restritas a delitos praticados no âmbito das organizações criminosas. Se assim o fosse, a restrição prevista na Lei 12.850/2013 já cumpriria essa função. Em reforço à nossa posição, é importante mencionar precedente do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a colaboração premiada tem cabimento em qualquer crime praticado em concurso de agentes ( HC 582.678 – RJ, DJe de 21/06/2022). Assim, o potencial gerador de medidas cautelares em desfavor de quaisquer investigados com base nas declarações do colaborador não se limita aos crimes de organização criminosa, sendo coerente que haja a proibição de medidas cautelares apenas com base nas declarações do colaborador em diploma legal diverso da Lei de Repressão às Organizações Criminosas.
Art. 7º § 6º-C da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994:
O representante da OAB referido no § 6º deste artigo tem o direito a ser respeitado pelos agentes responsáveis pelo cumprimento do mandado de busca e apreensão, sob pena de abuso de autoridade, e o dever de zelar pelo fiel cumprimento do objeto da investigação, bem como de impedir que documentos, mídias e objetos não relacionados à investigação, especialmente de outros processos do mesmo cliente ou de outros clientes que não sejam pertinentes à persecução penal, sejam analisados, fotografados, filmados, retirados ou apreendidos do escritório de advocacia.
Certamente, trata-se de um dos dispositivos que irão gerar grande controvérsia na doutrina e jurisprudência.
A disposição legal assevera que o representante da OAB tem o direito a ser respeitado pelos agentes responsáveis pelo cumprimento do mandado de busca e apreensão, sob pena de abuso de autoridade. Contudo, o art. 7º-B do EOAB, incluído pela Lei de Abuso de Autoridade – Lei 13.869/2019, criminaliza a violação de direito ou de prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º. Imagina-se que o legislador pensa caracterizar o crime do art. 7º-B, por violação ao inc. II do art. 7º do Estatuto. O inc. II assegura a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. Não abrange a falta de respeito do agente público ao advogado que acompanha a busca. Forte no princípio da taxatividade da lei penal, temos que eventual desrespeito ao representante da OAB não encontra tipificação perfeita na Lei de Abuso de Autoridade. A conduta de desrespeitar o representante da Ordem, poderá constituir outro tipo penal como, por exemplo, delito contra a honra ou mesmo constrangimento ilegal. Lembre-se que eventual desrespeito no cumprimento da diligência é passível de apuração na esfera administrativa e sujeito à reparação cível. Ademais, para constituir abuso de autoridade, necessária a adequação da conduta a algum dos tipos penais da Lei 13.869/2019, acompanhada do dolo específico de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, conforme art. 1º, § 1º da mencionada lei.
De outro lado, a conduta do representante da OAB e do advogado investigado que causem embaraço ao cumprimento da diligência poderá, a depender caso, constituir crime de resistência (art. 329 do CP), desobediência (art. 330 do CP), desacato (art. 331 do CP) ou fraude processual (art. 347 do CP). Aliás, sendo objeto da investigação organização criminosa ou crimes a ela atrelado, o comportamento do representante da OAB ou do advogado por significar, a depender das circunstâncias, embaraço ou impedimento de investigação, tipificando o delito do art. 2º, §1º, Lei 12.850/12.
Mas a principal questão envolvendo o analisado § 6º-C do art. 7º concerne ao dever do representante da OAB em impedir que documentos, mídias e objetos não relacionados à investigação, especialmente de outros processos do mesmo cliente ou de outros clientes que não sejam pertinentes à persecução penal, sejam analisados, fotografados, filmados, retirados ou apreendidos do escritório de advocacia.
É preciso destacar que a ordem judicial de busca e apreensão deve ser cumprida nos exatos termos em que proferida. Ganha relevo, portanto, a descrição dos limites da busca e apreensão no escritório ou local de trabalho desde a representação do Delegado de Polícia ou do requerimento pelo Promotor de Justiça até à decisão judicial de deferimento.
Contudo, é importante lembrar que as medidas cautelares utilizadas como meio de obtenção de prova são, via de regra, concedidas sem a oitiva prévia do investigado, visando a preservar a eficácia da diligência. Neste sentido, por mais detalhada que possa ser a ordem judicial, há que se considerar que somente a autoridade que conduz a persecução criminal pode avaliar a utilidade e pertinência das fontes de prova que serão analisadas e coletadas durante a diligência. O representante da OAB não terá condições, sobretudo em investigações complexas, de realizar a minuciosa análise de tudo o quanto possa interessar ou não a investigação e, dessa forma, impedir que documentos, mídias e objetos não relacionados à investigação, especialmente de outros processos do mesmo cliente ou de outros clientes que não sejam pertinentes à persecução penal, sejam analisados, fotografados, filmados, retirados ou apreendidos do escritório de advocacia.
Quem conduz a investigação é que possui condições de avaliar, inclusive, a ocorrência, in locu, do fenômeno da serendipidade objetiva ou subjetiva, ou seja, quando no cumprimento da diligência, se verificar a descoberta casual de outros crimes (objetiva), seja descobrindo outros autores ou partícipes (serendipidade subjetiva). Assim, o § 6º-C do art. 7º busca evitar a fishing expedition, ou pesca probatória, em que são apreendidos documentos e outros elementos de prova de maneira indiscriminada, sem qualquer critério, e buscando encontrar qualquer elemento que possa incriminar a pessoa, independente do objeto da investigação em curso.
Assim, o dispositivo legal, no que concerne a possibilidade de impedir a análise, filmagem, retirada ou apreensão de documentos do escritório de advocacia é claramente inconstitucional, por ofensa ao princípio do devido processo legal e à legítima obtenção de provas, além de constituir abuso de direito e desvio ou excesso de prerrogativa.
Art. 7º, § 6º-F do da Lei nº 8.906 de 1994
É garantido o direito de acompanhamento por representante da OAB e pelo profissional investigado durante a análise dos documentos e dos dispositivos de armazenamento de informação pertencentes a advogado, apreendidos ou interceptados, em todos os atos, para assegurar o cumprimento do disposto no inciso II do “caput” deste artigo.
Art. 7º, § 6º-G da Lei nº 8.906 de 1994
A autoridade responsável informará, com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas, à seccional da OAB a data, o horário e o local em que serão analisados os documentos e os equipamentos apreendidos, garantido o direito de acompanhamento, em todos os atos, pelo representante da OAB e pelo profissional investigado para assegurar o disposto no § 6º-C deste artigo;
Art. 7º, § 6º-H da Lei nº 8.906 de 1994
Em casos de urgência devidamente fundamentada pelo juiz, a análise dos documentos e dos equipamentos apreendidos poderá acontecer em prazo inferior a 24 (vinte e quatro) horas, garantido o direito de acompanhamento, em todos os atos, pelo representante da OAB e pelo profissional investigado para assegurar o disposto no § 6º-C deste artigo.
Por serem correlatos, analisaremos os §§ 5º, 6º e 7º do art. 7º do EAOB conjuntamente.
Verifica-se que ao advogado investigado, é assegurada a presença, junto com o representante da OAB, no ato ou seção de análise dos documentos, equipamentos e mídias apreendidos. Além disso, a autoridade responsável pela apreensão deverá informar à seccional da OAB a data, horário e o local em que ocorrerá a análise da apreensão. Ambas as normas constituem detalhamento específico do direito de acesso aos autos já garantido pela Súmula Vinculante 14 e pelo art. 7º, XIV do EAOB (art. 7º: São direitos do advogado: (…) XIV – examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital). A regra de acesso aos autos, neste caso, é específica em relação ao acesso decorrente do cumprimento de ordem judicial que tenha relativizado as inviolabilidades do art. 7º, inciso II do EOAB.
Ainda, em caso de urgência devidamente fundamentada pelo juiz, a análise dos documentos e equipamentos apreendidos poderá acontecer em prazo inferior a 24 (vinte e quatro) horas, garantido o acesso ao ato tanto pelo representante da OAB, quanto pelo advogado investigado.
Em conclusão, temos que a maioria das regulamentações trazidas pelos dispositivos analisados são importantes para a manutenção do direito à inviolabilidade do escritório ou do local do trabalho do advogado, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia.
O acesso aos autos, já garantido pela Súmula Vinculante 14 e pelo art. 7º, inciso XIV do EOAB, recebe disciplina específica quando importar na análise do material apreendido por meio de ordem judicial.
Contudo, há que se guardar razoabilidade na interpretação da lei, impedindo que prerrogativas legitimamente previstas se convertam em blindagem ou em embaraço às investigações. As autoridades executoras das medidas, desde sempre, estão adstritas à legalidade e aos limites impostos pela ordem judicial, cuja fundamentação ganha relevância destacada na situação em exame.
Desse modo, o advogado investigado, seu defensor, bem como o representante da OAB, poderão valer-se de todos os instrumentos jurídicos previstos em lei (mandado de segurança, habeas corpus, representação em órgãos de correição, órgãos de de controle interno e externo, representação por ato de improbidade, ação indenizatória, etc.), sem, contudo, admitir-se a impossibilidade física de apreensão e retirada das fontes de prova consideradas pertinentes pela autoridade competente, por constituir abuso de direito e de prerrogativas, e ofensa ao princípio do devido processo legal.
[1] Sobre o tema, discorremos em artigo publicado no Meu Site Jurídico https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2022/06/14/lei-14-365-2022-a-alteracao-do-estatuto-da-ordem-dos-advogados-do-brasil-e-repercussoes-no-ambito-criminal/