Eficiência processual motivou a alteração em processo da fila de espera do Hospital do Coração do Cariri, no Ceará.
Nos autos do processo n. 0800068-49.2018.4.05.8102, em tramitação na 16ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará, proposta em 19 de janeiro de 2018, pelo Ministério Público Federal – MPF em face da União, do Estado do Ceará e do Município de Barbalha – CE buscou-se a regularização do acesso de pacientes do Sistema Único de Saúde – SUS a procedimentos assistenciais na área de cardiologia no âmbito da Macrorregião de Saúde do Cariri, que abrange 45 municípios do interior cearense e uma população de mais de um milhão de habitantes ao argumento de que mais de 200 pacientes aguardavam, por tempo demasiado, na fila de espera[1].
Como o magistrado titular estava afastado da jurisdição, a ação judicial foi conduzida desde o início pelo juiz substituto. Com o retorno do juiz titular alguns meses depois, as partes entabularam negócio jurídico processual cujo objeto foi a alteração da competência para processar e julgar a demanda com sua redistribuição ao acervo do juiz substituto ao argumento de que atenderia a eficiência processual a alteração da competência pois o juiz federal substituto já estava mais familiarizado com a complexidade da matéria objeto da ação[2].
Esse acordo não viola o princípio do juiz natural como exploramos com mais profundidade no nosso livro “O ato concertado entre juízes cooperantes: esboço de uma teoria para o Direito brasileiro”.
Uma das premissas adotadas na obra é a reformulação do sistema de competências a partir de uma nova compreensão do princípio do juiz natural, que passa a incorporar uma preocupação com a eficiência:
“No sistema processual brasileiro, o juiz natural foi tradicionalmente concebido como aquele decorrente de regra legislada, fixado de forma prévia, inflexível e sem qualquer juízo de discricionariedade. Desde então até hoje, manteve sua concepção originária e se tornou, no atual quadro do processo civil brasileiro, um princípio mal interpretado[3]. É preciso reconhecer, contudo, que o princípio mudou e as preocupações que levaram a sua concepção não são as mesmas de hoje. (…) Diversos institutos processuais, tratados na lei ou na Constituição brasileira, e várias práticas judiciárias, colocam em xeque a concepção clássica do juiz natural[4]. Existem regras de competência fixadas em norma administrativa como a especialização de varas por resolução ou portaria de tribunal[5]. A lei também traz diversas hipóteses de fixação da competência post factum tais como o incidente de assunção de competência, o incidente de resolução de demandas repetitivas e a designação discricionária de um juízo competente para decidir todas as questões do processo no caso de conflito de competência[6]. É possível a criação de nova vara com idêntica competência para igualar os acervos dos juízos[7]. (…) Diante desse quadro, só há duas opções: ou tudo isso é inconstitucional ou o princípio do juiz natural deve ganhar novo conteúdo[8]. Uma vez admitidas as normas e práticas que vulneram as características clássicas do juiz natural, seu conteúdo e âmbito de proteção precisam ser reconstruídos.”
No caso da ação civil pública da fila de espera do Coração do Hospital de Cariri, no Ceará, as partes vincularam a ação a determinado julgador não originariamente competente para o caso sem que houvesse qualquer violação aos valores que o princípio do juiz natural visam resguardar.
O princípio do juiz natural precisa se desvincular da ideia de que as regras de competências somente podem ser previstas em lei, devem ser editada antes dos fatos regulados, sem possibilidade de alteração e sem espaço para o uso de conceitos jurídicos indeterminados e deve ganhar novo conteúdo relacionado à objetividade, impessoalidade, invariância, previsibilidade, estabilidade e controlabilidade das regras de competência.
No estado de coisas atual, é preciso perceber que a indisponibilidade das competências pode ser flexibilizada para compatibilizar o juiz natural e a eficiência, e essa flexibilização pode decorrer de norma constitucional, legal, administrativa e até do concerto entre juízes, objeto de nossa obra e do acordo entre as partes.
É preciso, portanto, perceber um novo modelo de competências jurisdicionais sem apego excessivo a legalidade estrita e a crença de que o legislador pode exaurir todos os critérios de atribuição de competência, possibilitando a aplicação do princípio da competência adequada como técnica processual voltada a um processo justo e célere.
[1] BORGES, Fabrício de Lima. Litígios estruturais, negócios processuais e o princípio do juiz natural: o caso da ação civil pública sobre a fila de espera do hospital do coração do Cariri. In: Bochenek, Antônio César (coord.). Demandas estruturais e litígios de alta complexidade. Casos práticos analisados no Mestrado da Enfam. Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2022. p. 281-282.
[2] BORGES, Fabrício de Lima. Litígios estruturais, negócios processuais e o princípio do juiz natural: o caso da ação civil pública sobre a fila de espera do hospital do coração do Cariri. In: Bochenek, Antônio César (coord.). Demandas estruturais e litígios de alta complexidade. Casos práticos analisados no Mestrado da Enfam. Brasília: Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados — Enfam, 2022. p. p. 285.
[3] “(…) o discurso sobre juiz natural ainda é fundado nas premissas setencentistas que motivaram o nascimento do princípio (…) Percebe-se, então, uma ruptura entre teoria e prática, uma tensão entre as garantias de legalidade e segurança e outras relevantes considerações de justiça procedimental e efetividade do processo”. (CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 227-228).
[4] FABRI, Marco; LANGBROEK, Philip M. Is there a right judge for each case? A comparative study of case assignment in six European countries. European Journal of Legal Studies, v.1, n. 2 (January, 2007), p. 301.
[5] A título ilustrativo, cita-se a Resolução n.º 03/21 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte que dispõe sobre a alteração de competências de unidades jurisdicionais do Poder Judiciário. A referida resolução especializou, dentre outras, a 12ª e 14ª varas atribuindo-lhe competência para processar e julgar os crimes relacionados na Lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas) e aqueles cometidos contra o meio ambiente e a 16ª Vara Criminal que passou a ter competência privativa para processar e julgar, em todo o Estado, os crimes afetos à Justiça Militar.
[6] O art. 955 do CPC prevê que o relator poderá, de ofício ou a requerimento de qualquer das partes, determinar, quando o conflito for positivo, o sobrestamento do processo e, nesse caso, bem como no de conflito negativo, designar um dos juízes para resolver, em caráter provisório, as medidas urgentes. Veja que a lei não trouxe qualquer elemento objetivo para escolha do juiz competente. Nas ações falimentares, tem sido designado o juízo universal: STJ, Decisão monocrática, CC n. 171324, rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 18.03.2020, publicado no DJ de 21.05.2020.
[7] STJ, 5ª T., HC n. 102193, rel. Min. Laurita Vaz, j. em 02.02.2010, publicado no DJ de 22.03.2010.
[8] CABRAL, Antonio do Passo. Juiz natural e eficiência processual: flexibilização, delegação e coordenação de competências no processo civil. cit., 2021. p. 26.