O Estado Constitucional está assentado no dever de progresso e na proibição do retrocesso. O dever de progresso impõe ao Estado o avanço na sua atuação legislativa, executiva e judicial, pois a pretensão estatal não se limita ao já conquistado, aceitando a melhoria qualitativa e quantitativa das prestações materiais e imateriais em prol da sociedade. O dever de progresso está conectado ao princípio do desenvolvimento e se projeta para o futuro.
A proibição de retrocesso em saúde constitui princípio constitucional fundamentado em vários princípios:
- Estado Democrático e Social de Direito
- Dignidade da pessoa humana
- Máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais
- Segurança jurídica
- Proteção da confiança
- Negação da proibição de retrocesso
- Sistema de proteção internacional
- Enunciados dos artigos 3º, 170, 196 e seguintes da Constituição
(NETTO 2010)
Há algum tempo o Poder Judiciário tem examinado pedidos de usuários do sistema de saúde para condenar o Estado a fornecer medicamentos, tratamentos e tecnologia sob o argumento de que a CF88 estabeleceu que a saúde é direito fundamental a ser perseguido e implementado conforme preconizam os artigos 6º e 196. A questão central é saber se o direito à saúde possui limitação. Como a noção geral é que sem saúde não há dignidade humana, a saúde seria direito absoluto do cidadão. Em geral, o Judiciário fundamenta que o direito à saúde está previsto na Constituição e que cabe ao Estado prestar toda e qualquer política para efetivá-lo. Via de regra, o próprio STF utiliza apenas argumentos jurídicos para condenar entes públicos ao fornecimento de medicamentos o que não é a melhor forma de enfrentar a questão.
Existe dever estatal de prestação de serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos de maneira ampla. Essa dimensão objetiva do direito fundamental à saúde condiciona a atuação do legislativo, do administrativo e o juiz no exercício e controle das políticas públicas de saúde. O Estado está, pois, cercado de pelo menos três deveres:
- Dever de respeito – não pode violar o direito à saúde
- Dever de proteção – não pode permitir a violação do direito à saúde
- Dever de promoção – prover condições básicas para o pleno exercício do direito à saúde.
Concomitantemente deve proteger a dimensão subjetiva do direito fundamental à saúde. Descumprimento do princípio da integralidade permite que o cidadão solicite ao Estado-juiz o respeito e a reparação da violação àquele direito fundamental. Contudo, o STF já proferiu várias decisões nas quais rejeita a existência de direitos absolutos, pois, a escassez de recursos financeiros impede que a Constituição confira, a todo brasileiro, o direito de ter a melhor prestação de serviço de saúde existente no mundo. (ALEXY, 2015). Portanto, o fato de o sistema jurídico brasileiro contemplar a saúde como direito fundamental social, não implica em que não sejam levados em conta o aspecto fático da limitação financeira e dos recursos humanos e tecnológicos. Via de regra, no Brasil, a questão da limitação financeira em geral é esquecida na judicialização da saúde. Ressalte-se que não existe lugar no mundo onde o sistema de saúde seja completo, perfeito e impecável exatamente pelas limitações financeira, de recursos humanos e de tecnologia.
Os sistemas de saúde e jurídico nacionais precisam encontrar um caminho comum inevitável para buscar a eficiência por meio de integração do conhecimento e dos processos de pesquisa científica para fundamentar decisões que se fundamentem em boas evidências e que possam trazer maior segurança e eficiência, qualidades fundamentais para qualquer decisão.
A implementação de políticas públicas por determinação judicial não representa invasão de poderes nem ofensa à Constituição Federal, pois realizada dentro das peculiaridades do caso concreto e lastreada na dignidade da pessoa humana, ou seja, pela necessidade de preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, em que se inserem os chamados direitos de subsistência, quais sejam, saúde, moradia, educação e alimentação (GANDINI 2010).
A análise do conteúdo normativo do direito à saúde inscrito na Constituição – artigos 6º, 196 a 198- demonstra que não existe direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e a qualquer custo, a todo e qualquer meio de proteção à saúde. Assim, “não se pode ter como existente direito líquido e certo de obter do Estado, gratuitamente, o fornecimento de medicamento de alto custo, não incluído nas listas próprias expedidas pelos órgão técnicos de formulação da política nacional de medicamentos e, ademais, considerado pelos órgãos técnicos do Poder Público (Ministério da Saúde e órgãos colegiados do sistema único de saúde-SUS) e pela opinião da comunidade científica como ineficaz para o tratamento da enfermidade, na situação apresentada pelo Impetrante. Acertada, portanto a decisão do tribunal recorrido, de denegar a ordem” (REsp 24.197, 1ª Turma, Relator Teori A. Zavaski, julgado em 04 de maio de 2010.
O processo fundamental de reduzir as incertezas no tocante a decisões médicas passa pelo que inicialmente foi denominado Epidemiologia Clínica e hoje é conhecido como Medicina Baseada em Evidências (MBE). Evidência, em inglês, significa prova, ou seja, medicina baseada em provas no norteamento das decisões médicas e da saúde.
Os objetivos que o trabalho dos profissionais do Direito necessita, constituem, também, o uso de evidências para seus processos decisórios. Portanto, se as decisões médicas e/ou jurídicas não tiverem embasamento em conhecimentos científicos voltados para a definição de diretrizes que busquem a eficácia, a efetividade, a eficiência, e a segurança no que se refere à prevenção, diagnóstico e tratamento em saúde, a racionalização do que se denomina Judicialização da Saúde, não pode utilizar o poder do judiciário em benefício dos cidadãos e da sustentabilidade de sistema de Saúde, agravando a carência de recursos financeiros e a própria sustentabilidade do sistema.
Diferentes aspectos científicos devem ser incorporados pelos atores do sistema de Justiça. Para exemplificar: incorporação de medicamentos nas listas oficiais; autorização para produção, importação e venda de remédios; dispensação de medicamentos para determinada moléstia. Entretanto esses temas não são questões meramente jurídicas. Impõe-se que os dados oriundos da ciência médica e farmacêutica sejam objeto de debate. A base para esse debate devem ser os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas e a MBE que podem ter papel preponderante na solução do litígio.
Ressalte-se que impera no Brasil o do “Mito do Governo Grátis”, no qual o Estado tem o dever de prestar tudo sem nenhum custo. Esse pensamento equivocado é adotado muitas vezes pelo próprio Judiciário que toma decisões que desequilibram o sistema público de saúde e o sistema suplementar de saúde (CASTRO, 2014).
O direito à saúde é conceito diferente do direito de ter saúde. Nem sempre a concessão de medicamentos ou de procedimentos, embora possa contemplar o direito à saúde, é capaz de restaura o direito de ter saúde, porquanto a limitação do conhecimento sobre as causas básicas de muitas doenças impede que o tratamento ou procedimento concedido judicialmente possa restaurar a saúde do paciente.
A judicialização da saúde ocorre a partir de duas hipóteses:
1º- Quando se postula o exercício do direito já reconhecido, mas negado na via administrativa. Exemplo- medicamento, tratamento ou tecnologia já incorporado pelo SUS ou pelos planos de saúde, mas não dispensados ao cidadão. A tendência nesses casos é que o juiz julgue procedente o pedido o que não causa problemas maiores para o demandado – entes públicos ou operadoras planos de saúde – vez que o tratamento postulado já existe.
2º- Quando a discussão processual gira em torno de direitos não reconhecidos na via administrativa. Isso pode ocorrer, por exemplo, com tratamentos e tecnologias não incorporados, sem registro na ANVISA e sem comercialização no mercado nacional, ou quando não há indicação médica para usufruir de tecnologia já incorporada.
Nesses casos a procedência do pedido deve ser analisada com rigor por não haver previsão legal para a sua concessão. Por isso mesmo o papel do Judiciário deve ser de equilíbrio. O artigo 5º, inciso XXXV da Constituição fundamenta a judicialização ilimitada das demandas sociais e políticas no Estado Brasileiro. Não há limitador para o ajuizamento das ações judiciais, o que levou o Judiciário a assumir a tarefa de regular e disciplinar tais questões, passando de coadjuvante do estado a ator principal. O Estado tornou-se gigante e incapaz de satisfazer todas as demandas, principalmente no âmbito da saúde. O Poder judiciário tornou-se o canal para controle da atuação estatal, para corrigir os desvios e omissões dos demais poderes (CLÉVE, 2011).
O papel do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na judicialização da saúde
O CNJ criou grupo de trabalho para estudo e propostas de medidas concretas e normativas para as demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde (Portaria 650, 20.11.2009). Em decorrência foi aprovada a Recomendação nº 31, em 30.03.2010, pelo plenário do CNJ, que passou a estabelecer diretrizes aos juízes em relação às demandas que envolvem o direito à saúde. Essa Recomendação observa os seguintes assuntos;
- Elevado número de processos judiciais sobre o tema da saúde
- Alto impacto orçamentário para cumprimento das decisões
- Relevância da matéria diante da finalidade de assegurar vida digna aos cidadãos
- Carência de informações clínicas prestadas aos juízes do Brasil sobre os problemas de saúde
- Necessidade de prévia análise e registro da ANVISA para comercialização de medicamentos no Brasil nos termos do 12 da Lei 6.360/76 c/c a Lei 9782/99
- Reivindicações dos gestores para que sejam ouvidos antes da prolatação de decisões judiciais
- Importância de assegurar a sustentabilidade e gerenciamento do SUS.
Posteriormente, o CNJ elaborou a Resolução nº 107, de 06.04.2010 que instituiu o Fórum nacional do Judiciário para monitoramento e resolução das demandas de assistência à Saúde – Fórum da Saúde com as seguintes atribuições:
- Monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de medicamentos, produtos e insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares
- Monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde
- Proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas
- Proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos e à definição de estratégias nas questões de direito sanitário
- Estudo e proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum Nacional.
O Fórum da Saúde é composto por um Comitê Executivo Nacional, integrado por um juiz auxiliar da Presidência, juízes com atuação na área, especialistas, integrante do Ministério da Saúde, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONSEMS ) e Conselho Nacional de Secretarias de Saúde (CONASS). A constituição do Fórum de Saúde conta com participação de membros de Comitês Estaduais e do Comitê Distrital. Ressalte-se que os Comitês Estaduais têm em sua composição membros do sistema de justiça e do sistema de saúde.
Composição do sistema de justiça:
- Juízes federais
- Juízes de direito
- Ministério Público Federal
- Ministério Público Estadual
- Procuradorias Estaduais
- Procuradorias Municipais
- Defensoria Pública Federal
- Defensoria Pública Estadual
- Ordem de Advogados do Brasil
Composição do sistema de saúde:
- Gestores das Secretarias Estaduais de Saúde
- Gestores das Secretarias Municipais de Saúde
- Farmacêuticos
- Gestores da Medicina Suplementar
A composição dos Comitês contribui para efetivar a teoria dos diálogos institucionais com aproximação e comunicação contínua dos diversos atores. O diálogo permite, também, a independência e a harmonia entre os Poderes da União, conforme preconiza o art. 2º da Constituição.
A finalidade do Fórum da Saúde do CNJ é a redução da judicialização, sem limitar o exercício da cidadania. Quando inevitável a discussão judicial os agentes envolvidos devem tentar resolver a lide da forma menos agressiva e menos onerosa para os envolvidos. Para tanto foram adotadas algumas iniciativas:
- Criação dos Núcleos de Apoio Técnico (NAT) – compostos por profissionais das áreas médica, farmacêutica, assistência social e membros das Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. A finalidade é auxiliar os magistrados na deliberação sobre processos envolvendo temas de saúde, manifestando-se sobre registro de medicamento na ANVISA; eficácia e eficiência do tratamento solicitado; existência de medicamento genérico de menor preço, já fornecido administrativamente pelo SUS; custo efetividade do tratamento. O NAT auxilia o juiz na análise do pedido de liminar ou do pedido principal. Além dessas funções o NAT auxilia no cumprimento das decisões judiciais, devido a dificuldades e obstáculos muitas vezes criados pelos demandados, na facilitação da defesa dos entes públicos, na simplificação do atendimento de demandas na defensoria pública, na facilitação da celebração de acordos e na contribuição para produção de provas com participação em audiências e emissão de pareceres.
- Elaboração de Enunciados – Estes contemplam resumos de práticas de sucesso e sugerem aos diversos atores do sistema judicial e do sistema de saúde.
- Edição de Cartilhas – Alguns Comitês Estaduais do Fórum de Saúde passaram a editar cartilhas com síntese de pensamentos obre o tema da saúde. Por exemplo, o Comitê do Rio Grande do Norte elaborou cartilha sobre oncologia no SUS, contendo informações sobre:
- Política de dispensação de medicamentos oncológicos no SUS
- Eventos cobertos pela Política Nacional de Atenção Oncológica (PNAO)
- Estrutura e organização da rede de atenção oncológica
- Credenciamento de clínicas e hospitais conveniados
- Protocolos e diretrizes terapêuticas dos SUS
- Formas e procedimentos de pagamento pelos serviços prestados aos beneficiários do SUS, na área oncológica
- Oncologia e a Lei 12.732/2012
- Dispensação centralizada de medicamentos na área oncologia
- Termos técnicos utilizados em oncologia
- Mutirões de conciliação na área da saúde – Processos específicos ou com pedidos idênticos são levados para tentativa de conciliação entre as partes envolvidas. Câmaras de conciliação podem ser criadas para atuar na resolução de problemas de saúde p0ública e também de saúde suplementar, inclusive previamente ao ajui8zamento da ação judicial. Caso não se consiga a conciliação o juiz pode proferir decisão liminar ou definitiva na própria audiência.
- Especialização de varas de saúde pública – o CNJ faz recomendação aos tribunais dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais para especialização de varas para processar e julgar processos cujo objeto tenha sido saúde pública e priorizar julgamento de processos relativos a demandas de saúde suplementar. O CNJ recomendou, ainda, sugerir à Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento (ENFAM) e ao Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário (CEAJUD) do próprio CNJ a inclusão do direito sanitário como disciplina obrigatória em concursos públicos de ingresso na magistratura e nos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento (Recomendação CNJ, nº 31, 2010).
- Jornada de direito da saúde do CNJ – Com a finalidade de reunir autoridades das áreas da saúde e do direito para debater a judicialização da saúde, uniformizar entendimentos e auxiliar as decisões dos agentes de saúde e dos integrantes do sistema de saúde foram produzidos e aprovados enunciados interpretativos. A I jornada aconteceu em maio de 2014, com aprovação de quarenta e cinco enunciados.
- Enunciados de saúde pública – As premissas foram relativas a procedimentos e a segurança de procedimentos que empregam tecnologias postuladas na via judicial. As diretrizes aprovadas nessa primeira jornada foram:
- Evitar sempre que possível internação psiquiátrica
- Necessidade de renovação periódica do relatório médico nas decisões de caráter continuado
- Verificação do atendimento pela via administrativa antes da judicialização
- Esgotamento dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas do SUS ou demonstração de sua inviabilidade diante do quadro clínico apresentado pelo paciente
- Adoção do rito ordinário quando o pleito envolver medicamento não registrado na ANVISA, experimental ou internação compulsória, incompatível com o rito dos juizados especiais
- Evitar o fornecimento de medicamentos não autorizados pela ANVISA ou experimentais
- Nos tratamentos oncológicos os pacientes devem ser acompanhados por CACON/UNCOM
- Necessidade de observância as regras administrativas de repartição de competências entre os gestores
- Cumprimento das normas da CONEPE e da ANVISA nos tratamentos experimentais
- Não cabe ao SUS o cumprimento de serviços de assistência social
- Inclusão do autor do processo judicial no programa de acompanhamento do SUS
- Comprovação da inefetividade do tratamento fornecido pelo SUS
- Oitiva do gestor previamente à decisão judicial de fornecimento de medicamento, tratamento ou produto.
- Indeferimento de pedido quando não comprovada a inefetividade ou impropriedade do tratamento fornecido pelo SUS
- Indicação técnica nas prescrições médicas e não indicação de marca
- É do autor do processo judicial o ônus de provar a ausência de evidência científica, inefetividade ou impropriedade do tratamento do SUS
- Os municípios podem indicar representantes para compor os núcleos de Assessoramento ou Apoio Técnico (NATs)
- Os NATs devem se manifestar previamente à decisão liminar ou antecipatória de tutela
- Recomendação para o autor apresentar questionário técnico respondido por seu médico.
- Enunciados de saúde suplementar
- As operadoras de saúde estão obrigadas a fazer inseminação artificial ou fertilização in vitro apenas se houver previsão contratual
- Os contratos devem observar o rol de procedimentos de cobertura obrigatória previsto em Resolução da Agencia Nacional de Saúde (ANS)
- O regime jurídico dos planos coletivos é diferente do regime jurídico dos planos individuais
- A ANS deve ser consultada nos litígios judiciais sobre extensão e cobertura de procedimentos
- Cabe à operadora as despesas de terceiro profissional indicado para dissipar dúvida entre o profissional indicado pelo segurado e pela própria operadora
- Não pode ser negada assistência com base em doença preexistente desconhecida
- É lícito exclusão de cobertura de produto não nacionalizado ou experimental
- Devem ser observados os normativos do CFM, do CFO e o rol de procedimentos da ANS. Nas decisões judiciais para fornecimento de OPME deve ser mencionada a descrição técnica e observar a regulamentação vigente
- O juiz deve exigir do médico assistente a comprovação da eficácia, efetividade, segurança e evidência científica do tratamento, medicamento ou OPME indicado
- Cabe a audiência de justificação com o médico ou odontólogo para dirimir dúvidas técnicas acerca da prescrição
- Os juízes devem utilizar o NAT ou serviço equivalente
- A petição inicial deve conter a descrição completa do tratamento, medicamento, produto e do quadro clínico do autor da ação judicial
- Os integrantes do sistema de Justiça devem utilizar os pareceres da CONITEC e da ANS
- Não podem ser negados os serviços e tratamentos previstos na Lei 9.556/98 e no rol de procedimentos e eventos em saúde, incluindo-se aqueles decorrentes de complicações de procedimentos médicos e cirúrgicos de procedimentos não cobertos
- Cabe ao consumidor comprovar o seu vínculo com a respectiva pessoa jurídica, sob pena de seu contrato ser considerado individual.
- Enunciados de biodireito
- As manifestações antecipadas de vontade devem ser feitas preferencialmente por escrito, admitindo-se outras formas inequívocas
- Pesquisa com seres humanos devem ser promovidas com base na sua necessidade, sua utilidade, sua proporcionalidade e com observância dos direitos fundamentais
- O estado de filiação não ocorre apenas do vínculo genético, incluindo a reprodução assistida com material genético de terceiro, derivando da manifestação inequívoca de vontade da parte
- Pessoas do mesmo sexo podem ser consideradas pais no registro de nascimento de indivíduo gerado por reprodução assistida
- É inconstitucional a limitação de idade máxima para que mulheres possam submeter-se a tratamento ao tratamento e à gestação por reprodução assistida
- Se houver comprovação do desejo pessoal fica dispensada a cirurgia de transgenitalização para a retificação do nome de registro civil
- Admite-se a retificação do sexo jurídico sem a realização da cirurgia de transgenitalização
- O absolutamente incapaz em risco de morte pode ser submetido a tratamento médico contra a vontade do seu representante
- Na gestação de substituição em reprodução humana assistida, deve-se observar a determinação do vínculo de filiação dos autores do projeto parental que promoveram o procedimento.
Os enunciados mencionados apontam para a necessidade de se ampliar e fortalecer o diálogo entre os agentes públicos responsáveis pela concretização do direito fundamental à saúde. A atuação isolada do sistema de justiça e do sistema de saúde trava o progresso almejado pela sociedade. Operadores do direto e gestores de saúde precisam discutir e analisar, em conjunto, os fatores técnicos externos à teoria jurídica e, por isso, o conhecimento médico com base científica precisa ser observado na análise do processo judicial sobre o tema da saúde.
Apesar da regulação por órgãos oficiais e pela legislação e da garantia constitucional o direito à saúde ainda continua a ser concedido pela avaliação subjetiva do julgador. Por certo, a execução de políticas públicas de saúde não pode exigir a chancela do Judiciário em todas as opções e escolhas, diante do enorme número superior a cem milhões de processos em tramitação. O uso adequado dos escassos recursos exige postura adequada do sistema de Justiça, incluindo o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Advocacia.
Alguns problemas que dificultam a aplicação das políticas de saúde podem ser levantadas:
- Ações coletivas – Não é razoável a ampliação do número de processos judiciais individuais para a resolução de problemas coletivos. É preciso fomentar o manejo de ações coletivas para permitir que os tratamentos, medicamentos ou políticas postulados apresentadas ao Judiciário sejam direcionadas a maior número de pessoas.
- Flexibilidade na análise de pedidos deduzidos judicialmente – há decisões judiciais provendo fornecimento de pílula estimulante sexual, chocolate ou alimento sem glúten para portador de doença celíaca, com base em prescrição médica tecnicamente duvidosa. Estaria o juiz vinculado ao que consta na prescrição médica? A resposta baseada na Constituição é não, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV – princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. O juiz não é refém do médico e o médico não possui superpoderes para prescrever, vez que deve observar as práticas cientificamente comprovadas e a legislação regente.
- Diálogo entre o sistema de justiça e o sistema de saúde – a atuação isolada de cada um desses dois sistemas impede a evolução e o progresso desejado pela sociedade. A melhor decisão judicial sobre tratamento de saúde deve passar pela análise de fatores técnicos externos à teoria jurídica. O conhecimento medico e farmacológico precisa ser incorporado ao exercício da função jurisdicional.
- Conhecimento das políticas de saúde pelos atores do sistema de saúde. O Ministério da Saúde divulga os programas existentes no âmbito do Governo Federal; a CONITEC informa o procedimento de incorporação de novas tecnologias ao sistema de saúde pública; a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) divulga os fármacos disponíveis no SUS.
- Fomento à mediação e conciliação – Os Entes públicos, gestores de saúde e procuradores, devem ser mais acessíveis às políticas de conciliação e de mediação. A ultrapassada ideia de que a fazenda pública não pode fazer acordo precisa ser abandonada.
O papel do Poder Judiciário está desvirtuado. Ao invés de controle da administração pública, da gestão adequada e dos atos e contratos praticados no espectro das operadoras de plano de saúde, verificando vício, omissão, ilegalidade ou inconstitucionalidade do ato administrativo e, em decorrência, revisar ou anular tal ato, a atuação do juiz hoje é substituir o administrador público. O Judiciário controla tudo, sem qualquer limite e, em razão da escassez de tempo, de recursos humanos essa nova função do magistrado adsorvendo sem limites todas as demandas do cidadão brasileiro, tira do Judiciário as condições mínimas para exercer sua função constitucional.
Algumas situações são ilustrativas dessa situação:
- O cidadão que arca com os custos de tratamento e de medicamento cobra do Estado o valor pago.
- Ações de indenização impetradas pelo cidadão, em face do ente público por despesas pagas em procedimento cirúrgico.
- Decisão judicial que determina internação em CTI
- Decisão judicial que obriga o Estado a arcar com o pagamento de medicamento.
- Indenização a ser paga por hospital público por atuação médica que não conseguiu o resultado almejado, sem comprovação da culpa do profissional médico.
Essas situações eram limitadas aos agentes do sistema de saúde. Hoje constituem problemas enfrentados pelo juiz ao julgar processos sobre direito à saúde.
O Recurso Extraordinário 368.564 simboliza o cenário atual sobre judicialização da saúde. Trata-se de decisão do STF que concedeu a várias pessoas, portadoras da condição clínica de retinose pigmentar, com todas as despesas custeadas pelo Estado, o direito de obter tratamento em Cuba, sem comprovação científica da eficácia e efetividade do tratamento. O laudo existente apontava a ausência de cura. Apesar disso o STF condenou o Estado. A análise da matéria teve início em sessão realizada no dia 8 de abril de 2008, quando o relator, ministro Menezes Direito (falecido), entendeu que o pedido do grupo não poderia ser deferido, votando no sentido de prover o recurso da União. Segundo ele, essa doença não tem cura e a viagem para Cuba seria inócua, feita às custas do erário. O relator afirmou à época que o direito é conferido se existe a possibilidade certificada de cura, “de que existe o tratamento, de que é possível perante os requisitos que o Estado estabeleceu: laudo, parecer, indicação”. No entanto, avaliou que no caso concreto há um laudo do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, segundo o qual não existe tratamento em lugar algum.
Retomado o julgamento em 13 de abril de 2011, o Relator, ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto-vista, negou o recurso e abriu divergência, ao permitir a viagem ao exterior. Segundo ele, o direito à saúde é fundamental e é um dever do Estado.
“ […] Eu não posso compreender que se articule a inexistência de lastro econômico-financeiro para se negar um tratamento à saúde a um cidadão”, disse, ao citar como precedente o Recurso Extraordinário (RE) 271286. Pelo que leio nos veículos de comunicação, o tratamento dessa doença, com êxito, está realmente em Cuba”.
A decisão demonstra a forma inadequada como são analisados os processos judiciais sobre saúde. Custa acreditar que decisão judicial seja proferida, tendo como base informação jornalística e não o sistema jurídico com previsão constitucional.
O direito à saúde previsto na Constituição Federal não possui alcance ilimitado e não confere direitos absolutos aos destinatários do seu texto. Por outro lado, o CNJ aprovou o Enunciado nº 13: “Nas ações de saúde que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde, com vistas a inclusive identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas”.
A judicialização da saúde foi melhor normatizada pela Lei 12.401/2011 com criação da CONITEC e de requisitos para incorporação de novas tecnologias pelo SUSa saber:
- Evidências científicas sobre a eficácia, acurácia, a efetividade e a segurança do produto ou procedimento objeto do processo.
- Avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial, ou hospitalar quando cabível.
- A cirurgia adotada é o melhor procedimento baseado em evidência científica
- A cirurgia é eficaz e eficiente para o tratamento
- Configura a melhor opção clínica do ponto de vista do custo-benefício relativamente a outros tratamentos.
Não existe meios para controlar o valor cobrado pelo profissional da área médica contratado pela parte autora do processo judicial. Nos casos de internação compulsória o magistrado deve avaliar o quadro fático com base nas informações do gestor do hospital.
Há também vários processos judiciais de pedidos de indenização ajuizados em face dos entes públicos ou das operadoras de planos de saúde em razão de demora no tratamento ou na prestação de serviços de saúde. Os fundamentos da teoria clássica da responsabilidade civil estabelecidos em vários diplomas legais. Nos casos em que os danos aos particulares decorrem de omissão do Estado devido a deficiência ou inexistência do serviço de saúde, a responsabilidade será de ordem subjetiva, cabendo à vítima a prova da existência do fato, do dano, do nexo de causalidade entre um e outro e a culpa da Administração.
Segundo o Relatório Justiça em Números do CNJ em 2013 existiam 95,3 milhões de processos em tramitação. Como cada processo exige duas partes e havia à época do relatório cerca de 200 milhões de habitantes, praticamente todos os brasileiros litigam em um processo judicial. A explicação para esse elevado número de processos judiciais engloba:
- Cultura do litígio
- Facilidade de acesso à Justiça
- Estrutura funcional e burocrática do sistema de justiça
- Facilidade maior de pedir ao juiz do que enfrentar fila do SUS
- Qualidade deficiente de serviços médicos
- Gratuidade
- Necessidade de ser politicamente correto
- Ausência de análise adequada dos fatos
- Primazia absoluta do direito à saúde
- Ausência de governança pública
- Fomento à meritocracia
- Desrespeito ao consequencialismo
- Ausência de cultura da responsabilidade
- Subsidiariedade no SUS
- Necessidade de equilíbrio na relação livre iniciativa e direito do consumidor
- Necessidade de reajuste na cadeia de intermediários
- Equilíbrio contratual nos planos de saúde
- Cultura da medicamentação
- Cumprimento do dever fundamental de exercer a boa administração pública
- Ampliação e concretização do papel da CONITEC no SUS
- Adoção do critério de decisão judicial
- Melhoria na defesa dos entes públicos
- Aplicação adequada da proporcionalidade
- Definição das prioridades
- Redes
- Princípios constitucionais do direito à saúde
A CF88 elevou a saúde ao nível dos direitos sociais (art.6º), estabelecendo regras de competência legislativa, de planejamento e de execução. A União, Estados e Municípios têm competência comum para cuidar da saúde (art. 23, II). A União é competente para legislar sobre direito sanitário (art. 24, XII). O município tem competência para prestar serviços de atendimento à saúde da população, com cooperação técnica e financeira da União e do Estado (art. 30, VII) e previsão de limites mínimos de aplicação de recursos orçamentários na saúde (art. 34, VI, e). Além dessas regras de competência e custeio, a Constituição instituiu no capítulo da Seguridade Social, uma seção destinada à saúde (art. 196 e seguintes). Os artigos 196 e 198, praticamente definem a moldura do Sistema Único de Saúde.
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais”.
Ficou instituído, pois, o sistema público de saúde, as ações de saúde passaram a ser matéria de relevância pública (art.197), tornou livre à iniciativa privada a assistência à saúde (art. 199) em sintonia com o artigo 170 que trata dos princípios que regulam a atividade econômica. Concebeu-se assim um sistema único de saúde, hierarquizado com competências fixadas pelo artigo 200 da Constituição Federal.
O acesso universal e igualitário assegura o direito à saúde a todos os indivíduos e preserva o princípio da universalidade, ou seja, a garantia estatal para o acesso à saúde em todos os seus níveis. Basta ter a condição de ser humano para que seja garantido o atendimento preventivo e curativo relativos aos problemas de saúde, em todos os seus níveis, o que pode ser considerado como quase utópico. O artigo 7º, I, da Lei 8080/90 confere a “universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência”.
Outro parâmetro assegurado pela Constituição é o princípio da integralidade ou do atendimento integral do art. 198, II da CF88. Por óbvio, o atendimento integral previsto na Constituição, não significa todo e qualquer tipo de atendimento, mas constitui diretriz que deve orientar as políticas públicas.
Ressalte-se que a Constituição legitima um sistema público, alicerçado em princípios sociais – solidariedade, igualdade, universalidade e integralidade – e um sistema privado de saúde com princípios que regem a iniciativa privada – liberdade de ação e objetivos financeiros – o que cria dualidade que fratura a Constituição, mas, apresenta aspectos salutares e de iniquidade.
Parcela minoritária da população tem condições de arcar com os custos da saúde integralmente privada, tendo acesso a serviços de excelência, tratamentos de ponta, à tecnologia mais avançada e a médicos altamente qualificados e de renome internacional.
Parcela da sociedade pouco maior tem acesso por meio de panos de saúde com acesso a alguns desses serviços privados, segundo a modalidade dos contratos firmados com as respectivas empresas. Esse grupo é regido pela contratualidade que firma um regime mais delimitado que o grupo em razão das cláusulas contratuais e benefícios cobertos pelo plano de saúde. Desse grupo pode-se identificar um terceiro grupo constituído por indivíduos que aderem a planos de saúde que ofertam serviços básicos, mas não dão acesso a medicamentos/tratamentos mais modernos e onerosos.
Um quarto grupo é representado pela maior parte da população que tem acesso apenas aos serviços públicos de saúde. Esse grupo com os pacientes do terceiro grupo é aquele que busca os serviços públicos representados pelo SUS, com filas enormes, postos de saúde com pequeno poder de resolução, falta de especialistas, falta de leitos hospitalares, carência de CTI, falta de acesso a médicos com grande expertise em áreas definidas. Os serviços disponíveis contrastam com os da saúde privada, acessíveis somente para pacientes do 1º e 2º grupos.
Essa realidade dupla, amparada pela legislação pode ser uma das causas da judicialização da saúde, porquanto existe a tentativa de se oferecer aos pacientes que dispõe apenas do SUS o mesmo padrão de qualidade do sistema privado. A maioria das ações na área da saúde provém dos usuários do 3º grupo que não tem condições de arcar com tratamentos e/ou medicamentos não cobertos por seus contratos particulares. A esses litigantes somam-se o Ministério Público e a Defensoria Pública patrocinando as causas dos usuários do quarto grupo.
Financiamento da saúde
Cada pretensão implica em gastos e em sobrecarga de infraestrutura existente. É reconhecido que há claro problema no custeio da saúde pública e a judicialização agrava o subfinanciamento. Hoje, as ordens judiciais, drenam bilhões de reais que deveriam ser investidos no atendimento coletivo. A judicialização na perspectiva do direito individual, acaba por colaborar com a má distribuição desses parcos recursos. O papel do Poder Judiciário no desenvolvimento e aplicação dos direitos constitucionais é limitado. O Poder Judiciário é o menos legitimado para realizar políticas públicas. As escolhas no âmbito da saúde não são fáceis. Os critérios de necessidade, eficiência, alcance, disponibilidade orçamentária e exclusão de outras possibilidades, entre outras variáveis, precisam ser levadas em conta no processo decisório. Para que se escolher há que se distinguir entre prioridade, alocação de recursos e racionamento.
Quando há escassez absoluta o problema é de racionamento. Na escassez relativa é de alocação de recursos. Na questão da saúde a distinção é importante. No racionamento, a decisão cabe aos médicos, enquanto a alocação de recursos as decisões são políticas ou legais.
Aspectos positivos e negativos da judicialização da saúde (SCHULZE, GEBRAN NETO 2015)
I – Aspectos negativos
- Desorganização dos SUS – Decisões judiciais que atendem interesses individuais atuam em favor de poucos, interferindo por vezes na ordem da fila de atendimento, nas internações, nas cirurgias programadas, ou obrigando o fornecimento de medicamentos, órteses, próteses, ou equipamentos que o Estado não tinha se comprometido.
- Reflexo nas finanças públicas – Decisões judiciais têm implicado no desvio de recursos públicos que deveriam ser drenados para as políticas coletivas, em favor de poucos.
- Escolhas equivocadas de políticas públicas – O poder Judiciário acaba por realizar escolhas para as quais não está legitimado, deixando de atuar como legislador negativo, passando a agir como legislador positivo ou mesmo como administrador.
- Fragilização da isonomia – aporte de recursos escassos para alguns beneficiários em detrimento das políticas instituídas.
II- Aspectos positivos
- Fomento de políticas públicas – Alguns programas de políticas públicas só foram implementadas por meio da judicialização para atender às necessidades (ex: Tratamento da HIV).
- Revisão das políticas – Alteração da Lei 8080/90 pela Lei 12.401com os artigos 19-Q e 19-R com as seguintes alterações:
- Revisão da lista RENAME passando de 510 para 810 itens (Portaria 533 do MSe portaria nº 53/2012 (incorporação de medicamentos).
- Atualização dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas
- Criação da CONITEC
- Fixação de prazo para tratamento de câncer – Edição da Lei nº 12.732/2012 que fixou prazo de 60 dias para tratamento de câncer.
- Saúde como pauta política – A judicialização passou a transformar o direito à saúde, a qualidade do atendimento, as políticas existentes, os medicamentos incorporados, o financiamento da saúde, as tabelas de procedimentos e valores pagos, custos de órteses e próteses, a doença mental, e outros temas passaram a fazer parte da pauta política.
O Poder judiciário tem atuado no sentido de realizar escolhas que estão fora de sua competência. Compete a ele verificar se as escolhas estão em conformidade com a moldura jurídica, corrigindo eventuais equívocos e exigir que as políticas públicas instituídas sejam cumpridas de modo, tempo e forma adequados. A distribuição desordenada de benefícios, atinge número pequeno de beneficiários e vulnera aas políticas existentes em favor da coletividade.
Premissas para processos judiciais sobre a prestação material do direito à saúde
Há direito subjetivo público à saúde no caso de haver política pública que preveja o fornecimento de medicamentos e/ou tratamentos ao cidadão, sendo exigível perante o poder público o seu fornecimento. Essa premissa aparece no Enunciado nº 11 da I Jornada da Saúde:
“Nos casos em que o pedido de ação judicial seja de medicamento, produto ou procedimento já previsto nas listas oficiais do SUS ou em Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), recomenda-se que seja determinada pelo Poder Judiciário a inclusão do demandante em serviço ou programa já existentes no Sistema Único de Saúde (SUS), para fins de acompanhamento e controle clínico”.
Desnecessária a comprovação da hipossuficiência para fazer jus à prestação material, esteja ela fixada em política pública ou não, por força do princípio da universalidade.
A universalidade não está a excluir a isonomia de atendimento, inclusive no que diz respeito ao acesso. Apara quem tem condições de arcar com as despesas, os serviços médicos ou prestaçõesmateriais fora do rol previsto já assegurado legal e administrativamente. O artigo 28 do Decreto nº 7508/11 estabelece:
Art. 28. O acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica pressupõe, cumulativamente:
I – estar o usuário assistido por ações e serviços de saúde do SUS;
II – ter o medicamento sido prescrito por profissional de saúde, no exercício regular de suas funções no SUS;
III – estar a prescrição em conformidade com a RENAME e os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas ou com a relação específica complementar estadual, distrital ou municipal de medicamentos ; e
IV – ter a dispensação ocorrido em unidades indicadas pela direção do SUS.
§1º – os entes federativos poderão ampliar o acesso do usuário à assistência farmacêutica, desde que questões de saúde pública o justifiquem
§2º – O Ministério da Saúde poderá estabelecer regras diferenciadas de acesso a medicamentos de caráter especializado.
Há vedação legal de dispensação de medicamento não aprovado pela ANVISA, contida na Lei nº 8080/90, alterada pela Lei nº 12.401/2011, art. 19-T, II e pelos Enunciados 6 e 9 do Fórum da Saúde:
Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS:
[…] II – A dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.
Enunciado nº 6 – A determinação judicial de fornecimento de fármacos deve evitar os medicamentos ainda não registrados na ANVISA, ou em fase experimentl, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei”.
Enunciado nº 9 – As ações que versem sobre medicamentos e tratamentos experimentais devem ovservar as normas emitidas pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), não se podendo impor aos entes federados provimento e custeio de medicamento e tratamento experimentais”.
É necessário o prévio requerimento à administração para que o Poder Judiciário forneça ou custeie medicamentos ou tratamentos de saúde. Compete à administração responder fundamentadamente e em prazo razoável. A I Jornada da Saúde do CNJ editou o Enunciado nº 13:
“Enunciado nº 13 – Nas ações de saúde, que pleiteiam do poder público o fornecimento de medicamentos, produtos ou tratamentos, recomenda-se, sempre que possível, a prévia oitiva do gestor do Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a, inclusive, identificar solicitação prévia do requerente à Administração, competência do ente federado e alternativas terapêuticas”.
As ações que versem sobre pedidos para que o Poder Público promova a dispensação de medicamentos ou tratamentos, baseada no direito constitucional à saúde devem ser instruídas com prescrição de médico em exercício no Sistema Único de Saúde, ressalvadas as hipóteses excepcionais, devidamente justificadas, sob risco de indeferimento de liminar ou antecipação de tutela.
Os tratamentos para as diferentes afecções devem ser realizados, no âmbito do SUS, segundo as diretrizes fixadas pela política pública, ressalvada a hipótese de demonstração de sua inadequação ou ineficácia para o paciente, sendo vedado o tratamento ou medicamento experimental.
Os Enunciado nº 14 e 16 da I Jornada da Saúde do CNJ:
“Enunciado nº 14 – Não comprovada a inefetividade ou impropriedade dos medicamentos e tratamentos fornecidos pela rede pública de saúde, deve ser indeferido o pedido não constante nas políticas públicas do Sistema Único de Saúde”.
“Enunciado nº 16 – Nas demandas que visam acesso a ações e serviços da saúde diferenciada daquelas oferecidas pelo Sistema Único de Saúde, o autor deve apresentar prova da evidência científica, inexistência, inefetividade ou impropriedade dos procedimentos ou medicamentos, constantes dos protocolos do SUS”.
Necessário laudo médico indicando a necessidade do tratamento excepcional, seus efeitos, estudos da Medicina Baseada em Evidências (MBE) e vantagens para o paciente, além de comparar com eventuais fármacos fornecidos pelo SUS. Essa premissa ficou clara no Enunciado nº 18 da I Jornada da Saúde do CNJ:
“Enunciado nº 18 – Sempre que possível, as decisões liminares sobre saúde devem ser precedidas de notas de evidência científica emitidas por Núcleos de Apoio Técnico em Saúde – NATs”. (Os NATs têm fundamento na Recomendação nº 31 de 30.03.2010 do CNJ).
Deve ser do conhecimento público a existência de conflito de interesse entre o prescritor e o fármaco prescrito. O conflito de interesse está intimamente ligado com a ética e o médico que prescreve o medicamento, tratamento ou OPME deve declarar se existe eventual conflito de interesse.
Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs) e Saúde Baseada em Evidências MBE
O avanço científico da ciência médica embora seja essencial para a melhoria da qualidade da saúde da população, não é incorporado de imediato na prática médica. Os novos medicamentos/ tratamentos precisam ser aprovados pela ANVISA ou incorporados nas listas de medicamentos do SUS. Por outro lado, a incorporação de novas tecnologias e tratamentos depende de infraestrutura e recursos humanos nem sempre disponíveis a contento no sistema público. Essas circunstâncias dão origem à judicialização da saúde e causam impacto jurídico, político e médico estimulando novas políticas públicas e modificação legislativa.
Esse cenário impulsionou duas técnicas como importantes instrumentos da Administração reconhecidas pela Lei 12.401/2011: 1-) os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) e 2-) a Medicina Baseada em Evidências (MBE). Tanto os PCDTs quanto a MBE produzem equilíbrio entre o que está disponível no mercado e o que deve ser incorporado pelo SUS, além de oferecer soluções para problemas técnicos, jurídicos e econômicos, relativos ao direito à saúde.
Nem tudo colocado no mercado pela indústria traz vantagens sobre o que já está incorporado e há muitos produtos que são disponibilizados no mercado e que deveriam constar das políticas públicas. Os PCDTs e a MBE podem, portanto, servir como balisa para distinguir o que pode ser devido aos indivíduos, ainda que não previstos no SUS.
Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDTs)
Informações e produtos inundam o mercado, sem comprovação da efetividade, eficácia e segurança. A divulgação de novos tratamentos atinge os médicos, em grande parte pelos representantes de laboratório, pelas dificuldades de atualização e pelos interesses envolvidos (ANGELL 2008). A partir de 1999 a Associação médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina deliberaram desenvolver Diretrizes Médicas baseadas em evidências científicas para auxiliar a classe médica sobre os melhores cuidados e na tomada de decisões, visando o bem-estar dos pacientes. A administração pública encampou a ideia e passou a utilizar PCDTs para orientar a prestação de saúde no Brasil. A adoção de PDCT ultrapassou o seu uso administrativo e hoje está disposto na Lei 12.401/2011, que alterou a Lei 8080/90, conhecida como Lei do SUS. Conforme o art. 19-N da Lei 8080/90 PDCT
Art. 19-N. Para os efeitos do disposto no art. 19-M, são adotadas as seguintes definições:
[…] II – protocolo clínico e diretriz terapêutica: documento que estabelece critérios para o diagnóstico da doença ou do agravo à saúde; o tratamento preconizado, com os medicamentos e demais produtos apropriados, quando couber; as posologias recomendadas; os mecanismos de controle clínico; e o acompanhamento e a verificação dos resultados terapêuticos, a serem seguidos pelos gestores do SUS
O artigo 19-O, por sua vez, estabelece:
Art. 19-O. Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas deverão estabelecer os medicamentos e os produtos necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que tratam, bem como aqueles indicados em casos de perda de eficácia e de surgimento de intolerância ou reação adversa relevante, provocadas pelo medicamento, produto ou procedimento de primeira escolha”. Parágrafo único. Em qualquer caso, os medicamentos ou produtos de que trata o caput deste artigo serão aqueles avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo.
(MIRANDA, 2013)
O enunciado nº 4 da I Jornada de direito à saúde definiu a utilização do PCDT e seu papel no SUS:
“Enunciado nº 4 – Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) são elementos organizadores da prestação farmacêutica, e não limitadores. Assim, no caso concret, quando todas as alternativas terapêuticas previstas no respectivo PCDT já tiverem sido esgotadas ou forem invuiáveis npo quadro clínico do paciente usuário do Sistema Único de Saúde (SUS), pelo princípio do art. 198, III, da CF, pode ser determinado judicialmente o fornecimento pelo SUS, do fármaco não padronizado”.
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (CONITEC)
A Lei 8080/90 modificada pela Lei 12.401/2011 dispõe expressamente no artigo 19-Q, sobre a incorporação, exclusão, e alteração, pelo SUS, de novos medicamentos, produtos e procedimentos, por intermédio da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Ministério da Saúde, conhecida como CONITEC.
Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS.
§ 1o A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, cuja composição e regimento são definidos em regulamento, contará com a participação de 1 (um) representante indicado pelo Conselho Nacional de Saúde e de 1 (um) representante, especialista na área, indicado pelo Conselho Federal de Medicina
§ 2o O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração, necessariamente:
I – as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso;
II – a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.
A CONITEC tem a missão de investigar evidências científicas sobre determinados produtos ou procedimentos de modo a emitir opinião não vinculante quanto à eficácia, efetividade, acurácia e segurança dos mesmos. Isso significa a incorporação da MBE como instrumento importante para orientar as políticas públicas. Outros países que possuem atendimento universal da saúde têm órgãos semelhantes para controle das evidências em medicina. Na Inglaterra existe o NICE – National Institute of Health and Care Excellence -; Na Austrália, a agência governamental PBAC – Pharmaceutical Benefits Advisory Committee – analisa a incorporação de tecnologias; no Canadá uma agência independente CADTH (Canadian Agency for Drugs and Techniologies in Health) executa a mesma função.
A CONITEC em 2015 já havia realizado 316 avaliações, sendo 162 internas do Ministério da Saúde e 154 externas, propostas por empresas ou sociedades. Das demandas internas, 95 tiveram parecer para incorporação e 45 foram negadas. Das externas, 61 foram devolvidas por não preencherem ao escopo de atendimento à saúde e não cabia à CONITEC avaliar. Todas as recomendações da CONITEC foram acatadas pelo Ministério da Saúde.
O Decreto nº 7646/2011, estabelece procedimento administrativo para incorporação de medicamentos à relação nacional de medicamentos ou estabelecimento de protocolos clínicos:
Art. 15. A incorporação, a exclusão e a constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas serão precedidas de processo administrativo.
§1º O requerimento de instauração do processo administrativo para a incorporação e a alteração pelo SUS de tecnologias em saúde e a constituição ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas deverá ser protocolada pelo interessado na Secretaria Executiva da CONITEC, devendo ser acompanhado de:
I – formulário integralmente preenchido, de acordo com o modelo estabelecido pela CONITEC;
II – número e validade do registro da tecnologia em saúde na Anvisa;
III – evidência científica que demonstre que a tecnologia pautada é, no mínimo, tão eficaz e segura quanto aquelas disponíveis no SUS para determinada indicação;
IV – estudo de avaliação econômica comparando a tecnologia pautada com as tecnolçogias em saúde disponibilizadas no SUS;
V – amostras de produtos, se cabível, para o atendimento do disposto mo §2º do art. 19-Q, nos termos do regimento interno; e
VI – o preço fixado pela CMED, no caso de medicamentos;
§2º O requerimento de instauração do processo administrativo para a exclusão pelo SUS de tecnologia em saúde deverá ser acompanhada dos documentos previstos nos incisos I, II, VI do §1º, além de outros determinados em ato específico da CONITEC.
§3º A CONITEC poderá solicitar informações complementares ao requerente, com vistas a subsidiar a análise do pedido.
§4º No caso de propostas de iniciativa do próprio Ministério da Saúde, serão consideradas as informações disponíveis e os estudos técnicos já realizados para fins de análise pela CONITEC.
Instruído o processo, será elaborado relatório que levará em consideração o disposto no art. 18. a-) Evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou autorização de uso; b-) avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas, inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível; e c-) o impacto da incorporação da tecnologia no SUS.
O relatório será submetido à consulta pública pelo prazo de 20 dias, sendo submetido depois ao exame do plenário da CONITEC. Após a deliberação seguirá ao Secretário de Cioência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde para decisão, podendo ser realizada nova audiência pública antes da decisão. O prazo de exame destes documentos é de 180 dias, sendo admitida prorrogação por mais 90 dias. Publicada a decisão de incorporar tecnologia em saúde, ou protocolo clínico e diretriz terapêutica, as áreas técnicas terão prazo máximo de cento e oitenta dias para efetivar a oferta ao SUS. Neste contexto a MBE é instrumento importante para incorporação de tratamentos/medicamentos nas políticas públicas e para formulação dos protocolos clínicos, a ser considerada em conjunto com avaliação do custo/benefício e o impacto da incorporação na política do SUS.
Núcleos de Apoio Técnico (NAT)
A utilização de ferramentas de pesquisa pelos profissionais médicos e do direito nem sempre é fácil para quem não milita no campo da pesquisa científica, pelas dificuldades de manejo dos dados e de acesso aos sites ou pela compreensão da língua estrangeira, ou ainda para compreensão com precisão dos termos da terminologia da técnica médica por vezes usada. Talvez por isso, o CNJ recomendou a todos os tribunais do Brasil que instituíssem nos seus respectivos estados. NATs, conforme Recomendação nº 31 que fixou prazo até dezembro de 2010 para que os tribunais de Justiça e Regionais Federais celebrassem convênios com o fim de “disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais”.
Na I Jornada do Fórum Nacional de Saúde, promovida pelo CNJ, foram aprovados os enunciados 18 e 31 que estabelecem a consulta ao NAT como ferramenta auxiliar e prévia à decisão judicial.
Enunciado nº 31 – “Recomenda-se ao Juiz a obtenção de informações do Núcleo de Apoio Técnico ou Câmara Técnica e, na sua ausência, de outros serviços de atendimento especializado, tais como instituições universitárias associações profissionais etc”.
Se bemcolocada a moldura fática pelos operadores do direito, fica mais fácil encaminhar aos NATs a contextualização do problema e a resposta deverá ser rápida, porque não é necessário que que se realizem perícias, mas apenas um adequado parecer sobre o caso concreto. Por sua vez, o profissional do NAT que assinar o parecer, terá seu trabalho facilitado pelos estudos que a ferramenta da MBE possibilita sejam objetivados.
Judicialização da Saúde Suplementar
Milhares de ações demandam a concretização de prestações públicas relacionadas à saúde e constituem exemplo de ativismo judicial somado à discricionariedade. Muitas vezes pedidos são julgados procedentes com base na dignidade da pessoa humana ou no direito ao acesso universal à saúde. Isso acontece mesmo quando se trata de saúde privada que tem tratamento na Constituição Federal diferente da saúde pública, possui legislação e normas específicas de Agência Reguladora e contrato firmado entre as partes nos termos regulatórios vigentes. Esse tema é abordado por Streck:
“…Ainda hoje presenciamos defesas vibrantes de ativismos judiciais para implementar e concretizar os direitos fundamentais, tudo isso sempre retornando ao mesmo ponto: a ideia de que, no momento da decisão o juiz tem um espaço discricionário no qual pode moldar sua vontade (Streck EL. Verdade e consenso. 4ª ed. São Paulo: Saraiva 2012; p. 38).
A inexistência de método de interpretação que possa dar garantia à correção da decisão judicial, não autoriza o intérprete a escolher o sentido que mais lhe convier o que seria abrir caminhão para a à discricionariedade e ou ao decisionismo típico do modelo positivista de Kelsen. Nesse sentido a discricionariedade tem como consequência a arbitrariedade.
No campo da saúde suplementar ocorrem muitas discussões sobre direitos de beneficiários de planos de saúde e da responsabilidade das operadoras que prestam o serviço de assistência privada à saúde. As decisões judiciais apresentam grande diversidade sobre um mesmo assunto, causando instabilidade e insegurança jurídica, porque essas decisões muitas vezes não têm fundamentação convincente, trazendo consigo um tipo de discricionariedade judicial que pode decido conforme minha consciência (Streck LL. O que é isto – decido conforme minha consciência. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado 2012).
A Lei 9.656/1998 (Lei dos planos de Saúde) e a Lei 9.961/2000(Lei de criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar) dividiram a saúde suplementar em dois blocos, passando a existir os contratos regulamentados (planos novos) e contratos não regulamentados (planos velhos). O STF, no julgamento da ADI nº 1.931 de 2004, confirmou essa divisão. Em decisão plenária, o STF considerou inconstitucionais dispositivos da Lei 9.656/98 que regulamentavam contratos firmados anteriormente à sua vigência em violação ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, garantidos pelo art. 5º, XXXVI, da CF88. A partir de então aumentaram significantemente o número de demandas judiciais em questões referentes aos planos de saúde. Ressalte-se que há decisões judiciais que aplicam a nova regulamentação aos contratos anteriores, para que sejam a eles incorporadas as novas coberturas dos planos de saúde, enquanto outras decisões afastam a incidência da nova legislação.
Os temas mais frequentes dessas ações são: reajuste dos preços das contraprestações pecuniárias; a negativa, nos planos antigos, de coberturas previstas na nova lei e no rol de procedimentos e eventos em saúde, elaborado pela ANS, que constitui a referência básica para cobertura assistencial mínima; reajuste da contraprestação por mudança de faixa etária do beneficiário.
O reajuste da mensalidade do idoso, confronta o art.15, §3º do Estatuto do idoso, que veda sua discriminação nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados por causa da idade. A discussão é se é aplicável o Estatuto do idoso aos contratos de plano de saúde firmados anteriormente à sua vigência e, em decorrência, a violação do art. 5º, XXXVI da Constituição Federal (ato jurídico perfeito e direito adquirido).
Assistência à saúde por serviço público e privado
O serviço de assistência à saúde no Brasil pode ser público – de acesso universal e gratuito – e privado, de caráter supletivo. A Lei 8.142/90 trata da participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde. Esse dever estatal não afasta o exercício da saúde pública por terceiros, que estarão sob fiscalização do Estado (CF, art197). A Lei 8080/90, estabelece no art. 4, § 2º que a iniciativa privada poderá participar do SUS em caráter complementar. Além desses dispositivos o art. 199 da CF diz que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada. Cumpre relembrar que a livre iniciativa é um dos fundamentos da República, e está prevista no art. 1º, IV, da CF, ao lado dos valores sociais do trabalho.
Os aspectos disciplinados pela Lei 9656/98 são:
- Exigência de autorização de funcionamento e de encerramento das atividades da operadora pela Agência Reguladora.
- Uniformização dos tipos de planos e características dos produtos a serem disponibilizados aos consumidores, que também ficam sujeitos à autorização prévia da Agência para comercialização, suspensão e cancelamento.
- Exigibilidade da garantia da manutenção da estabilidade administrativa e financeira da operadora, de modo a não prejudicar a continuidade do atendimento assistencial aos consumidorescontratantes.
- Normatização da amplitude das coberturas mínimas a serem observadas pelas operadoras.
- Controle de preços e reajustes.
- Definição dos prazos de carência e de cobertura parcial temporária nos casos de doenças e lesões pré-existentes.
A Lei 9.656/98 traz disposições gerais para a regulamentação da saúde suplementar, deixando as questões específicas e de conteúdo técnico para serem normatizados pela ANS. No art. 35-A, incluído pela MP 2.177-44 de 24.08.2001, cria o Conselho de Saúde Suplementar (CONSU).
Art. 35-A. Fica criado o Conselho de Saúde Suplementar – CONSU, órgão colegiado integrante da estrutura regimental do Ministério da Saúde, com competência para:
I – estabelecer e supervisionar a execução de políticas e diretrizes gerais do setor de saúde suplementar;
II – aprovar o contrato de gestão da ANS;
III – supervisionar e acompanhar as ações e o funcionamento da ANS;
IV – fixar diretrizes gerais para implementação no setor de saúde suplementar sobre:
a) aspectos econômico-financeiros;
b) normas de contabilidade, atuariais e estatísticas;
c) parâmetros quanto ao capital e ao patrimônio líquido mínimos, bem assim quanto às formas de sua subscrição e realização quando se tratar de sociedade anônima;
d) critérios de constituição de garantias de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, consistentes em bens, móveis ou imóveis, ou fundos especiais ou seguros garantidores;
e) criação de fundo, contratação de seguro garantidor ou outros instrumentos que julgar adequados, com o objetivo de proteger o consumidor de planos privados de assistência à saúde em caso de insolvência de empresas operadoras;
V – deliberar sobre a criação de câmaras técnicas, de caráter consultivo, de forma a subsidiar suas decisões.
Parágrafo único. A ANS fixará as normas sobre as matérias previstas no inciso IV deste artigo, devendo adequá-las, se necessário, quando houver diretrizes gerais estabelecidas pelo CONSU.”
A ANS foi criada pela Lei 9961/2000. Portanto, durante aproximadamente dois anos a regulamentação do setor ficou a cargo do CONSU, antes de passar a ser regulado pela ANS.
O art. 2º, da Lei nº 10.185/2001estabeleceu que se enquadra como plano privado de assistência à saúde o seguro saúde e, como operadora de plano de saúde, a seguradora especializada em saúde.
Controle de preços e reajustes.
O STF entende que que os contratos celebrados anteriormente à Lei 9656/98 (planos não regulamentados) não são por ela atingidos. Nesses contratos individuais ou coletivos, os reajustes são aplicados de acordo com as previsões contratuais, se essas estiverem de acordo com a legislação vigente à época, geralmente o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor. Nos planos de saúde com contratos firmados a partir de janeiro de 1999 (planos regulamentados), além do CC e do CDC, os reajustes devem ser feitos de acordo com a Lei 9656/98 e das Resoluções e Instruções Normativas da ANS.
Nos planos regulamentados diz a Lei 9656/98 “devem constar dispositivos que indiquem com clareza os critérios de reajuste e revisão das contraprestações pecuniárias”. Além disso, a Resolução Normativa nº 171, de 29.04.2008 estabelece em seu artigo 8º, para planos individuais:
Art. 8º O índice de reajuste máximo a ser autorizado pela ANS para as contraprestações pecuniárias dos planos tratados no artigo 2º, será publicado no Diário Oficial da União e na página da ANS na internet, após aprovação da Diretoria Colegiada da ANS.
Parágrafo único. Os valores relativos às franquias ou co-participações não poderão sofrer reajuste em percentual superior ao autorizado pela ANS para a contraprestação pecuniária.
Nos planos coletivos os reajustes são livremente definidos pelas partes, bastando que a operadora comunique posteriormente à ANS (RN171, art. 13).
O art. 15 da Lei 9656/98 dispõe sobre o reajuste por mudança de faixa etária:
Art. 15. A variação das contraprestações pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, em razão da idade do consumidor, somente poderá ocorrer caso estejam previstas no contrato inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvado o disposto no art. 35-E.
Parágrafo único. É vedada a variação a que alude o caput para consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o, ou sucessores, há mais de dez anos. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001).
O Estatuto do Idoso estabelece em seu artigo 15, §3º:
Art. 15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.
[…] § 3o É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade.
Assim, os reajustes por mudança de faixa etária superior aos 60 anos, previstos na Resolução CONSU nº 6 passaram a ser considerados ilegais pelo Estatuto do Idoso. O art. 1º da resolução normativa nº 63/03 da ANS para reajustes por mudança de faixa etária só é válida para contratos firmados a partir de 01.01.2004. Entretanto, esse não tem sido o entendimento do STJ que tem se manifestado pela aplicação retroativa da Lei 10.741/03.
Cobertura de procedimentos de planos antigos
A questão que frequentemente se coloca para discussão é: Com o advento da Lei 9656/98 a nova regulamentação da saúde suplementar, no concernente às coberturas mínimas estabelecidas pela ANS, atinge os planos antigos ou é válida somente para os planos novos? A Lei 10.850/2004 passou a regular essa matéria:
Art. 1º Compete à Agência Nacional de Saúde Suplementar -ANS, na defesa do interesse público no setor de saúde suplementar, a definição de ações para instituição de programas especiais de incentivo à adaptação de contratos de planos privados de assistência à saúde firmados até 2 de janeiro de 1999, com o objetivo de facilitar o acesso dos consumidores vinculados a esses contratos a garantias e direitos definidos na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998.
Art. 2º As ações de incentivo de que trata esta Lei serão definidas por normas específicas da ANS, considerando as seguintes diretrizes gerais:
I – revisão de contratos, procedendo-se às devidas alterações de cláusulas contratuais em vigor, por meio de termos aditivos;
II – viabilização de migração da relação contratual estabelecida para outro plano da mesma operadora; e
III – definição de linhas gerais para execução de planos especiais de adaptação, de implementação facultativa ou obrigatória, determinando forma, condições e exigências específicas a serem observadas para carências, reajustes, variação de preço por faixa etária, cobertura obrigatória, doenças e lesões pré-existentes, e outras condições contratuais previstas na Lei nº 9.656, de 1998, bem como as rotinas de apresentação desses planos especiais, e as variações de preço por índice de adesão e outras variáveis que poderão estar contidas nas propostas oferecidas aos usuários.
Ao definir regras para incentivar a adaptação e a migração e planos antigos, o Legislativo e o Executivo reconhecem que a nova regulamentação somente se aplica aos contratos firmados após a vigência da Lei 9656/98. Aqui, novamente, a questão apresenta divergências, especialmente nos tribunais regionais levando os casos para o STJ e STF. O STJ em pelo menos dois acórdãos decidiu pela não retroatividade da Lei 9.656/98 aos planos de saúde cujos contratos foram firmados anteriormente à sua vigência. Não obstante essas decisões, o STJ manifestou entendimento no sentido de que determinadas exclusões de cobertura são violadoras do CDC e, portanto, ainda que não se aplique a lei dos planos de saúde, o beneficiário teria direito ao procedimento ou material pleiteado, mesmo que o plano de saúde tenha sido contratado antes da vigência do CDC, considerando que o contrato de plano de saúde tem natureza de trato sucessivo e, por isso, deve ser aplicada a legislação consumerista vigente sem que se possa falar em retroatividade da lei (REsp 735168). Essa posição é coerente com aquela adotada para reajuste por mudança de faixa etária do idoso para contratos celebrados antes da Lei 10.741/2003, que vedou aumento discriminatório dos planos de saúde do idoso.
Apesar disso, detecta-se incoerência nas decisões do STJ, decretando irretroatividade da lei nos casos de cobertura de planos de saúde celebrados antes da Lei 9.656/98 e estabelecendo a retroatividade da Lei 10.741/2003 – reajuste por mudança de faixa etária do idoso – por considerar que esta é norma de ordem pública enquanto diante da Lei dos Planos de Saúde, a retroatividade violaria o ato jurídico perfeito e o direito adquirido e não se aplicaria ao mesmo contrato. A questão que se levanta é: a quem caberá dizer quando se está diante de uma ordem pública ou privada?
Conclusão: a concepção do direito como integralidade mostra-se como hipótese viável e constitucionalmente adequada para superar a problemática da discricionariedade judicial. O que se constata nessas breves notas é que a despeito de existirem normas e orientações robustas, tanto pelos vários órgãos governamentais como pelos NATs do CNJ, muitos magistrados deixam de utilizar essas normas em suas decisões o que pode causar insegurança jurídica das partes.
REFERÊNCIAS
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