A denúncia por violação sexual, crime tipificado no art. 179 do Código Penal Espanhol, com pena de 04 a 12 anos, resultou em uma condenação de DANIEL ALVES a 04 anos e 6 meses de prisão, multa de 8 mil Euros, reparação do dano à vítima de 150.000 Euros e outras penas acessórias.
O julgamento é o mais importante desde a publicação da Lei “Solo sí es sí”. Desde 2022, há a Lei de Liberdade Sexual na Espanha, conhecida como “solo sí es sí” (só o sim é sim), em resposta a um processo de estupro coletivo conhecido como “La Manada”, em que cinco homens violentaram uma jovem de 18 anos com sexo oral, anal e vaginal e filmaram o ato, mas não foram condenados por agressão sexual, ante a ausência de prova de violência física ou intimidação.
Durante o julgamento, realizado entre os dias 5 a 7 de fevereiro/24, a defesa apresentou duas teses: a relação sexual foi consentida e Daniel Alves estava embriagado. Com isso, tentava-se a absolvição ou uma redução da pena. A acusação havia solicitado uma pena de 09 anos e a advogada da vítima uma pena de prisão de 12 anos, além da liberdade vigiada e reparação do dano.
A alegação de relação consentida foi rechaçada não só pelo depoimento da vítima, como pelo vídeo na casa noturna e depoimentos testemunhais. Esses elementos de prova foram coletados logo após o fato, graças ao Protocolo “No Callem” e levados à Juíza de Instrução responsável pela investigação e decretação da prisão preventiva. Na fase processual, chamada de “Juízo Oral”, a audiência ocorreu perante três Juízes da 21ª Audiência Provincial e foram ouvidas dezenas de testemunhas, além de peritos.
O depoimento da vítima foi valorizado e considerado, não havendo qualquer julgamento moral quanto à conduta de ter ido ao banheiro ou ingerido bebida alcóolica. Seu nome, sua face e sua privacidade foram respeitados. No julgamento, disse o Promotor de Justiça (Fiscalía) que “nenhuma mulher que entra em um banheiro, imagina que será estuprada”.
ATENÇÃO: O respeito à vítima é o mínimo que se espera de um sistema jurídico que não tolera (ou não deveria tolerar) desnecessária revitimização. Nesse espírito, vale lembrar a Lei Mariana Ferrer – Lei 14.242/21 -, que, na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, manda todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do mandamento, vedadas: I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas. |
Na Espanha, mais do que “não é não”, há o “só o sim é sim” e qualquer ato sexual sem expresso consentimento é considerado violência. Nos termos da lei, “somente se entende que há consentimento quando seja manifestado livremente, mediante atos que, em atenção às circunstâncias do caso, expressem de maneira clara a vontade da pessoa” (art. 178 CPE)[1].
Entendeu-se que o estupro restou comprovado, apesar de o laudo ter sido negativo, o que representou uma clara mensagem para o mundo: laudo negativo de estupro NÃO é prova de inocência.
Diferente do que se imagina, a perícia negativa em crimes de estupro é a regra e não a exceção. Vestígios físicos desaparecem rapidamente, em até 24 horas para boca, pele e ânus e em 72 horas para órgão genital feminino (Procedimento Operacional Padrão de Medicina Legal – Sexologia Forense) [2]. Ainda que a perícia seja feita nesse prazo, na maioria dos casos de violência sexual, os laudos são negativos para ferimentos íntimos (não há rompimento, lesões genitais, outras lesões) e, mesmo assim, esse resultado não exclui a ocorrência do estupro[3]. No processo espanhol, os médicos que atenderam a vítima, inclusive, afirmaram que em 70 % dos casos de estupro não há vestígios do crime.
A tese de embriaguez, que poderia levar à redução da pena em razão da legislação, também foi rechaçada.
Ao contrário do Brasil, em que a embriaguez voluntária ou culposa não exclui a responsabilidade, na Espanha pode haver isenção de pena (art. 20. 2º, CPE) [4] ou atenuação (art. 21 CPE). Embora a exclusão da pena seja mais rara, aplicada pelos Tribunais a casos muito específicos como os crimes omissivos próprios, há julgados da Comunidade Autônoma da Catalunha reconhecendo a atenuação da pena, pela redução da capacidade de entendimento e determinação.
ATENÇÃO: Como bem esclarece Fernando de Almeida Pedroso: “Considera-se embriaguez a afecção da pessoa pela ingestão de bebida de teor alcóolico. A ela se equipara, por cláusula analógica explicitamente posta no art. 28, II, do estatuto penal, o estado que afete o ser humano pela utilização de qualquer substância de efeitos semelhantes ao álcool (verbi gratia: éter, clorofórmio, antidistônicos, barbitúricos e drogas como tóxicos e alucinógenos). Consiste a embriaguez, em suma, no estado de intoxicação aguda e transitória do organismo, pelo álcool ou substância de efeitos análogos, comprometendo suas funções fisiológicas, físicas e intelectuais. Por aí se verifica, destarte, que a embriaguez repercute no psiquismo da pessoa por ela acometida, podendo afetar a sua capacidade intelectiva ou volitiva, de sorte que ao Direito Penal impendia posicionar-se diante dessa realidade, em sede de imputabilidade ou inimputabilidade penal”[5]. No Brasil, a embriaguez só exclui o crime ou reduz a sua pena quando acidental, leia-se, proveniente de caso fortuito ou força maior. |
Mas, se todas essas teses foram rechaçadas, como a pena de Daniel Alves foi fixada em 04 anos e 06 meses?
À época, a pena prevista para o crime de violação sexual era de 4 a 12 anos, o que já foi modificado na legislação, no final de 2023, depois de intensos debates, para tornar a pena de estupro com violência de 06 a 12 anos, ampliando-se a pena mínima. Como a lei mais gravosa não retroage, aplicou-se a pena vigente à época.
Além disso, houve atenuação da pena em razão da reparação do dano em 150.000 Euros, o que ocorreu antes do Juízo Oral, conforme exige a lei espanhola. Com efeito, o Código Penal Espanhol considera circunstância atenuante (art. 21, 5º), “ter o réu reparado o dano ocasionado à vítima ou diminuído seus efeitos, em qualquer momento do procedimento e antes da celebração do ato do Juízo Oral”[6].
ATENÇÃO: Anuncia o CP brasileiro, mais precisamente no art. 65, III, “b”, que a pena deve ser atenuada quando o agente, arrependido, espontaneamente (sem interferência externa), procurar evitar ou minorar as consequências do crime, ou, antes do julgamento, repara integralmente o dano. Tratando-se de atenuante de pena, o quantum da redução tem sido ordinariamente fixado em 1/6 pela nossa jurisprudência. Também de acordo com as reiteradas decisões de nossos tribunais, a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal (Súmula 231 do STJ). |
Os questionamentos na Espanha estão centrados no quantum de redução da pena por esta atenuante e no fato de que a condição econômica do réu foi determinante para a redução da pena, que caiu pela metade em relação ao pedido da acusação e um terço em relação ao pedido da advogada da vítima.
Como foi rechaçada a atenuante da embriaguez, a presença de uma única atenuante levaria à fixação da pena entre 4 e 8 anos[7]–[8] (art. 66, 1º, CPE) e a opção por uma pena muito próxima ao mínimo gerou grande indignação.
Muitos meios de comunicação questionam o fato de que – por ter influência, poder econômico e condições de reparar o dano – Daniel Alves recebeu uma pena menor. São inúmeras as manifestações[9]:
“se diante de um evento tão grave …você aplicar uma circunstância atenuante para reparação do dano, alguns equivocados como eu poderão pensar que há uma pena para os ricos e outra para os pobres”
“parece uma piada.. ele estará na rua muito antes de a vítima ter curado algumas de suas feridas”.
“se você tem dinheiro, estuprar é muito barato”.
“onde está a verdadeira justiça para as vítimas?
“a fama não paga a inocência, mas o dinheiro ajuda a pagar um caminho mais fácil e mais curto para a liberdade”.
As partes podem apelar da sentença, no prazo de 10 dias, para o Tribunal Superior de Justiça da Catalunha, equivalente ao Tribunal de Justiça no Brasil.
Ao contrário do nosso sistema, não há vários regimes de pena, mas apenas a possibilidade de liberdade condicional, ante o cumprimento de ¾ da pena, o que equivale a 75% da prisão (art. 90). Seria possível, após o trânsito em julgado, a concessão de permissões de saída por motivos específicos, o que não deve acontecer ante o receio de que Daniel Alves volte ao Brasil e não possa ser extraditado.
Apesar dos grandes avanços, nesse dia histórico em que se brada que a Justiça existe e “só o sim é sim”, transparece o triste retrato da realidade: o poder econômico tem reflexos sobre a responsabilidade penal. Mais um capítulo dessa história para se refletir!
[1] Tradução livre. Versão original: “. Sólo se entenderá que hay consentimiento cuando se haya manifestado libremente mediante actos que, en atención a las circunstancias del caso, expresen de manera clara la voluntad de la person”.
[2] https://www.cgp.sejusp.ms.gov.br/wp-content/uploads/2022/08/POP-ML-no-05-Exame-Pericial-em-Sexologia-Forense.pdf
[3] Os índices de laudos positivos são maiores quando há a apreensão de roupas e objetos relacionados ao estupro, como aconteceu no caso em julgamento, já que o vestígio da vítima foi apreendido. Nesse sentido, estudo realizado em Coimbra e referido por Sara Joana Jorge Faria: “A grande percentagem de vestígios com significado foi recolhida não do corpo, mas sim das roupas pessoais ou de outros objetos pertencentes à cena do crime” (FARIA, Sara Joana Jorge. Abuso sexual de menores: achados clínicos e implicações médico-legais. Dissertação de Mestrado para a Faculdade de Medicina de Coimbra. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/28936/1/Abuso%20sexual%20de%20menores%2c%20Achados%20Cl%c3%adnicos%20e%20Implica%c3%a7oes%20M%c3%a9dico-Legais.pdf. Acesso em : 16 ago 2023
[4] Nos termos do CPE: “El que al tiempo de cometer la infracción penal se halle em estado de intoxicación plena por el consumo de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas, estupefacientes, sustancias psicotrópicas u otras que produzcan efectos análogos, siempre que no haya sido buscado con el propósito de cometerla o no se hubiese previsto o debido prever su comisión, o se halle bajo la influencia de un síndrome de abstinencia, a causa de su dependencia de tales sustancias, que le impida compreender la ilicitud del hecho o actuar conforme a esa comprensión”
[5]. Direito Penal – Parte Geral, p. 556-557.
[6] Tradução livre. Versão original: “Son circunstancias atenuantes: 5.ª La de haber procedido el culpable a reparar el daño ocasionado a la víctima, o disminuir sus efectos, en cualquier momento del procedimiento y con anterioridad a la celebración del acto del juicio oral”.
[7] O Código Penal Espanhol prevê que uma atenuante leva à redução da pena em sua metade inferior (art. Art 66, 2º).
[8] Sobre o cálculo da pena em metade inferior ver: https://www.alvaroescuderoabogado.com/circunstancias-atenuantes-reduccion-penas/.
[9] Todas essas publicações foram listadas no perfil @valscarance do Instagram e no seguinte endereço eletrônico: https://www.instagram.com/p/C3p8vzPLlOs/