Diferente das amplas divergências traçadas quanto à natureza jurídica do compromisso de ajustamento de conduta, quando da sua introdução no ordenamento jurídico[1], época que reinava maior resistência à postura conciliatória e seus limites no campo do Direito Público, as posições concernentes à natureza jurídica do acordo de não persecução civil, estabelecido no art. 17-B, da Lei nº 8.429/1992, não apresentam grandes divergências e enfrentamentos.
Logo quando do surgimento do instituto, acolheu-se majoritariamente[2] a sua natureza jurídica como um negócio jurídico[3]. Neste sentido, a proposta de Resolução em tramitação no Conselho Nacional do Ministério Público, de autoria do Conselheiro Daniel Carnio Costa, confere-lhe tal natureza[4], que também foi acolhida em atos normativos editados por diversos Ministérios Públicos[5].
Ao lado dos negócios jurídicos cujo conteúdo é quase todo formado pela vontade das partes envolvidas, há aqueles que a lei estabelece conteúdo obrigatório, que não pode ser afastado pela vontade das partes, sob pena de invalidação do ajuste[6].
Quando a norma jurídica estabelece o conteúdo obrigatório do negócio jurídico, pode-se afirmar que, a princípio, determina um conteúdo essencial, cuja ausência pode invalidar o negócio.
No âmbito do acordo de não persecução civil há uma parte do conteúdo legalmente estabelecida, ou seja, conteúdo essencial. Assim, o art. 17-B, incisos I e II, da Lei nº 8.429/1992, determina que poderá ser formalizado acordo de não persecução civil, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes resultados: o integral ressarcimento do dano e a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.
As exigências de “integral ressarcimento do dano” e “reversão à pessoa jurídica lesada de vantagem indevida obtida” para formalização do acordo de não persecução civil devem ser entendidas a partir da interpretação sistemática da Lei de Improbidade Administrativa. Por outro lado, a interpretação do alcance normativo não pode se distanciar da realidade no momento da sua aplicação.
Nas negociações que antecedem a formalização do acordo de não persecução civil, seja no âmbito extrajudicial ou judicial, caberá ao investigado/acusado não só demonstrar o limite da sua participação na ocorrência do dano, em caso de ato de improbidade em concurso de agentes, bem como o seu acervo patrimonial, que poderá ou não suportar o ressarcimento integral do dano e/ou a reversão do quanto obtido ilicitamente, na forma proposta pelo Ministério Público ou a pessoa jurídica lesada.
Nessa perspectiva, em caso de improbidade administrativa praticada em concurso de agentes é possível que somente um dos envolvidos acolha a proposta de formalização do ANPC. Neste caso, o ressarcimento do dano e/ou a devolução do quanto obtido ilicitamente deverá ser compatível com a sua participação no ilícito.
Para tal conclusão, recorre-se aos termos do §2º, do art. 17-C, da Lei nº 8.429/1992, segundo o qual “na hipótese de litisconsórcio passivo, a condenação ocorrerá no limite da participação e dos benefícios diretos, vedada qualquer solidariedade”.
Ora, se é possível delimitar a participação de cada um dos envolvidos no ato de improbidade para fins de fixar a condenação, entende-se que a mesma prática poderá ser adotada na formalização de ajuste.
Ademais, o acordo de não persecução civil efetivado com um dos corresponsáveis pela prática do ato de improbidade que tenha causado prejuízo patrimonial efetivo ao erário, não libera os demais. Estes serão réus em ação de improbidade administrativa, que ao final determinará o ressarcimento do dano, aplicando as sanções cabíveis, dentre aquelas constantes do art. 12, da LIA.
Corrobora com tal entendimento o §6º, do referido art. 12 da LIA, segundo o qual a reparação do dano prevista na lei deverá deduzir o ressarcimento ocorrido em outras instâncias que tiver como objeto os mesmos fatos. Assim, a exigência do ressarcimento integral do dano por parte do corresponsável que concorda em formalizar o acordo, acabará por prejudicá-lo, beneficiando os demais, que aguardarão possível ação regressiva por parte daquele que assumiu na integralidade, obrigação que só lhe cabia em parte.
Ainda sobre o tema é importante o enfrentamento de situações em que se verifica a impossibilidade absoluta do ressarcimento do dano ou reversão da vantagem indevida, em face da ausência de capacidade econômico-financeira do agente ímprobo.
Nesse caso, atente-se que não se confunde a indisponibilidade do interesse público com a indisponibilidade do patrimônio público. Bem compreendido o conteúdo do princípio da indisponibilidade do interesse público, não há qualquer incompatibilidade entre ele e a ideia de direitos disponíveis de titularidade da Administração Pública. Nessa linha, Eros Roberto Grau afirma que “Não há qualquer correlação entre disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais e disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público”[7].
Muitas vezes para atendimento do interesse público o Poder Público precisa dispor de determinados direitos patrimoniais, ainda que não possa fazê-lo em relação a outros deles.
Com efeito, quando da formalização do acordo de não persecução civil, caso fique inequivocamente comprovada a impossibilidade absoluta de se obter o ressarcimento integral do dano causado ao erário ou a devolução do quanto obtido ilicitamente em virtude da prática de ato de improbidade, deve-se buscar alternativas viáveis, resguardando-se o interesse público na sua máxima efetividade, dentro da realidade fática.
Nesta lógica, diante da ausência de capacidade econômico-financeira do investigado/demandado em arcar com as obrigações referidas, poderá ocorrer a substituição da obrigação de dar quantia certa pela obrigação de fazer, acolhendo a realização de atividade mensurável economicamente, que garanta a satisfação do interesse público e corresponda ao valor do prejuízo causado ou da vantagem indevida percebida.
Tal solução encontra respaldo no §6º, do art. 17-B que estabelece a possibilidade de o acordo contemplar a adoção de medidas em favor do interesse público e de boas práticas administrativas. Nessa situação, caso o tomador do compromisso seja o Ministério Público, impõe-se a concordância do ente público lesado, já que, em regra, a medida a ser imposta em substituição ao valor devido necessitará da sua participação.
A garantia de máxima efetividade da norma, que é o alcance da melhor solução pelas partes ao celebrar o acordo, perpassa por uma interpretação razoável do conteúdo essencial do ANPC, fixados no art. 17-B, I e II, da Lei nº 8.429/1992, afinal, segundo a citação atribuída a Ayn Rand “você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade” [8].
[1] Nesse sentido, Fausto Luciano Panicacci aborda a divergências quanto à natureza jurídica do compromisso de ajustamento de conduta, apresentando o que chama de “equívocos doutrinários!” (PANICACCI, Fausto Luciano. Compromisso de Ajustamento de Conduta: teoria, prática, vantagens da solução negociada e meio ambiente. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 146).
[2] Saliente-se posição divergente de Wallece Paiva Martins. O autor afirma que o acordo de não persecução cível possui natureza jurídica de convenção. Entende-se que peca o autor a não associar o instituto a figuras delineadas no ordenamento jurídico. (MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Acordo de Não Persecução Cível. In: DAL POZZO, Augusto Neves, OLIVEIRA, José Roberto Pimenta (Coords.). Lei de Improbidade Administrativa Reformada. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2022. p. 629)
[3] Neste sentido, manifesta-se: Renato Castro (CASTRO, Renato de. Acordo de Não Persecução Cível na Lei de Improbidade Administrativa. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, nº 77, jul. /set. 2020, p. 214.); Luiz Manoel Gomes Júnior e Diogo de Araújo Lima (GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel, LIMA, Diogo de Araújo. Aspectos gerais e controvertidos do Acordo de não Persecução Cível. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, nº 80, abr./jun. 2021, p. 193); Rafael Pereira (PEREIRA, Rafael. Parâmetros para aplicação do acordo de não persecução cível criado pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019). In: CAMBI, Eduardo, SILVA, Dani Sales, MARINELA, Fernanda (orgs.). Pacote Anticrime: vol. I, Curitiba: Conselho Nacional do Ministério Público e Ministério Público do Paraná, 2020. p. 214); Igor Pereira Pinheiro e Mauro Messias (PINHEIRO, Igor Pereira; MESSIAS, Mauro. Acordos de Não Persecução Penal e Cível. São Paulo: Mizuno, 2021. p. 199.); Antônio do Passo Cabral (CABRAL, Antônio do Passo. Pactum de non petendo: a promessa de não processar no direito brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, nº 78, out/dez.,2020, p. 33.); Fernando da Fonseca Gajardoni et al. (GAJARDONI, Fernando da Fonseca, CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo, GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel, FAVRETO, Rogério. Comentários à Nova Lei de Improbidade Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 380).
[4] Segundo o art. 1º da proposta de Resolução “O acordo de não persecução civil é negócio jurídico celebrado entre o Ministério Público e pessoas físicas ou jurídicas, investigadas pela prática de atos de improbidade administrativa, devidamente assistidas por advogado ou defensor público” (Proposição nº 1.00873/2021-72).
[5]Assim tem-se: Resolução nº 09/2021, do Ministério Público do Estado do Espírito Santo; Resolução nº 2.469/GPGJ, do Ministério Público do Rio de Janeiro; Resolução nº 07/2021 – CPJ, do Ministério Público do Pará (negócio jurídico processual); a Nota Técnica nº 02/2020 do CAOPP/MPSP; Ato Conjunto nº -1/2022 – PGJ/CGMP/CSMP do ministério Público do Paraná.
[6] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 43
[7] GRAU, Eros Roberto. Arbitragem e contrato administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. São Paulo: Malheiros, nº 32., 2000, p. 20.
[8] RAND, Ayn. A Revolta de Atlas. São Paulo: Arquei, 1982.