A Lei nº 14.994, recentemente aprovada e sancionada, trouxe nova tipificação para o feminicídio. Agora, em figura autônoma, tem-se a definição de feminicídio como “matar mulher por razões da condição do sexo feminino”. A previsão de um tipo penal autônomo, na sistemática brasileira de persecução penal dos crimes dolosos contra a vida, pode ensejar consequências que não tenham sido consideradas na elaboração legislativa. Isso porque a intenção legislativa, segundo mencionam as justificativas tanto da proposição quanto da própria ementa, consiste na melhor resposta sancionatória ao gravíssimo problema do feminicídio.
No entanto, como demonstraremos a seguir, a sistemática de aplicação do dispositivo pode resultar em problemas a serem equacionados com alguma perda de fidelidade aos enunciados que regem o Direito Processual aplicável ao tema. Será preciso construir solução interpretativa que respeite o direito de defesa do acusado e o dever de proteção judicial que marca a atuação do jurado ao definir o fato praticado pelo acusado.
O novo tipo penal (art. 121-A) insere-se no Capítulo do Código Penal destinado aos crimes contra a vida. Atrai, pois, a incidência da determinação constitucional de competência do tribunal do júri (art. 5º, inc. XXXVIII, “d”). O procedimento dos crimes dolosos contra a vida, como sabido, é bifásico. Tem-se uma primeira fase de admissibilidade qualificada da acusação – o judicium causae. Uma vez pronunciado o acusado, tem-se a segunda fase – o judicium causae –, que consiste propriamente no julgamento em plenário do tribunal do júri.
Consideremos a primeira fase do procedimento, que culmina no juízo de pronúncia, impronúncia, absolvição sumária ou desclassificação. Trata-se da judicialização da imputação perante um juiz togado, que, após instrução processual (em juízo, portanto), apreciará a admissibilidade dessa imputação para escrutínio do júri (conselho de sentença). A decisão de pronúncia, marcada por uma cognição não exauriente e prelibatória dessa imputação, estabelecerá o limite da atividade acusatória em plenário do júri. É dizer: o juiz, ao pronunciar o acusado e admitir a acusação para decisão no tribunal do júri, indicará “o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena” (§ 1º do art. 413 do CPP). O titular da ação penal, então, em plenário de júri, “fará a acusação, nos limites da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, sustentando, se for o caso, a existência de circunstância agravante” (art. 476, caput, do CPP).
Eis o problema. Quando, em plenário, a causa for submetida aos jurados, é possível que a defesa sustente que o fato não tenha ocorrido “por razões da condição do sexo feminino”. Tomemos, por hipótese, que o conselho de sentença acolha a tese desclassificatória e afaste o tipo penal de feminicídio. Caso acolhida essa desclassificação, isto é, caso o conselho de sentença entenda que o fato não é um feminicídio, mas um homicídio – tal como descrito no art. 121 do CP –, como o conselho de sentença apreciará a moldura desse fato em caso de incidência de qualificadoras e causas de aumento da pena?
A situação gera espécie em face da ordem de quesitação estabelecida pelo art. 483 do CPP. Causará perplexidade a formulação de quesitação, fiel ao que imputa a acusação, o caso em que a imputação do fato traga, em sua descrição, a presença de hipóteses que circunstâncias que atraiam a incidência de qualificadoras e causas de aumento unicamente aplicáveis à figura do homicídio (e não ao feminicídio).
Com efeito, a nova figura típica do feminicídio descreve as situações de compreensão do elemento normativo do tipo (“por razões da condição do sexo feminino”) – é o que faz o § 1º do art. 121-A do CP. O § 2º do artigo traz causas de aumento de pena. Mas há situações que, em caso de desclassificação, não são mencionadas na pronúncia de feminicídio: nem poderiam, porque o tipo de feminicídio não prevê as mesmas qualificadoras do homicídio.
Os exemplos são inúmeros. Imaginemos uma imputação de feminicídio cuja vítima seja menor de 14 anos de idade e curatelada do autor do crime. Ou, ainda, a imputação de feminicídio praticado contra mulher casada com policial militar e a prática do crime guarda razão por força dessa condição do cônjuge da mulher vitimada. Consideremos que, em ambas as situações, prevaleça a tese defensiva de que não se tratou de feminicídio. Como quesitar as figuras que são qualificadoras e causas de aumento de pena do homicídio, mas que não foram contempladas no feminicídio e, por óbvio, não foram aventadas na classificação legal veiculada na decisão de pronúncia?
Há mais. Antevê-se um problema grave. Imagine que a pronúncia se refere a um feminicídio realizado por motivo torpe. Ainda, imagine-se um feminicídio realizado com emprego de veneno, fogo, asfixia, tortura ou qualquer outro meio cruel. Ainda, feminicídio realizado por emboscada ou com uso de recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima. Como o leitor pode perceber, os exemplos acima amoldam-se a figuras de qualificadoras presentes no homicídio e ausentes na descrição do tipo de feminicídio.
O Direito Penal bem soluciona essa questão, no feminicídio, por meio da consideração de maior censurabilidade do feminicídio na construção fundamentada da pena-base do crime pelo juiz presidente ao sentenciar o veredito condenatório. No entanto, vale repetir o problema: como fica a tipificação no caso de o conselho de sentença afastar o feminicídio e o crime tiver sido praticado em circunstância cuja descrição típica guarde convergência com qualificadora do homicídio?
Nesse caso, veja-se que o legislador se antecipou, em parte, quando previu como causa de aumento de pena do feminicídio a incidência de três incisos que descrevem qualificadoras do homicídio. É o que se vê do inciso V do § 2º do art. 121-A do CP: “nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 deste Código”.
Mas há outras qualificadoras descritas no homicídio que, eventualmente, podem estar presente nas circunstâncias do feminicídio pronunciado e, em plenário, desclassificado. Por exemplo: a prática de crime por paga, promessa de recompensa; a motivação fútil; a ação contra autoridade ou agente integrante das Forças Armadas ou forças de segurança pública. A listagem não é exaustiva.
Se a pronúncia do feminicídio abrangeu causa de aumento de pena que guarda coincidência com qualificadora descrita no homicídio, não se vê dificuldade na quesitação. Quando a desclassificação do feminicídio se der para a figura do homicídio, basta que, na forma do art. 483 do CPP, sequentemente à recusa do quesito absolutório pelo conselho, os jurados sejam indagados sobre as qualificadoras do homicídio. Afinal, elas já se encontravam indicadas na pronúncia do próprio feminicídio. Não há maiores dificuldades nisso. Se a pronúncia se deu sem a incidência das causas de aumento do feminicídio, desde logo se sabe que não haverá como quesitar as qualificadoras correspondentes do homicídio, caso ocorra a desclassificação.
No entanto, o parágrafo único do art. 482 do CPP demandará exercício interpretativo do jurista, especialmente na parte final, quando enuncia que “o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes”. Isso porque, se a imputação descreve as circunstâncias que implicariam a incidência de qualificadora do homicídio, em caso de desclassificação de feminicídio para homicídio, não faria sentido que a moldura fática a ser estabelecida pelos jurados, em decorrência dessa desclassificação, não incluísse as circunstâncias que normativamente são qualificadoras do homicídio.
É importante lembrar: incumbe ao conselho de sentença fixar a moldura fática do fato que ele julga. Isso abrange o delito-tipo ou tipo básico, mas igualmente os tipos de delito ou tipos derivados. O art. 483 do CPP é claro: o jurado estabelece tudo aquilo que integra o tipo penal, as qualificadoras e causas de aumento de pena, bem assim as causas de diminuição.
É certo que a pronúncia é o limite da atividade acusatória e, portanto, o teto de apreciação que baliza a moldura fática a ser fixada pelos jurados. No entanto, desde que descritas as circunstâncias do fato imputado ao acusado, não haveria sentido subtrair do julgador o que seja a incidência de qualificadora do homicídio decorrente da desclassificação. Novamente: a qualificadora integra o tipo penal e só há como aventá-lo após a desclassificação em plenário. Não haveria como a pronúncia incluir qualificadora de tipo penal que não reconhece.
Cuida-se de consequência do instituto da emendatio libelli. Sem alterar o fato, o julgador dá a ele a classificação legal que reputa adequada. A figura se encontra positivada no art. 383 do CPP, mas, em verdade, eleva-se como verdadeiro sentido normativo da própria realização jurisdicional. Ora, é o julgador do fato que estabelece a correta classificação legal da imputação ali deduzida e, enfim, fixada como verdade na sentença (ou, no nosso caso, no veredito).
A desclassificação do feminicídio para homicídio é do tipo imprópria, porque o fato decorrente dessa desclassificação permanece na competência do conselho de sentença. A peculiaridade, contudo, consiste no fato de que o feminicídio é um tipo derivado do homicídio, mas com descrição típica de suas circunstâncias menos detalhada que o tipo de que deriva. Trata-se de lídima opção legislativa e os problemas daí decorrentes são solucionáveis justamente por meio de atividade interpretativa que resguarde tanto o fazer jurisdicional quanto a sistematicidade da legislação.
Nesses casos, portanto, seguidamente à desclassificação do feminicídio para homicídio, deverá o juiz presidente indagar dos jurados, por quesitação, a incidência de qualificadoras ou causas de aumento de pena do homicídio – ainda que elas não tenham sido expressamente mencionadas no dispositivo legal formalizado na decisão de pronúncia. Será preciso, por óbvio, que essas circunstâncias estejam descritas na acusação e que sejam objeto de arguição em plenário pelo titular do direito de ação em juízo.
Na prática, diante de tese desclassificatória (do feminicídio para homicídio), o juiz presidente deverá elaborar os quesitos respectivos de qualificadoras e causas de aumento do homicídio – em conformidade com o fato imputado na peça acusatória admitida, e não na pronúncia. Afinal, esta não poderia antever a incidência de qualificadora que o tipo penal de feminicídio não previu.
O cuidado, entretanto, consiste em conformar a inafastável cláusula da ampla defesa do acusado com a proteção judicial necessária à tutela da vida na persecução penal realizada por meio do procedimento do júri.
Por um lado, no júri, dado que o julgamento pelo jurado abrange razões metajurídicas (consciência e justiça), tem-se a afirmada plenitude de defesa. Para bem compreendê-la, basta a leitura do art. 472 do CPP, ao enunciar o compromisso do jurado. Por essa razão, em estrita observância ao que prescreve o art. 41 do CPP, a ação penal deve trazer “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”. Por conseguinte, nos casos de feminicídio, a acusação deverá conter expressamente aquilo que eventualmente atraia, em caso de desclassificação, qualificadora e causa de aumento exclusivamente prevista para o homicídio.
Por outro lado, a cláusula de proteção judicial e a necessária tutela da vida – marcadamente anotadas no inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República e nos arts. 4.1 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, entre outros – impõem interpretação que assegure julgamento de fato em conformidade com a grave violação a direitos humanos ali noticiada (homicídio).
Em síntese, a partir da previsão da figura do feminicídio (art. 121-A do CP), é possível sintetizar quatro pontos assim:
1) a acusação deverá trazer, na exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a indicação das circunstâncias que eventualmente configurem qualificadoras e causas de aumento do homicídio (art. 121 e todas as figuras derivadas ali positivadas);
2) em caso de tese desclassificatória, de feminicídio para homicídio, o juiz presidente deverá formular o quesito respectivo sobre o elemento normativo do tipo “por razões da condição do sexo feminino”;
3) acolhida a tese desclassificatória pelo conselho de sentença, o presidente submeterá aos jurados, após a votação do quesito absolutório genérico, as qualificadoras do homicídio que guardem convergência com as causas de aumento do feminicídio (incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 do CP) desde que a denúncia de pronúncia tenha admitido, na indicação do dispositivo legal, a presença da causa de aumento descrita no inciso V do § 2º do art. 121-A do CP;
4) sequentemente, desde que previstas na peça acusatória e arguidas em plenário pela acusação, o juiz presidente deverá quesitar as demais qualificadoras e causas de aumento previstas para o homicídio, ainda que elas não tenham constado expressamente na indicação do dispositivo legal pela decisão de pronúncia, a fim de assegurar que o julgador do fato (conselho de sentença) dê definição jurídica correta ao fato que lhe é apresentado para julgamento.
Como se vê, a previsão do novo feminicídio reclamará do intérprete reflexão específica sobre o que determina o art. 482, parágrafo único, parte final, do CPP. Mas, assegurada à defesa do acusado a imputação descrita e circunstanciada de tudo que melhor permita ao julgador a definição jurídica do fato, não há como admitir que a desclassificação do feminicídio para homicídio resulte numa decisão que ignore o que o próprio legislador estabeleceu como razão de maior censura ao fato criminoso.