Especialmente após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 635.659-SP, que reclassificou o porte de maconha para consumo pessoal como infração administrativa, o cultivo doméstico de Cannabis sativa para fins terapêuticos tem gerado intensos debates no âmbito jurídico brasileiro. Esses debates envolvem desde a interpretação da Lei de Drogas até o alcance dos direitos fundamentais dos pacientes. Nesse contexto, surgem questões relevantes: é possível admitir o cultivo artesanal sem comprometer a segurança e a eficácia do tratamento? A ausência de regulamentação específica da ANVISA inviabiliza ou flexibiliza o controle estatal sobre essas práticas? E, por fim, o Sistema Único de Saúde (SUS) seria capaz de suprir as demandas por medicamentos à base de canabidiol, especialmente para pacientes em condições de vulnerabilidade financeira?
Esses questionamentos revelam a complexidade do tema, que se encontra na interseção entre o direito à saúde, o poder regulador do Estado e a tutela dos bens jurídicos relacionados à saúde pública. Este artigo busca explorar os critérios estabelecidos para o cultivo de Cannabis sativa para fins medicinais, analisar suas implicações legais e destacar os riscos associados à flexibilização dos controles normativos.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 783.717, proferido em outubro de 2023, estabeleceu um precedente sobre o cultivo doméstico de Cannabis sativa para fins terapêuticos no Brasil, refutando a caracterização de crime nessas hipóteses. Entre os critérios destacados, está a necessidade de um receituário e laudo médico especializado, essenciais para comprovar a necessidade terapêutica do paciente. Tanto a prescrição médica quanto o laudo devem ser emitidos por um profissional especializado, garantindo que a recomendação para o cultivo seja apropriada à condição de saúde do paciente. A decisão também estabeleceu que a produção da Cannabis sativa deve ser realizada de forma artesanal, ou seja, em pequena escala e sem fins comerciais, assegurando que o cultivo seja destinado exclusivamente ao uso pessoal do paciente. Além disso, o cultivo deve ter como único objetivo o tratamento de doenças ou condições médicas específicas, com o uso da Cannabis sativa diretamente relacionado a uma necessidade de saúde comprovada. Adicionalmente, a decisão abordou um requisito facultativo referente à autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) para a importação de medicamentos à base de canabidiol.
A decisão comporta algumas críticas. A obtenção deste tipo de autorização está regulada pela Lei de Drogas, especificamente nos artigos 2º e seu parágrafo único, e art. 31. Conforme previsto, a legislação brasileira faculta à União a autorização para o plantio de vegetais dos quais possam ser extraídas substâncias entorpecentes, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, desde que observadas as condições legais, especialmente no que tange à fiscalização dessa atividade. Portanto, é indispensável, conforme a legislação vigente, que o cultivo de Cannabis para fins terapêuticos seja previamente autorizado pelo órgão competente da União. Nesse contexto, o Decreto nº 5.912/2006, que regulamenta a Lei de Drogas, confere ao Ministério da Saúde a competência para autorizar o plantio, cultivo e colheita desses vegetais.
Todavia, observa-se que a ANVISA, até o presente momento, limitou-se a editar resoluções que regulamentam os critérios para a importação de produtos à base de canabidiol para uso próprio, mediante prescrição médica, assim como para a comercialização de produtos derivados de Cannabis em farmácias, sem, contudo, disciplinar diretamente o plantio da planta. É inegável que fármacos derivados da Cannabis sativa apresentam benefícios comprovados no tratamento de doenças graves, síndromes raras e distúrbios psiquiátricos. Contudo, a ANVISA restringe a administração dessas substâncias a casos em que não haja outras opções terapêuticas disponíveis, conforme previsto no art. 5º da RDC nº 357/2019. A mencionada resolução também impõe limites rigorosos quanto às concentrações e formas de uso dos produtos de Cannabis para fins medicinais.
Importante destacar que não se pode equiparar o uso de óleos prescritos por médicos especializados ao fármaco produzido artesanalmente a partir do cultivo doméstico de Cannabis sativa. A ausência de garantia quanto à manipulação correta da planta e ao controle adequado da concentração e quantidade do princípio ativo inviabiliza a segurança e eficácia do tratamento. O controle de qualidade do produto é essencial para a eficácia terapêutica, o que dificilmente é garantido mediante a produção artesanal de extratos caseiros, que carecem de controle de qualidade adequado. Assim, a produção de medicamentos para o tratamento de doenças graves exige rigor técnico e supervisão, o que não se verifica em práticas domésticas. Ao contrário, a autorização para a produção domiciliar de fármacos derivados de Cannabis sativa expõe o paciente a riscos potencialmente graves, comprometendo não apenas a segurança do tratamento, mas também sua eficácia terapêutica. A produção caseira inviabiliza um controle rigoroso, tanto da manipulação quanto da concentração das substâncias ativas, o que eleva substancialmente os riscos associados ao tratamento. Tal prática dificulta a fiscalização por parte das autoridades competentes, que são incumbidas de garantir a qualidade e a segurança dos produtos utilizados em tratamentos médicos. Assim, é inquestionável que a administração de fármacos por entidades devidamente licenciadas e tecnicamente capacitadas oferece um grau de segurança muito superior à produção caseira de óleos terapêuticos.
Aqueles que defendem a autorização para o cultivo caseiro, sob o argumento de que tal prática reduziria os custos e beneficiaria indivíduos hipossuficientes, falham em considerar a ampla acessibilidade aos medicamentos e tratamentos essenciais proporcionada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A universalidade do SUS assegura o fornecimento de medicamentos indispensáveis aos pacientes, especialmente em casos de alto custo, mediante prescrição médica e, se necessário, por meio de demanda judicial. O Poder Judiciário tem sido acionado com frequência para compelir o Estado a fornecer medicamentos de custo elevado a pacientes carentes, garantindo assim o acesso aos tratamentos sem que o indivíduo precise arcar com o ônus financeiro diretamente. Dessa forma, o argumento baseado na condição financeira dos pacientes não justifica a flexibilização dos rigorosos controles que cercam a produção e a administração de fármacos, sobretudo aqueles oriundos de plantas que possuem substâncias entorpecentes, como a Cannabis sativa. A proteção à saúde pública e a segurança dos pacientes devem sempre prevalecer sobre soluções que podem, inadvertidamente, colocar em risco o próprio objetivo do tratamento.
A jurisprudência reforça essa interpretação. No julgamento do Habeas Corpus nº 2220963-16.2020.8.26.0000, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que cabe exclusivamente à União, por meio de licença administrativa, autorizar o plantio de Cannabis sativa para fins medicinais, com base na Lei de Drogas, e destacou os riscos à saúde pública e à segurança jurídica decorrentes da produção artesanal. No mesmo sentido, a decisão no Habeas Corpus nº 2077688-09.2020.8.26.0000 rejeitou a pretensão de plantio para uso medicinal, enfatizando a ausência de comprovação de negativa do SUS em fornecer o medicamento e a necessidade de expertise técnica para a produção. Além disso, o próprio STJ já decidiu que é incabível salvo-conduto para o cultivo de maconha visando a extração do óleo medicinal, ainda que na quantidade necessária para o controle da epilepsia, posto que a autorização fica a cargo da análise do caso concreto pela ANVISA (RHC nº 123.402/RS, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, j. 23.03.21).
A análise do cultivo doméstico de Cannabis sativa para fins terapêuticos evidencia os desafios de harmonizar direitos individuais com a proteção coletiva prevista no ordenamento jurídico brasileiro. Embora o direito à saúde seja um fundamento constitucional relevante, o excesso de subjetivismo nas decisões judiciais, marcado por uma visão desproporcionalmente benevolente em relação aos pacientes, pode comprometer o equilíbrio necessário entre a autonomia individual e os controles normativos voltados à saúde pública.
Decisões judiciais que ignoram a exigência de regulamentação estatal e desconsideram os mecanismos de fiscalização previstos pela Lei de Drogas abrem precedentes perigosos, que não apenas fragilizam a autoridade reguladora da União, mas também aumentam os riscos de práticas que comprometem a segurança e eficácia dos tratamentos. O decisionismo exacerbado, ao negar os controles estabelecidos pela legislação, pode criar um cenário de permissividade incompatível com os objetivos constitucionais do art. 196 da Constituição Federal, que preconiza a redução dos riscos à saúde pública e a prevenção de doenças e agravos.
Portanto, é indispensável respeitar os parâmetros normativos estabelecidos para o cultivo e uso terapêutico da Cannabis sativa. Apenas assim será possível garantir que o direito à saúde seja exercido de maneira responsável, preservando não apenas os direitos individuais, mas também a segurança coletiva e a qualidade do sistema de saúde pública.