Sumário:
I – Introdução. Situando o tema II – Fundamentação jurídica 1. O confisco alargado no ordenamento penal brasileiro. 2. Interpretação sistemática do §5º do art. 91-A. 3. Técnica legislativa e coerência normativa. 4. Interpretação conforme à Constituição, evitando-se, através de interpretação estritamente gramatical e isolada da norma, resultado hermenêutico incompatível com o modelo federativo. III – Conclusão.
I – Introdução. Situando o tema.
A Lei 13.964/2019 introduziu no Código Penal brasileiro nova sistemática relacionada à decretação de perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito, na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão.
Trata-se da figura do confisco alargado, mecanismo legal que permite ao Estado confiscar bens de um condenado por um crime, mesmo que esses bens não estejam diretamente relacionados ao crime cometido, mas que sejam incompatíveis com os rendimentos lícitos auferidos pelo condenado. Assim, a finalidade do instituto é a descapitalizar o criminoso, especialmente em se tratando de organizações criminosas e milícias, impedindo que se beneficiem de atividades ilícitas ou com aparência de licitude, dificultando a prática de novos crimes.
A controvérsia do novo mecanismo legal, objeto de enfrentamento do presente artigo, reside em saber se o §5º do artigo 91-A do CP, ao prever que os instrumentos do crime serão destinados à União ou ao Estado, a depender da Justiça competente, constitui norma excepcional ou orientadora da regra geral de destinação prevista no caput.
II – Fundamentação jurídica
1. O confisco alargado no ordenamento penal brasileiro.
O art. 91-A do Código Penal, inserido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), introduziu a figura do confisco alargado, permitindo a perda de bens, direitos ou valores que sejam incompatíveis com o patrimônio lícito do condenado, desde que o delito esteja entre aqueles previstos no rol do caput e seja punido com pena superior a seis anos de reclusão.
No entanto, ao contrário do art. 91, que trata dos efeitos genéricos da condenação e determina a perda em favor da União, o art. 91-A não indica expressamente o ente federativo destinatário/beneficiário da perda patrimonial nele prevista.
2. Interpretação sistemática do §5º do art. 91-A.
Confira-se a redação do §5º do art. 91-A introduzida pela Lei Federal 13.964/2019:
“Os instrumentos utilizados para a prática de crimes por organizações criminosas e milícias (…) deverão ser declarados perdidos em favor da União ou do Estado, conforme o caso, observado o juízo competente.”
Embora a redação trate expressamente de uma hipótese específica (instrumentos de crimes praticados por organizações criminosas e milícias), não há qualquer indicação de que se trate de exceção à regra geral do caput, até porque tal regra geral é omissa quanto ao ente federativo destinatário/beneficiário.
Diante disso, qual a melhor interpretação jurídica e constitucional para a resolução da aparente controvérsia?
Dentre os métodos tradicionais de interpretação das normas jurídicas em matéria penal, é sabido que a interpretação literal, gramatical ou filológica da norma é aquela que pode conduzir o intérprete aos resultados mais limitados e insatisfatórios.
Assim, para melhor extração da voluntas legis (espírito da lei – corrente objetivista) e da própria voluntas legislatoris (vontade do legislador – corrente subjetivista),melhor amolda-se à espécie o critério de interpretação sistemática, segundo a qual o §5º do art. 91-A complementa e esclarece o caput do artigo, estabelecendo critério objetivo para definição do destinatário da perda patrimonial: a competência jurisdicional da Justiça que conduz a ação penal, federal ou estadual, conforme o caso.
3. Técnica legislativa e coerência normativa.
A técnica legislativa empregada no art. 91-A reforça essa compreensão. Quando o legislador pretende estabelecer exceções, o faz com vocábulos e estruturas que exprimem tal intenção (e.g., “excepcionalmente”, “sem prejuízo de”, “ressalvada a hipótese de”). O §5º não se vale de tais expressões, indicando que se trata de regra geral aplicável a todo o artigo.
Ademais, a adoção do critério objetivo da competência da Justiça (Federal ou Estadual) como elemento de definição do destinatário dos bens está em plena consonância com:
- o princípio federativo, que exige distribuição equitativa de competências e receitas financeiras entre os entes federativos (equilíbrio de forças federativas, a permitir o cumprimento adequado e eficiente do dever estatal de prestar segurança pública – art. 144 da CFRB/1988);
- e com os arts. 109 e 125 da Constituição Federal, que delimitam as competências das Justiças Federal e Estadual, as quais devem repercutir na titularidade dos bens adquiridos por força da persecução penal.
4. Interpretação conforme à Constituição, evitando-se, através de interpretação estritamente gramatical e isolada da norma, resultado hermenêutico incompatível com o modelo federativo.
Como cediço, um dos mais prestigiados princípios de interpretação especificamente constitucional na jurisprudência do c. STF é o da interpretação conforme à Constituição, verdadeira técnica decisória do controle de constitucionalidade expressamente consagrada em documento legislativo (art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99).
Segundo Canotilho[1], o procedimento da interpretação conforme à constituição resulta da exigência de conjugação de pelo menos três aspectos: (a) o princípio da prevalência (supremacia) da constituição, de acordo com o qual deve ser escolhida uma interpretação que não seja contrária ao texto e ao programa da norma constitucional; (b) o princípio da conservação de normas, que traduz a ideia de que a norma não deve ser declarada inconstitucional quando, verificadas suas finalidades, ela puder ser interpretada em conformidade com a constituição; c) o princípio da exclusão da interpretação conforme à constituição, mas que seja contrária ao sentido literal da lei, de acordo com o qual não deve ser admitida interpretação conforme à constituição contra legem).
Desse modo, a interpretação conforme à constituição exige o denominado espaço de decisão/espaço de interpretação para o intérprete, aplicando-se exclusivamente às normas jurídicas de conteúdo polissêmico ou plurissignificativo (que contenham mais de um sentido exegético possível) e não às normas unívocas, assim entendidas como aquelas que possuem uma única interpretação possível.
Se a norma objeto de análise embute 2 ou 3 interpretações possíveis (hipoteticamente as interpretações X, Y e Z), deverá o intérprete optar, naturalmente, por aquela que melhor se compatibilize com o programa constitucional, descartando, por outro lado, aquelas que não se afinem com as regras e princípios extraídos do catálogo do Texto Maior.
Parece ser exatamente o caso da interpretação das disposições contidas no art. 91-A e respectivos parágrafos do Código Penal brasileiro.
Ora, se se admitisse, ad argumentandum tantum,que todos os bens confiscados com base no art. 91-A deveriam ser revertidos apenas a favor da União, mesmo nos casos julgados pela Justiça Estadual, criar-se-ia um inaceitável desequilíbrio de forças federativas, com concentração patrimonial indevida e esvaziamento das receitas derivadas da persecução penal promovida pelos Ministérios Públicos Estaduais e julgadas por magistrados estaduais sem a devida justificativa constitucional.
Em outros termos, a tese ora advogada da repartição das receitas derivadas da persecução penal entre União, Estados-membros e Distrito Federal, encontra respaldo numa interpretação conforme ao art. 144 e respectivos parágrafos da Constituição Federal[2], a disciplinar o dever solidário dos entes federativos em matéria de dever de prestar segurança pública com eficiência, em busca de maior equilíbrio das forças federativas (maior isonomia federativa), máxime se considerarmos que o confisco alargado representa mecanismo de política criminal que tem por finalidade incrementar/robustecer a prestação eficiente do dever estatal de oferecer segurança pública à sociedade, obrigação solidária da União e dos Estados membros, predominantemente.
Em outras palavras, deve ser rechaçado, mediante recurso à técnica da interpretação conforme à constituição, o sentido exegético da norma que atribua a totalidade da receita proveniente da persecução penal exclusivamente a favor da União, interpretação dissociada do pacto federativo (cláusula pétrea) que contribuiria apenas para incrementar maior desequilíbrio de forças federativas em matéria de prestação do dever de ofertar segurança pública, que se pretende eficiente, segundo os ditames constitucionais.
A corroborar referida tese, não se pode olvidar que, pela teoria dos poderes implícitos, se a CF/1988 atribui a todos os entes federados o dever de prestar segurança pública com eficiência, especialmente aos Estados por suas polícias, deve também, oferecer todos os meios necessários para realizar suas funções e objetivos de interesse público, mesmo que não estejam expressamente previstos na Constituição ou nas leis. Em essência, se a Constituição atribui a um órgão uma função específica, implicitamente lhe concede também os meios necessários para exercer essa função de forma eficaz.
III – CONCLUSÃO
À luz dos princípios da hermenêutica jurídica e constitucional, da melhor técnica legislativa e das disposições contidas na Constituição Federal, conclui-se que:
- O §5º do art. 91-A do Código Penal não constitui norma excepcional, mas sim norma orientadora geral, aplicável inclusive à hipótese do caput;
- A destinação dos bens confiscados com base no confisco alargado deve respeitar a competência jurisdicional do juízo criminal, sendo os bens revertidos à União quando a ação penal tramitar na Justiça Federal, e ao Estado quando tramitar na Justiça Estadual.
- Deve ser rechaçado, mediante recurso à técnica da interpretação conforme à constituição (art. 144 e parágrafos da CF), o sentido exegético da norma que atribua a totalidade da receita proveniente da persecução penal exclusivamente a favor da União, interpretação dissociada do pacto federativo (cláusula pétrea) que contribuiria apenas para incrementar maior desequilíbrio de forças federativas em matéria de prestação do dever de ofertar segurança pública, que se pretende eficiente, segundo os ditames constitucionais;
- Se a CF/1988 atribui a todos os entes federados o dever de prestar segurança pública, especialmente aos Estados por suas polícias, deve também, pela teoria dos poderes implícitos, oferecer todos os meios necessários para realizar suas funções e objetivos de interesse público, mesmo que não estejam expressamente previstos na Constituição ou nas leis. Em essência, se a Constituição atribui a um órgão uma função específica, implicitamente lhe concede também os meios necessários para exercer essa função de forma eficaz.
Tal interpretação promove coerência normativa, segurança jurídica e respeito ao pacto federativo e ditames constitucionais em matéria de segurança pública, devendo orientar as decisões judiciais e administrativas relativas à destinação patrimonial no âmbito do confisco alargado.
[1] Canotilho, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 3.a ed. Coimbra: Almedina,1999, p. 1.226-1.227.
[2] Art. 144 – CRFB/1988. “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…) § 7º. A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.” (sem grifos no original)