Com a entrada em vigor da Lei 11.340/06, que no art. 41 proíbe a aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes cometidos contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, surgiu a discussão a respeito da ação penal no crime de lesão corporal de natureza leve: deveria permanecer pública condicionada ou passaria a ser pública incondicionada?
Para uns, a ação continuava pública condicionada, pois a referência genérica à inaplicabilidade da Lei 9.099/95 denotava apenas a preocupação do legislador com as características muito brandas das medidas despenalizadoras, especialmente nas transações penais. A possibilidade de poder optar por representar contra o agressor não seria, portanto, um ponto realmente sensível para evitar a impunidade.
Corrente contrária defendia que, a partir da Lei 11.340/06, a ação penal nos crimes praticados contra a mulher havia se tornado pública incondicionada, não mais reclamando a prévia representação da ofendida. O primeiro ponto a ser observado dizia respeito ao art. 41, que afastou, expressamente, a incidência da Lei 9.099/95, “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher”. Se o delito de lesão corporal leve é de ação penal pública condicionada em virtude de disposição da Lei 9.099/95, tem-se, por consequência, que na medida em que a Lei Maria da Penha afastou a aplicação dos juizados automaticamente tornou-se à situação anterior, ou seja, não seria mais necessária a representação para esse delito.
Argumentava-se, ainda, que o espírito da lei era o agravamento da situação do agressor, que deveria ser processado independentemente da vontade da vítima.
O STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI 4424), pacificou a questão, reconhecendo que o art. 41 da Lei 11.340/06 não viola a Carta Maior. Decidiu que a ação penal nos crimes de lesão corporal dolosa (mesmo que de natureza leve) cometidos contra a mulher no ambiente doméstico e familiar é pública incondicionada, dispensando, portanto, o pedido-autorização da ofendida. Na esteira, o STJ editou a súmula nº 542:
“A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada” – destacamos.
Mas qual a ação penal adequada para a contravenção de vias de fato? Seguem-se os mesmos fundamentos que culminaram na edição da súmula 542?
Destaca-se inicialmente que as vias de fato consistem no contato físico que não chega a provocar lesão no corpo humano. Ocorrem normalmente por meio de empurrões, puxões de cabelo, tapas etc. A doutrina as conceitua por exclusão: são agressões incapazes de provocar lesão corporal:
“Conceituam-se as vias de fato como a briga ou a luta quando delas não resulta crime; como a violência empregada contra a pessoa, de que não decorre ofensa à sua integridade física. Em síntese, vias de fato são a prática de perigo menor, atos de provocação exercitados materialmente sobre a pessoa, ou contra a pessoa. Assim, empurrá-la sem razão, sacudi-la, rasgar-lhe a roupa, agredir-lhe a tapas, a socos ou a pontapés, arrebatar-lhe qualquer objeto das mãos ou arrancar-lhe alguma peça do vestuário, puxar-lhe os cabelos, molestando-a” (Contravenções Penais, v. 1, p. 164)” (apud Nucci, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, vol. 1, p. 124).
Independentemente do contexto em que cometida esta contravenção, há controvérsia a respeito da natureza da ação penal.
O art. 17 do Decreto-lei 3.688/41 estabelece que, nas contravenções (todas), a ação penal é pública incondicionada. Ocorre que, segundo parte da doutrina, a regra da Lei 9.099/95 que estabelece a necessidade de representação para a lesão corporal de natureza leve deve se estender às vias de fato, pois, afinal, trata-se de conduta com a mesma natureza mas com consequências mais brandas, razão pela qual não pode sofrer tratamento processual mais rígido:
“Ação penal: deve ser pública condicionada. Embora o art. 17 desta Lei estabeleça que todas as contravenções proporcionam ação penal pública incondicionada, não há sentido algum em se manter esse dispositivo. Ocorre que, a partir de 1995, com a edição da Lei 9.0999, a lesão corporal simples e a lesão corporal culposa dependem da representação da vítima para que o órgão acusatório possa atuar (ação pública condicionada). Ora, se o mais (lesão corporal) demanda a autorização do ofendido, é óbvio que menos (vias de fato) também deve exigir representação” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, vol. 1, p. 125).
Outros, no entanto, apontam que o art. 17 do Decreto-lei nº 3.688/41 é aplicável também às vias de fato. O argumento de que se justifica a representação do ofendido porque a infração é menos grave do que a lesão corporal não merece guarida porque, a se aplicar esta solução, todos os crimes de perigo que pudessem preceder a uma infração penal de ação penal pública condicionada também teriam a persecução penal modificada. Como exemplo, pode-se citar o art. 132 do Código Penal: se a lesão corporal de natureza leve é processada mediante representação do ofendido, aplicar-se-ia o mesmo procedimento à exposição da vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente (Mirabete, Juizados Especiais Criminais, p. 140). Há decisão do STJ neste sentido:
“1. O artigo 88 da Lei n.º 9.099/95, que tornou condicionada à representação a ação penal por lesões corporais leves e lesões culposas, não se estende à persecução das contravenções penais. A contravenção penal de vias de fato, insculpida no artigo 21 da Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei n.º 3.688/41), ainda que de menor potencial ofensivo em relação ao crime de lesão corporal, não foi incluída nas hipóteses do artigo 88 da Lei n.º 9.099-95. 2. A Lei de Contravenções Penais (Decreto Lei n.º 3.688/41) continua em pleno vigor e nela há expressa previsão legal de que a ação penal é pública incondicionada, conforme disciplina o seu artigo 17” (RHC 47.253/MS, j. 04/02/2014).
Pois bem. Dadas as características das infrações penais (crimes ou contravenções) cometidas contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, e considerando que os mecanismos de proteção devem ser postos em prática inclusive diante de fatos aparentemente menos relevantes que, se não coibidos, podem rapidamente evoluir para crimes de acentuada gravidade, o STJ tem decidido que a contravenção também se submete à regra da incondicionalidade da ação penal:
“5. Considerando a retratação da suposta ofendida em juízo, em audiência designada para tal fim, antes do recebimento da denúncia, deve ser reconhecida a ausência de condição de procedibilidade quanto ao crime de ameaça, pois, nos termos do art. 147, parágrafo único, trata-se de crime de ação penal pública condicionada, que se procede mediante representação. 6. Em relação ao crime de disparo de arma de fogo e à contravenção penal de vias de fato, contudo, descabe falar em trancamento da ação penal. Isso porque ambos os ilícitos são de ação pública incondicionada, na qual a atuação do Ministério Público independente de manifestação de vontade da ofendida ou de terceiros e, portanto, a retratação da companheira do réu não representa ausência de condição de procedibilidade e não tem qualquer repercussão quanto a tais condutas. Por certo, caso reste evidenciada a presença de justa causa para a persecução penal, deverá o Parquet oferecer denúncia contra o réu, em observância ao princípio da obrigatoriedade (CPP, art. 24). 7. A Lei de Contravenções Penais, em seu artigo 17, estabelece que a ação penal é pública em relação a todas as infrações tipificadas nesse diploma legal. 8. Para fins da Lei Maria da Penha, a palavra “crime” deve ser interpretada como infração penal, ou seja, corresponde aos crimes e às contravenções descritas no Decreto-lei n. 3.688/1941. Ainda, a teor da jurisprudência desta Corte, ‘seja caso de lesão corporal leve, seja de vias de fato, se praticado em contexto de violência doméstica ou familiar, não há falar em necessidade de representação da vítima para a persecução penal’ […]” (RHC 88.515/RJ, Quinta Turma, j. 24/05/2018).
“2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se manifestando quanto à natureza pública incondicionada da ação penal em caso de delitos de vias de fato praticados mediante violência doméstica e familiar contra a mulher” (AgRg no REsp 1.738.183/AM, Sexta Turma, j. 27/11/2018).
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