Sumário: I. Introdução; II. Direito à alimentação e segurança alimentar; Direito humano à alimentação adequada; 2. Breve relato histórico; 3. A Orgânica de Segurança Alimentar e Nacional (LOSAN); 4. O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PLASAN: 2012-2015; III. Transferência de renda: o Programa Bolsa Família – PBF; IV. Impactos do Programa Bolsa Família no direito à alimentação e a questão da progressividade; V. Conclusão.
I. INTRODUÇÃO
A Constituição Brasileira de 1988 é extremamente generosa ao prever os direitos fundamentais, em especial os direitos sociais. Basta atentar para o art. 6º que prevê que são “direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Mas ainda seria possível lembrar muitos outros, como o direito ao trabalho (art. 7º), à cultura (art. 215) e ao esporte (art. 217).
O compromisso constitucional vai muito além ao estabelecer que são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Esta generosidade normativa está associada a uma histórica desigualdade social. No Ranking IDH Global 2013, o Brasil aparece na 79ª posição entre os 187 países classificados. Apesar de tal posição colocar o país entre aqueles com desenvolvimento humano elevado, os indicadores sociais brasileiros mostram uma distribuição de renda extremamente desigual. O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística revela que, em
termos da distribuição pessoal da renda, com base nos rendimentos individuais das pessoas de 15 anos ou mais de idade captados pela PNAD, considerando todas as fontes, observa-se que, em 2012, o primeiro décimo da distribuição (10% com menores rendimentos) se apropriava de 1,1% da renda total, enquanto ao último décimo (10% com maiores rendimentos) correspondia 41,9%.
A desigualdade também é notada quando são analisadas as regiões do Brasil. De acordo com o índice Gini, que varia de 0 a 1, sen do 1 o indicador de máxima desigualdade e 0 a igualdade perfeita na distribuição de rendimentos, nota-se que, apesar de uma queda no índice a partir dos anos 2000, chegando a 0,507 em 2011 e 2012, a desigualdade regional ainda é acentuada. A desigualdade econômica também se intensifica quando analisadas as categorias de cor e raça da população brasileira.
Historicamente, pretos e pardos apresentam indicadores sociais desfavoráveis quando comparados à população de cor branca, fruto ainda da histórica exclusão social de amplos segmentos de pretos e pardos, inserções diferenciadas no mercado de trabalho, distribuição regional, acessos desiguais a uma série de bens e serviços, entre diversos outros fatores estruturantes da sociedade brasileira nessa perspectiva.
A tensão entre a realidade fática e a generosidade constitucional nos leva a uma pergunta: como levar a sério as previsões normativas se há evidentes dificuldades geradas pela escassez de recursos? O objetivo deste trabalho não é responder esta questão da maneira genérica como ela foi formulada acima, mas analisar se, ao menos no campo do direito à alimentação, o programa de distribuição de renda chamado Bolsa Família conseguiu reduzir essa tensão e se criou outros problemas. Além disso, pretendemos examinar o impacto das previsões normativas sobre a progressividade dos direitos sociais e os caminhos existentes quando programas sociais são postos em xeque diante da escassez de recursos decorrente de uma crise econômica severa, como a que o Brasil vem enfrentando de maneira mais intensa desde 2015.
Para tanto, analisaremos, primeiramente, o direito à alimentação adequada e a segurança alimentar para, em seguida, abordar o tema da transferência de renda e o programa Bolsa Família. Ao final, discutiremos o direito à alimentação associado à ideia de não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais.
II. DIREITO À ALIMENTAÇÃO E SEGURANÇA ALIMENTAR
- Direito humano à alimentação adequada
A previsão da alimentação como direito fundamental social foi incluída na Constitução brasileira de 1988 pela Emenda Constitucional no 64/2010, que alterou a redação do art. 6º.
Mas, muito antes disso, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, adotado pela XXI Sessão da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966, e promulgado no Brasil, pelo Decreto no 591, de 6 de julho de 1992, já estabelecia, no art. 11, que os Estados Partes do Pacto reconheciam o direito de toda a pessoa a um nível de vida adequado para si e sua família, inclusive à alimentação, além do direito fundamental de estar protegida contra a fome. Para atingir tais objetivos, os Estados Partes assumiram vários compromissos, dentre os quais o de difundir os princípios de educação nutricional, assegurando a repartição equitativa dos recursos alimentícios, levando em consideração as necessidades e os problemas dos países importadores e exportadores de alimentos.
É importante notar que o PIDESC, ao proteger as pessoas e suas famílias da fome e exigir a difusão dos princípios de educação nutricional, não consagrou apenas o direito à alimentação, mas o direito a uma alimentação adequada.
Portanto, pelo menos desde 1992, o Brasil reconhecia o direito à alimentação de todas as pessoas e de suas famílias e, portanto, deveria agir para consagrá-lo na prática, buscando romper com o ciclo histórico de fome e insegurança alimentar no Brasil. Para tanto, devia voltar seus esforços para promover a disponibilidade, o acesso e a suficiência alimentar, que são fatores essenciais para garantir a segurança alimentar e nutricional.
2. Breve relato histórico
A fome e a insegurança alimentar são problemas históricos da realidade brasileira. Os estudos realizados por Josué de Castro apontavam com destaque as condições desta realidade, sendo claro que poucas foram as políticas públicas de enfrentamento desta situação até o processo de redemocratização do País, a partir de 1988.
Entre idas e vindas, por muito tempo o enfrentamento da segurança alimentar ficou adstrito fundamentalmente a programas de alimentação escolar e suplementação de aleitamento materno. É a partir da década de 1990 que a fome, numa perspectiva política e social, passa a ser discutida de maneira mais aprofundada.
Um dos momentos de grande destaque no enfrentamento da questão de forma mais qualificada se dá pela realização da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – conhecida como Eco-92 – que foi abrigada no Brasil em junho de 1992, ou seja, um mês antes da promulgação do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A Eco-92 constituiu importante espaço de mobilização em relação ao tema. Foram vários os movimentos, as organizações sociais e os fóruns de debates que se estabeleceram, organizando em paralelo ao evento oficial uma Conferência Mundial da Sociedade Civil, movimento este que enviaria suas propostas de Tratados para o Encontro Oficial.
A Eco-92 e a Conferência Mundial da Sociedade Civil debateram o tema da fome e formularam o conceito de segurança alimentar a partir da noção de desenvolvimento sustentável, que então se estabeleceu de maneira mais forte como um referencial de discussão sobre um modo de produção econômica e ambientalmente sustentável, social e culturalmente justo. A articulação desses valores impôs ao conceito de desenvolvimento os referenciais de justiça social, ou seja, para algo além da ideia de crescimento econômico.
A partir de 1993, no governo do então presidente Itamar Franco, a fome e a segurança alimentar passaram a encampar a agenda das políticas públicas do Brasil. Naquele ano foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar – Consea, como órgão de aconselhamento da Presidência da República, composto por 8 Ministros de Estado e 21 representantes da Sociedade Civil. O Consea, apesar de ter existido somente até 1994, atuou em várias frentes, como:
[…] na merenda escolar, as ações emergenciais de combate à fome no Nordeste, na distribuição de estoques públicos de alimentos à população carente, nas pesquisas e programas sobre alimentação e nutrição, nos programas de distribuição de leite e de alimentação do trabalhador.
No início do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, o Consea foi extinto e substituído pelo Conselho da Comunidade Solidária, com o objetivo de “promover a integração de ações exercidas pelos diversos níveis públicos (federal, estadual e municipal), dentro de um Plano Nacional de Estabilização Econômica”.
No final de 1998, cerca de 50 entidades da Sociedade Civil criaram o Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional FBSAN (atualmente Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricioanal), que procurou estimular a criação de Conselhos Estaduais de Segurança Alimentar e Nutricional nos estados.
No início do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, foi recriado o Consea e criado o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome – MESA, o Fome Zero e o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA. Na mesma época foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição 47/2003, de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), que propôs incluir no art. 6º da Constituição Federal a alimentação como direito social.
Em 2004 foi instituído o Programa Bolsa Família (Lei no 10.836, de 2004), que unificou os programas de transferência direta de renda e, no mesmo ano, foi criado o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome MDS, que passou a responder, dentre outras, pelas políticas de segurança alimentar e de transferência de renda.
Ainda em 2004 foi realizada a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional II CNSAN, que deliberou pela criação de uma Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional LOSAN, bem como pela necessidade de criação de um Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional SISAN, o que aconteceu em 2006 com a edição da Lei no 11.346/2006, que assegurou a alimentação adequada como um direito humano fundamental, atribuindo ao Poder Público o dever de adotar políticas e ações para garantir a segurança alimentar e nutricional da população.
3. A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nacional (LOSAN)
A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional LOSAN, de 2006, criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional SISAN, definindo princípios, diretrizes, objetivos e composição do Sistema e adotando uma concepção abrangente e intersetorial da segurança alimentar e nutricional. De forma mais significativa, a lei consagrou o direito humano à alimentação adequada e à segurança alimentar e nutricional como fim a ser alcançado por meio de políticas públicas. Dessa maneira, verifica-se o comprometimento do Estado brasileiro em garantir a todos os brasileiros o acesso à alimentação adequada e aos meios necessários para a sua obtenção.
O reconhecimento de tal direito, além de dirigir a atividade da política governamental em favor da sua consecução, dá às pessoas o poder de exigir do Estado medidas concretas na solução de eventual ameaça ou lesão a tal direito.
A LOSAN estabelece em seu art. 3º que a:
segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.
O art. 4º da mesma lei, por sua vez, prevê o seguinte:
Art. 4º A segurança alimentar e nutricional abrange:
- – a ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda;
- – a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos;
- – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social;
- a garantia da qualidade biológica, sanitária, nutricional e tecnológica dos alimentos, bem como seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida saudáveis que respeitem a diversidade étnica e racial e cultural da população;
- – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e
- – a implementação de políticas públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos, respeitando-se as múltiplas características culturais do País. (BRASIL, 2006).
Para a realização desses objetivos destacam-se ainda, do ponto de vista normativo, os Decretos no 6.272 e no 6.273, ambos de 23 de novembro de 2007, e o Decreto no 7.272, de 25 de agosto de 2010. O primeiro decreto regulamentou o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional-Consea, definindo suas competências, composição e funcionamento; o segundo criou a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional – CAISAN e o terceiro instituiu oficialmente a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PNSAN, além de estabelecer os parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Particularmente, é interessante apontar, também, a forma integrada e intersetorial que o SISAN foi pensado, de sorte a articular ações das diversas pastas do governo e dos diversos níveis Federativos – União, Estados, Municípios e Distrito Federal –, além de prever parcerias e a participação da sociedade civil.
4. O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PLASAN: 2012-2015
O Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi elaborado pela Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional – CAISAN, incluindo um processo de consulta ao CONSEA e aprovado pelo Pleno Ministerial da CAISAN, composto por 19 Ministérios. O PLANSAN 2012-2015 integra ações do conjunto desses órgãos voltadas para a produção, o fortalecimento da agricultura familiar, o abastecimento alimentar e a promoção da alimentação saudável e adequada.
No processo de institucionalização de mecanismos de combate à fome e de defesa de uma alimentação adequada e do direito à segurança alimentar, o PLASAN é o instrumento norteador da política pública brasileira na temática em questão, e mecanismo de consolidação dos objetivos definidos na lei de criação do SISAN.
O documento oficial que consolida referido Plano constata, inicialmente, que, de acordo com dados do IBGE do ano de 2009, a produção agrícola brasileira registrou nos últimos 20 anos um crescimento significativo de grande parte dos seus produtos. O principal crescimento se deu nos monocultivos voltados para a exportação, como a soja, a cana-de-açúcar e o milho e um crescimento menor do cultivo de alimentos para o mercado interno. Em relação à agropecuária, para o mesmo período, destacase fundamentalmente um crescimento significativo dos bovinos.
Contudo, as diversas culturas distribuem-se de forma desigual na área plantada no Brasil. A produção voltada para a exportação ocupa áreas de grande extensão, o que não acontece com as culturas voltadas para a alimentação no mercado interno. Ademais, a concentração da terra é uma forte característica da agricultura brasileira.
Quanto ao acesso à alimentação adequada e saudável o documento que consolida o PLASAN menciona que “a principal causa de insegurança alimentar é a falta de capacidade de acesso aos alimentos pelos grupos sociais mais vulneráveis”, sendo o rendimento familiar o “principal fator que determina a condição de segurança ou insegurança alimentar”.
Sobre o aspecto do acesso a uma alimentação adequada e saudável, verifica-se o “deslocamento do consumo de carboidratos para refrigerantes, sucos e bebidas adocicadas”, favorecendo a incidência de doenças crônicas, como a obesidade, a hipertensão e a diabetes. Além disso, constata-se “o aumento da participação das gorduras totais, que superam o limite recomendado, com crescimento acentuado das gorduras monoinsaturadas e poli-insaturadas” (BRASIL, 2011). Depois de constatar que “a alimentação na zona rural tende a ser mais adequada do que na zona urbana, principalmente em relação aos carboidratos complexos e às gorduras” (BRASIL, 2011), o referido documento da Câmara Interminsiterial de Segurança Alimentar e Nutricional verifica:
uma tendência de redução do consumo de alimentos comumente consumidos pela população brasileira como: arroz, feijão e tubérculos, com significativo aumento no consumo de alimentos processados, como biscoitos, refrigerantes e refeições prontas; o aumento do consumo de carnes, em especial carne bovina, frango e embutidos; o baixíssimo consumo de peixes; um discreto aumento no consumo de frutas, enquanto o consumo de verduras e legumes manteve-se estável.
O referido documento indica também que, apesar da melhora nos índices de peso e estatura de crianças menores de 5 anos nos últimos 20 anos, o quadro se altera na adolescência e na idade adulta, gerando preocupação especial quanto ao sobrepeso e à obesidade de adolescentes de 10 a 19 anos de idade. Por fim, a saúde e a nutrição no Brasil sofrem um impacto muito negativo pela contaminação de alimentos por agrotóxicos.
Após apontar um conjunto expressivo de programas e ações relacionados à segurança alimentar e nutricional criados ou ampliados nos últimos anos, o documento indica os desafios do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PLASAN 2012-2015, como, por exemplo, a erradicação da extrema pobreza e da insegurança alimentar moderada e grave, bem como a reversão das tendências de aumento das taxas de excesso de peso e obesidade. Por fim, estabelece as Diretrizes da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e indica os mecanismos de monitoramento e avaliação do Plano.
Como um dos objetivos deste ensaio é analisar a relação entre o direito à alimentação e a transferência de renda no Brasil, é fundamental que examinemos o impacto do Programa Bolsa Família na segurança alimentar e nutricional.
III. TRANSFERÊNCIA DE RENDA: O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA – PBF
O Programa Bolsa Família, instituído pela Lei no 10.836/2004, unificou vários procedimentos de gestão e execução de ações de transferência de renda para combater a pobreza e promover a segurança alimentar. De fato, PBF não constituiu o primeiro programa de transferência condicionada de renda desenvolvido no País, mas deve ser entendido como uma das frentes do que se nomeou Programa Fome Zero, estabelecido como política pública desde o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no ano de 2003.
O destaque para o Programa Bolsa Família decorre, especialmente, de dois fatores: (i) do reconhecimento da importância e do sucesso deste programa de transferência condicionada de renda na melhoria das condições sociais do país e do combate à fome, e (ii) pela possibilidade do enfrentamento simbólico e moral da condição de pobreza e avanços no processo emancipatório da sociedade brasileira.
A pobreza é um estado complexo que não se resume à escassez de bens materiais, mas articula essa escassez com conceitos de incapacidade pessoal para o trabalho. Identificando o pobre com a figura do vagabundo, impõe uma realidade de exclusão também no sentido moral. Na pobreza há homens e mulheres destituídos de direitos, destituídos de voz e destituídos de respeito próprio, o que solapa sua capacidade de construção de autonomia e cidadania.
Ao estudarmos o PBF, portanto, preocupa-nos aferir não só os impactos econômicos ou materiais, que decorrem de uma política de transferência de renda, mas pensar se esta é uma política de enfrentamento da pobreza, ou seja, uma política que procura dar autonomia a seus beneficiários e, desta maneira, visa a empoderar o sujeito que dela se beneficia, ou se é uma política que aprofunda a dependência de quem a recebe e fragiliza sua capacidade cidadã.
Como já mencionamos, o PBF é um programa do governo federal brasileiro, instituído pela Lei no 10.836/2004, que visa combater a pobreza e a fome, além de promover a segurança alimentar, por meio da transferência direta e condicionada de renda.
O programa se destina às famílias em situação de pobreza e extrema pobreza, com renda per capita de até R$ 77,00 mensais e famílias com renda por pessoa entre R$ 77,01 e R$ 154 mensais, desde que tenham, em sua composição crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos.
O PBF, de responsabilidade do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, prevê alguns benefícios e estabelece as condições para a sua obtenção:
- Benefício básico, no valor de R$ 77,00 pago apenas a famílias extremamente pobres (renda mensal por pessoa de até R$ 77,00).
- Benefícios variáveis, no valor de R$ 35,00 cada um (até cinco por família): i) vinculado à criança ou ao adolescente de 0 a 15 anos, desde que a família tenha renda mensal de até R$ 154,00 por pessoa e que tenham crianças ou adolescentes de 0 a 15 anos de idade em sua composição (é exigida frequência escolar das crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos de idade); ii) vinculado à gestante, pago às famílias com renda mensal de até R$ 154,00 por pessoa e que tenham grávidas em sua composição; iii) vinculado à nutriz, pago às famílias com renda mensal de até R$ 154,00 por pessoa e que tenham crianças com idade entre 0 e 6 meses em sua composição, para reforçar a alimentação do bebê, mesmo nos casos em que o bebê não more com a mãe.
- Benefício variável vinculado ao adolescente, no valor de R$ 42,00 (até dois por família) pago às famílias com renda mensal de até R$ 154,00 por pessoa e que tenham adolescentes entre 16 e 17 anos em sua composição (é exigida frequência escolar dos adolescentes).
- Benefício para superação da extrema pobreza, em valor calculado individualmente para cada família, pago às famílias que continuem com renda mensal por pessoa inferior a R$ 77,00, mesmo após receberem os outros tipos de benefícios do O valor do benefício é calculado de acordo com a renda e quantidade de pessoas da família, para garantir que a família ultrapasse o piso de R$ 77,00 de renda por pessoa.
Como se nota, o PBF condiciona o recebimento do benefício ao atendimento de requisitos que reforçam o acesso das famílias à educação e à saúde, como forma de contribuir para o desenvolvimento saudável das crianças e para que os estudantes possam concluir ao menos a educação básica, tendo melhores condições de vencer o ciclo de pobreza.
Nesse sentido, na área da educação, a percepção e manutenção do benefício pressupõe o compromisso do beneficiário de matricular as crianças e os adolescentes de 6 a 17 anos na escola e responder a uma frequência escolar de, pelo menos, 85% das aulas para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos e de 75% para jovens de 16 e 17 anos, todo mês.
Na área da saúde, exige-se que os responsáveis levem as crianças menores de 7 anos para tomar as vacinas recomendadas pelas equipes de saúde e para pesar, medir e fazer o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento. Das gestantes é cobrado o acompanhamento do pré-natal e a ida às consultas na Unidade de Saúde. “Entre 2003 e 2011, a pobreza e a extrema pobreza somadas caíram de 23,9% para 9,6% da população”. Quanto à educação, foi constatado que o PBF proporcionou “menores taxas de abandono e maiores taxas de progressão entre os beneficiários”.
Na saúde, além da contribuição do PBF para a redução da mortalidade infantil, identificou-se que as crianças beneficiárias apresentam maiores taxas de vacinação, e as mulheres grávidas fazem mais consultas de pré-natal que as não beneficiárias de igual perfil. Além disso, há efeitos positivos do programa que abrangem toda a economia: o Bolsa Família tem expressivo efeito multiplicador no PIB e na renda familiar total, além de reduzir desigualdades regionais.
Se não bastassem os dados quantitativos de melhora na educação e saúde, entre outros pontos, para confirmar a importância de um projeto de transferência de renda condicionada, vale apontar, ainda, a reflexão desenvolvida por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, e da qual compartilhamos, que destaca o caráter republicano da contrapartida demandada na implantação do PBF e a articulação entre políticas públicas e criação de cidadania. Os autores argumentam que, ao:
[…] incluir o beneficiário no corpo dos cidadãos, promove nele um sentimento de identificação com a nação, devido ao reconhecimento de sua pessoa por parte das instituições políticas do Estado. Suas necessidades se tornam objeto de direitos, cuja satisfação ele pode exigir do poder público. Em contrapartida, exige-se dele que assuma suas responsabilidades perante a comunidade política e o próprio Estado. Assim ocorre o aprendizado da cidadania em uma dupla dimensão: a do sujeito de direitos e a do sujeito de deveres. As duas dimensões são necessárias para que os indivíduos se considerem cidadãos, isto é, membros ativos do corpo político, e não meros clientes que recebem passivamente os serviços oferecidos pelo Estado.
Vale lembrar que, ao completar 10 anos de existência, em 2013, o PBF tinha um gasto anual de cerca de 0,5% do Produto Interno Bruto brasileiro e atendia aproximadamente 13,8 milhões de famílias em todo o país, ou seja, cerca de ¼ da população brasileira.
A dimensão dessa realidade nos força a questionar se essa é uma política que ajuda a dar autonomia aos beneficiários do PBF e, desta maneira, efetivamente enfrenta a pobreza em todas as suas dimensões, fortalecendo o processo emancipatório do País.
Os estudos realizados e os dados apresentados, em princípio, apontam para uma leitura positiva do PBF no sentido questionado. Algumas informações corroboram a possibilidade desse entendimento, tais como: (i) O PBF é um programa que se articula com ações e projetos de naturezas distintas que visam mudanças estruturais na condição de vida e na forma de produção e distribuição de riqueza do País; (ii) os dados apresentados demonstram avanços importantes não só em relação ao mapa da fome, mas também na melhoria de indicadores na área de educação e saúde, que são estratégicas na aquisição de melhores condições de vida e na ruptura do ciclo da pobreza; (iii) o PBF é um dos programas que se articula com o direito humano a uma alimentação adequada e ao Plano de Segurança Alimentar e Nutricional, o que encampa um sentido de direito ao benefício concedido; e (iv) enquanto benefício condicionado, o PBF articula um projeto de política pública com a ideia de aquisição de cidadania.
Para além dessas considerações, é importante destacar, uma vez mais, as reflexões desenvolvidas por Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, que avaliam o PBF tendo como base uma concepção pluridimensional da pobreza e o pressuposto de sua superação vinculado à ideia de autonomia e cidadania. Afirmam os autores que o Programa Bolsa Família produz mudanças significativas na vida das pessoas beneficiadas. Uma delas é o início da superação da cultura da resignação, ou seja, da espera resignada pela morte por fome e doenças ligadas à pobreza. As possibilidades morais de libertação da opressão conjugal ainda são muito raras nas regiões pobres e atrasadas do Brasil, em razão dos rígidos controles familiares que atuam sobre as mulheres. É possível antever também potencialidades liberatórias nesse sentido, uma vez que os cartões do PBF são fundamentalmente direcionados às mulheres. O PBF também constituiu a possibilidade de aquisição de crédito para seus beneficiários, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista simbólico. Há, portanto, empoderamento dos beneficiários ao estimular a formação de um vínculo de pertencimento a uma comunidade política e ao favorecer a liberdade de escolha e decisão, atrelada à disposição de algum dinheiro.
A partir dessas observações podemos reconhecer, como fizeram Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, que o PBF desenvolve uma política de enfrentamento da pobreza também em suas dimensões morais, na medida em que possibilita o fortalecimento da autonomia e da cidadania de seus beneficiários.
IV. IMPACTOS DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA NO DIREITO À ALIMENTAÇÃO E A QUESTÃO DA PROGRESSIVIDADE
De acordo com relatório do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE de 2008, o dinheiro do PBF, na época, era gasto principalmente com alimentação, sendo que, quanto mais pobre a família, maior era a proporção da renda gasta com alimentação.
No entanto, como relatado por Rosângela Minardi Mitre Cotta e Juliana Costa Machado, ao fazerem a revisão crítica da literatura sobre o PBF e a segurança alimentar e nutricional no Brasil, o Programa “afeta significativamente apenas os domicílios em situação de insegurança alimentar leve, elevando em 11% as chances de esse grupo tornar-se seguro, mas sem resultados estatisticamente significativos no caso dos beneficiários em condições de insegurança alimentar moderada e grave”.
Por outro lado, de forma geral, o recebimento do benefício do Bolsa Família, como já apontado, favorece o aumento e variedade dos ,alimentos ingerido pelas famílias. Entretanto, deve-se destacar que alimentos de maior densidade calórica e menor valor nutritivo são mais consumidos, o que favorece a prevalência de excesso de peso e obesidade e de doenças associadas a dietas com alta densidade energética.
Estas foram as conclusões das referidas autoras:
o PBF pode auxiliar na promoção da segurança alimentar e nutricional das famílias beneficiárias, ao propiciar às populações em vulnerabilidade social maior capacidade de acesso aos alimentos. Por outro lado, constatou-se um aumento do consumo de alimentos de maior densidade calórica e baixo valor nutritivo. Essa mudança nos hábitos alimentares é um fator de risco para o desenvolvimento do sobrepeso, obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis.
Mas, não há dúvida que o “PBF tem um importante papel no consumo alimentar das famílias” (COTTA; MACHADO, 2013, p. 59). Em suma, não há como negar que a transferência direta e condicionada de renda por meio do Programa Bolsa Família teve, portanto, um relevante papel na garantia do direito social à alimentação.
A questão, agora, é saber qual o impacto jurídico disso. E a resposta começa pela análise dos tratados internacionais firmados pelo Brasil.
O já referido Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotado pela ONU em 1966 e ratificado pelo Brasil em 1992, que consagra o direito humano à alimentação, também prevê no art. 2.1 que:
[…] cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas.
A ideia de progressividade e, via de consequência, de não regressividade dos direitos sociais também está consagrada no art. 26 do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), celebrado em 1969 e ratificado pelo Brasil também em 1992. O mesmo se dá no Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais (Protocolo de San Salvador), assinado em 1988 e promulgado pelo Brasil em 1999.
Isso significa que os direitos sociais devem ser gradualmente implantados e não podem sofrer retrocesso. Há, portanto, uma obrigação estatal de melhorar as condições de gozo e exercício dos direitos sociais. E, se o Estado assume essa obrigação, há, obviamente, a proibição de reduzir os níveis de proteção desses direitos ou de revogá-los, tendo em vista os princípios da igualdade, da segurança e da proteção da confiança. Essas são as ideias de Cristina Queiroz:
[…] a “proibição do retrocesso social” determina, de um lado, que uma vez consagradas legalmente as ‘prestações sociais’, o legislador não pode depois eliminá-las sem alternativas ou compensações. Uma vez dimanada pelo Estado a legislação concretizadora do direito fundamental social, que se apresenta face a esse direito como uma ‘lei de proteção’ (Schutzgesetz), a ação do Estado, que se consubstanciava num ‘dever de legislar’, transforma-se num dever mais abrangente: o de não eliminar ou revogar essa lei
Portanto, a partir do momento em que o Estado brasileiro consagrou legalmente o direito à alimentação por meio da transferência direta e condicionada de renda, ele não pode eliminá-lo sem alternativas ou compensações. É claro que haverá a redução do Programa Bolsa Família na medida em que seus beneficiários passem a, por exemplo, ter um emprego digno que lhes confira renda superior à prevista na lei que estabelece o benefício social. Mas não se pode admitir que o Estado simplesmente revogue a lei em questão sem uma alternativa ou compensação.
Contudo, é importante atentar para os riscos de conferir um caráter absoluto à proibição do retrocesso. Isso poderia esvaziar a atuação dos órgãos do Estado, principalmente o Legislador, quando da regulamentação de direitos previstos na Constituição ou em tratados internacionais. Ademais, a infinita progressividade poderia trazer consigo o risco de ruptura, pois o acúmulo gradual e engessado de direitos tenderia a uma situação insustentável, principalmente do ponto de vista econômico.
Victor Abramovich e Christian Curtis apontam, então, uma solução:
Estado só pode justificar a regressividade de uma medida demonstrando:
que a legislação que propõe, apesar de implicar retrocesso em algum direito, implica um avanço tendo em conta a totalidade dos direitos previstos no Pacto, e b) que empregou todos os recursos de que dispõe e que, ainda assim, precisa se valer dela para proteger os demais direitos do Pacto.
Enfim, o caráter regressivo da norma leva à presunção de ilegitimidade da medida adotada pelo Estado. E tal ilegitimidade só pode ser afastada com a demonstração das duas situações indicadas acima.
V. CONCLUSÃO
São evidentes os avanços na garantia do direito à alimentação por meio da transferência direta e condicionada de renda levada a efeito pelo PBF. Mas ao menos dois importantes problemas devem ser enfrentados: a) é preciso avançar para atingir os domicílios que convivem com a insegurança alimentar moderada e grave, visto que o PBF enfrenta, de forma mais significativa, a insegurança alimentar leve; e b) a ampliação do acesso à alimentação levou parte dos beneficiários do PBF a consumir alimentos mais calóricos e menos nutritivos, gerando excesso de peso e obesidade e, via de consequência, aumentando o risco de doenças crônicas não transmissíveis, como a hipertensão arterial e a diabetes.
Tendo em vista as previsões normativas que exigem a progressividade dos direitos sociais, incrementar o PBF para superar os referidos problemas significa cumprir as determinações previstas na Constituição e nos tratados internacionais.
Dessa maneira, importa destacar a ampliação do PBF para atingir os domicílios com severa insegurança alimentar, bem como o monitoramento nutricional e o desenvolvimento de programas educacionais que favoreçam um consumo consciente e saudável, são medidas obrigatórias para o bom desenvolvimento do programa em respeito ao conceito de um direito humano a uma alimentação adequada.
Vale lembrar, ainda, que o aporte regular de recursos pode propiciar um planejamento de gastos e, a partir de uma melhor educação nutricional, modificar o padrão de consumo alimentar.
Por outro lado, há a preocupação com o futuro das conquistas sociais quando nos deparamos com agudas crises econômicas, como a que o Brasil vem enfrentando desde, pelo menos, o início de 2015. Situações como essas poderiam justificar a extinção do Programa Bolsa Família? Como afirmamos, a cessação dos benefícios sociais teria uma presunção de ilegitimidade que, para ser superada, exigiria um ônus ao Estado, que deveria demonstrar a aplicação de todos os recursos disponíveis e, ainda assim, não poderia manter o programa sem prejuízo dos outros direitos sociais previstos na Constituição e nos tratados internacionais.
Não parece tarefa fácil se pensarmos que o PBF vem trazendo significativos benefícios a uma parcela expressiva da população brasileira a um custo de 0,5% do Produto Interno Bruto.
Para aprofundar-se, recomendamos: Constitucionalismo transformador, inclusão e direitos sociais (2019)