O objeto de estudo é verificar qual é o rigor necessário para aceitar como provadas as proposições fáticas, para fins de decretação da prisão preventiva. Para essa empreitada, será preciso apresentar alguns conceitos aderentes à matéria. Estabelecer padrões de suficiência para considerar um fato juridicamente provado é a mola propulsora de um sistema de controle de arbitrariedades.
Indubitavelmente, o padrão de exigência a ser atingido, o que se denomina standard de prova, distingue-se no transcurso do processo. Relaciona-se com o momento procedimental em que é necessário classificar os fatos probatórios. Extrai-se, então, que não é exigível o mesmo grau de suficiência probatória para o recebimento da ação penal e para a prolação de uma sentença, por exemplo. O mesmo padrão de suficiência probatória não serve para receber a denúncia e decretar a prisão provisória. Ainda, é necessário um standard de prova para definir quais elementos de prova serão permitidos no processoJordi Ferrer Beltrán defende que há três momentos da atividade probatória: 1) a conformação do conjunto de elementos de juízo; 2) a valoração desses elementos; 3) a adoção de uma sentença. In BELTRÁN, Jordi Ferrer. La valoración racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007..
Não há maiores dificuldades dogmáticas em predizer que há graus diferentes para considerar verdadeira a hipótese fática acerca de um fato probatório, vale dizer, a verificação acerca da ocorrência de um fato que tem relevância probatória deve apresentar correlação verificável entre o fato objeto de prova e a hipótese probatória. JordiIdem, pp. 254 assim define:
“[…] o grau de probabilidade que estamos dispostos para considerar provada a hipótese, é dizer, que determine qual grau de apoio nos parece suficiente para aceitar como verdadeira a hipótese fática em questão”.
A probabilidade, todavia, não se expressa em valores numéricos, mas a partir de um sistema de verificação racional e lógico, autenticado pela experiência comum, sendo necessário que a hipótese probatória derrote aquelas que são contraditórias, ou que levam a outra conclusão.
Esclarecidos os pontos iniciais, é possível deduzir um argumento propositivo: considera-se provadaMatida, Janaína Roland; Herdy, Rachel. As inferências probatórias: compromissos epistêmicos, normativos e interpretativos. In: CUNHA, José Eduardo (org.). Epistemologias críticas do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 209-239 a hipótese fática adotada em juízo que derrota hipóteses contrapostas, cuja fiabilidade das regras inferenciais foi verificada, ou seja, foram submetidas aos filtros de controle epistêmico e normativo e de interpretação, e expressam um grau de corroboração suficiente.
Não é só! O grau de apoio à suficiência probatória, para se considerar verdadeira a hipótese fática, expressa o melhor raciocínio, aquele que possui as melhores certificações racionalizáveis, sejam elas de índole lógica, ou baseadas na experiência comum e na ciência. O grau de apoio, portanto, ilustra o melhor parâmetroOs professores Janaina Matida e Alexandre Morais da Rosa explicam o standard de prova como sendo um sarrafo do salto em varas. Texto disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-20/limite-penal-entender-standards-probatorios-partir-salto-vara. Acessado em 14.04.2020 disponível. Trata-se da avaliação de conformidade dos metadados probatórios aportados no processo que legitimam a decisão acerca da ocorrência da hipótese fática, ou seja, que concede certificado de correlação suficiente entre a realidade e o enunciado “está provado que”. Essa avaliação pressupõe um quantum, um pacote de inferências qualificadas por garantias epistêmicas ou presunções legais, que deve ser alcançado, o que nomearei de padrão de conformidade.
O grau de suficiência probatória tampouco é infalível. Ao contrário, a atividade probatória se dá em um ambiente de incerteza, dado as dificuldades e barreiras do conhecimento sobre os fatos passados.
É preciso alertar, todavia, que a inexistência de argumentos probatórios contrapostos não autentica automaticamente o grau de exigência. Da mesma forma, a superação de outras hipóteses não é o único método adequado, não é um ranking organizado por pontuação, mas um método de averiguação de conformidade. Portanto, satisfeito os critérios exigidos, tem-se uma avaliação da conformidade da hipótese fática.
A classificação qualitativa do standard de prova, portanto, é avalizada por modelos de certificação que fixam o ponto ótimo de corroboração, responsável por rebaixar argumentos que não atingiram o parâmetro de suficiência exigido.
Esse modelo pressupõe a validação de argumentos ou da cadeia de argumentos responsivos, baseados em regras lógicas, racionalizáveis, científicas e que representam validamente conclusões intersubjetivasLagier, Daniel González. Quaestio Facti: ensayos sobre prueba, causalidad y acción. 1 ed. Coyoacán: Editorial Fontamara, 2013, pp. 28, vale dizer, que não apelam a parâmetros mentais subjetivos e experiências individuais, mas aqueles racionalizáveis, resultado de uma conjugação de fatores culturais e sociais, delimitados um período histórico, que são seguramente aceitos pela comunidade.
Ainda, devem-se respeitar as presunções jurídicas, ou seja, as normas subordinadas à arquitetura jurídica que têm a função de conectar e dar sustentação as vigas essenciais que justificam e legitimam o ordenamento jurídico.
Em relevo, o standard deve superar a imprecisão linguística. A questão cerne: é possível estabelecer um padrão de otimização probatória capaz de expressar regras objetivas?
Visando superar esse desafio, ao máximo possível, JordiIdem 2, pp. 257 sugere a divisão em duas classes de exigências para formular um standard de prova: i) os requisitos metodológicos; ii) os fundamentos do nível de exigência.
O primeiro requisito, de classe metodológica, por sua vez é dividido em três subclasses: i) a detenção da capacidade justificativa do acervo probatório, quanto aos graus de satisfação que estabelece com as conclusões fáticas; ii) o compromisso de estabelecer um umbral mais preciso possível a partir do qual se poderá deduzir que a hipótese está suficientemente corroborada; iii) estabelecer os critérios qualitativos da prova.
Já o nível de suficiência deve ter em conta que a função do standard de prova é diminuir o risco de haver a condenação de inocentes ou a absolvição de culpados, portanto, o risco da distribuição de erros, ainda que o pêndulo deva favorecer posições procedimentais que viabilizem mais absolvições de culpados que condenação de inocentes, dado o alto custo social dessa última.
Há cinco propriedades necessárias para estabelecer o nível de suficiência probatória, segundo JordiIdem, pp. 262: i) a definição da gravidade da ocorrência de erro em caso de condenações de inocentes, com a devida observância do bem jurídico afetado ou a gravidade da sanção, por exemplo, a liberdade ou o patrimônio; ii) definir o custo social das absolvições falsas; iii) considerar as dificuldades probatórias relativas ao caso específico, considerando a capacidade probatória das partes; iv) considerar conjuntamente as diferentes classes de distribuição de erros, por exemplo, as regras de ônus probatório e as presunções normativas, visando equalizar eventuais vantagens probatórias; v) definir os momentos probatórios para aplicação dos standards.
A aplicação de standards de prova para decretação de prisões provisória, a partir da Lei 13.964
Estabelecidas as premissas conceituais, é correto defender a necessidade de estabelecer graus de suficiência probatória exigentes para a decretação de prisão cautelar, notadamente excepcionais, o que se justifica pela maior afetação que as decisões de prisão promovem na esfera de direitos individuais.
Jordi Ferrer BeltránBeltrán, Jordi Ferrer. Prueba y racionalidad en las decisiones judiciales. 1 ed. Valparaíso: Editora Prolibros, 2018, pp. 236. Tradução livre esclarece os requisitos, respeitando acordos internacionais de direitos humanos, que devem ser observados para a decretação de prisões provisórias:
“os elementos de juízo (provas) que apoiam tal acusação devem ser suficientemente consistentes para considerar baixa a probabilidade de que o acusado seja absolvido e, portanto, resulte injustificada desde um ponto de vista material a medida cautelar […], a existência de um grave risco processual devem ter um alto grau de corroboração”.
Outra questão a ser enfrentada, todavia, não pertence propriamente à regência dos standards de provas, mas o ônus probatório, ou como prefere Jordi: quem perde se a hipótese probatória não for provada? Admitindo que a prisão cautelar ocorre sem o aporte de provas pela defesa.
De antemão, é razoável admitir a ideia de que um standard de provas para decretação de prisões cautelares sofrerá necessariamente de inanição se não considerarmos a obrigação de se admitir todas as proposições fáticas, inculpatórias ou exculpatórias. Assim sendo, há razões dogmáticas para defender a permissão de que sejam aportadas proposições probatórias também pela defesa.
A questão chave e que parece clara é que o domínio único da capacidade probatória pela acusação faz padecer o standard de suficiência se não atingirmos as classes metodológicas e a definição dos níveis de exigência, nos termos propostos por Jordi Ferrer Beltrán. Há, inclusive, previsão normativa que sustente essa asserção, o art. 3-B, inciso VI, do Código Processual Penal Brasileiro (CPP), acrescido ao Código Processual Penal pela Lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019.
O que falta é estabelecer o momento de aporte de proposições probatórias exculpatórias, nas prisões provisórias. Um bom guia parece ser o art. 310 do CPP, com a condição de ser aplicável a todas as prisões cautelares, salvo requerimento da defesa requerendo prorrogação, dadas as dificuldades de operar a colheita de provas defensivas. A norma estipula o prazo de 24 horas após a decisão judicial.
Parece-nos, portanto, equivocado o enunciado do art. 3-B, que trata das funções do juiz de garantias, dado que os dois polos processuais devem ter capacidade equivalentes de produção probatória, cabendo às regras do ônus da prova favorecer indeferimentos das prisõesO termo absolvição foi utilizado para favorecer a conexão entre a distribuição de riscos de erros no processo penal. Todavia, o mesmo conceito é aplicável à decisão de decretação ou não de prisão provisória., dados os altos custos sociais de prender.
Outras normas parecem complementar as expectativas de definição de standard probatório, são aquelas relativas à cadeia de custódia, normas que disciplinam o manejo da prova e sua autenticidade, contidas nos artigos. 158 e seguintes do CPP, acrescidos pela Lei 13.964/2019. Em geral, estabelece um padrão orientador de boas práticas probatórias.
A cadeia de custodia nos termos aduzidos perfaz duas exigências mencionadas por Jordi Ferrer, ao disciplinar procedimentos capazes de aportar graus de conformidade ao standard de prova, são elas: as dificuldades de tornar a atividade probatória equitativa e controlável; e considerar conjuntamente as diferentes classes de distribuição de erros.
A questão redunda em não poder haver a superação do grau de exigência para considerar suficiente a decretação da prisão preventiva se as proposições fáticas aportadas não respeitaram as regras da cadeia de custodia. A questão parece criar uma exigência também para provas que são produzidas unilateralmente por coinvestigados colaboradoresSobre o tema, recomenda-se o estudo de Antonio Vieira. Riesgos y controles epistémicos em la delación premiada: aportaciones a partir de la experiencia em Brasil. In Del Derecho al Razonamiento Probatorio. Madrid: Marcial Pons, 2020..
Já o art. 312, caput, que trata especificamente da prisão preventiva, reprisa a imprecisão normativa que permeia historicamente a matéria e as outorgas de elementos conducentes que estão á margem da objetivação dos filtros epistêmicos e institucionais. Entretanto, o requisito aderente à conservação da instrução penal, no tocante à preservação das provas, parece conter razões epistêmicas justificáveis, já que há um genuíno interesse de proteger a autenticidade de provas e sua originalidade, ou seja: “que coloquem em perigo o objeto do processo penal no caso concreto”. Todavia, o padrão de suficiência para se considerar provado uma pretensão probatória apta a ensejar uma decretação de prisão provisória deve ser alto e concreto, sob pena de vulnerar direitos fundamentais utilizando-se meras presunções subjetivas, o que reafirma o caráter excepcional da medida.
Todavia, há no §2º do art. 312 inovações: i) a existência concreta de fatos novos; ii) a concreção de fatos contemporâneos ensejadores dos requisitos da prisão preventiva. Portanto, há dois novos parâmetros de conformidade a serem observados. Os fatos novos devem ser desconhecidos pelas partes para superar o grau de suficiência probatória, ainda, serem contemporâneos à decretação da medida.
O padrão de revisão em até noventa dias para averiguar se estão presentes os requisitos para a manutenção da prisão, contido no art. 316, parágrafo único, é condizente com o padrão de exigência para a decretação, expresso pela contemporaneidade. Ainda, é condizente com os tratados e com a jurisprudênciaVeja-se as decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, casos Mishketkul e Outros c. Russia, 24 de maio de 2007, parágrafo 57; Khodorkovsky vs. Russia, 31 de maio de 2011, parágrafo 186; Sulaoja vs. Estonia, 15 de fevereiro de 2005, parágrafo 64. In Jordi Ferrer Beltrán, Prueba y Racionalidad de las Decisiones Judiciales, 2018. de Tribunais Internacionais de Direitos Humanos.
Conclusão
Ainda que longe da tarefa de formular standards de provas objetivos, as diversas alterações promovidas pela Lei 13.964/2019 deram um salto qualitativo em prover componentes necessários para formulá-lo, restando ausente a descrição de um enunciado diretivo e pecando, por vezes, pela imprecisão linguística e normativa. Parece-me um passo tímido, mas necessário em qualificar as proposições probatórias que sustentam decisões judiciais que afetam, sobremaneira, direitos fundamentais.