Resumo
O presente texto aponta questões polêmicas causadas pelo laconismo do legislador envolvendo a figura dos entes despersonalizados. Indica os contornos conceituais desses sujeitos de direito e cuida de implicações práticas envolvendo alguns exemplos deles, como os fundos e o condomínio edilício. Aponta ainda o cuidado para não confundir os conceitos tributários de CPF e CNPJ com os de sujeitos de direito e aponta exemplo prático disso tratando de caso de estabelecimentos comerciais à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Palavras-Chave: Entes despersonalizados. Sujeito de Direito. Condomínio. Fundos.
1. Objeto deste estudo e síntese do que se defenderá
Este artigo destina-se a apontar a importância prática do conceito de ente despersonalizado e a tratar de questões polêmicas decorrentes da falta de clareza da legislação. Ele será estruturado da seguinte forma a partir do desenvolvimento das ideias a seguir.
Entes despersonalizados são sujeitos de direito que, embora não possuam personalidade jurídica, podem ter direitos e deveres. Para eles, aplica-se a legalidade estrita: tudo é proibido, salvo lei, costumes ou princípios jurídicos (capítulo 2).
Não se pode confundir o conceito de CPF ou CNPJ com o de pessoas naturais e pessoas jurídicas. A confusão feita talvez esteja na raiz da orientação do STJ no sentido de que cada estabelecimento de uma pessoa jurídica é parte legítima para pleitear a repetição de indébito referente a tributos com fatos geradores vinculados ao estabelecimento. Essa orientação soa-nos indevida e contraditória (capítulos 3 e 4).
Há várias espécies de fundos. Alguns são mera segregação contábil e, por isso, não podem ser parte em contratos, em ações judiciais nem em outros atos jurídicos, ao contrário do que sucede com os fundos que se caracterizam como entes despersonalizados ou pessoa jurídica. É preciso atentar para a lei de cada fundo a fim de lhe definir a natureza jurídica. Os fundos de investimento, previstos nos arts. 1.368-C ao 1.368-F do Código Civil (fruto da Lei da Liberdade Econômica), são entes despersonalizados (capítulo 5).
Condomínio edilício e as figuras condominiais parelhas (condomínio de lotes, urbano simples e multiproprietário) é ente despersonalizado (STJ) e, por isso, sujeita-se à legalidade estrita (capítulo 6.1.). Por isso, podem adquirir imóveis apenas em situações excepcionais, como nos casos de adjudicação da unidade do condômino inadimplente ou de aquisição de imóvel contíguo destinados à ampliação da área de uso do condomínio, exigido, porém, aprovação unânime dos presentes na Assembleia Geral (capítulo 6.2.).
Condôminos podem, pessoal e subsidiariamente, responder por dívidas do condomínio edilício, sem necessidade de invocação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Assim, suas unidades autônomas poderiam ser penhoradas e, nesse caso, seria descabido invocar a impenhorabilidade do bem de família por se tratar de dívida relativa ao dever de contribuir para o condomínio (capítulo 6.4.).
Dessa forma, defendemos neste trabalho que os entes despersonalizados, com inclusão do condomínio edilício, podem sofrer dano moral excepcionalmente, sempre que houver prejuízo efetivo ou potencial o exercício de suas atividades. O STJ tem poucos julgados, mas, até o momento, tende a entender pelo descabimento de dano moral contra o condomínio edilício por falta de personalidade jurídica. Temos que essa orientação deve mudar quando sobrevierem outros casos concretos, como o de inscrição indevida do nome do condomínio edilício em cadastro de inadimplentes (capítulo 7).
Por fim, no último capítulo argumenta-se que o legislador é lacônico e até omisso ao tratar dos entes despersonalizados, o que é inadequado por criar várias polêmicas (capítulo 8).
2. Sujeito de Direito: entes personalizado e despersonalizado
Sujeito de direito opõe-se ao conceito de objeto de direito: aquele representa quem titulariza um objeto. Sujeito de direito é quem pode titularizar objetos.
Há duas espécies de sujeitos de direitos: os entes personalizados, assim entendidos os que possuem personalidade jurídica (pessoas naturais e pessoas jurídicas), e os entes despersonalizados, assim designados quem, embora não seja pessoa e, portanto, não tenha personalidade jurídica, podem ter direitos e deveres. Como lembra Flávio Tartuce – um dos maiores civilistas brasileiros –, ente despersonalizado também pode ser designado de “grupos despersonalizados (também grupos despersonificados)” (Tartuce, 2020, pp. 329-330).
A situação de ente despersonalizado é excepcional e, em princípio, depende de previsão no ordenamento (lei ou, eventualmente, princípios).
O espólio é exemplo clássico, pois representa o conjunto de bens deixados por uma pessoa falecida e, embora não seja uma pessoa, pode ter direitos e deveres. Contra o espólio podem ser dirigidas ações judiciais, por exemplo, para cobrar dívidas deixadas pelo finado. O inventariante é o “administrador” do espólio.
Outro exemplo é a massa falida, que é “administrada” pelo síndico e que não se confunde com a sociedade empresária cuja falência foi decretada. A falência não extingue a sociedade, mas apenas reúne o seu patrimônio sob a forma de um ente despersonalizado designado de massa falida para efeito de repartição do patrimônio entre os credores na forma da lei falimentar.
Há outros entes despersonalizados, como o fundo de investimento imobiliário (art. 1º, Lei 8.668/93), o grupo de consórcio (art. 3º, Lei 11.795/2008) e os fundos de investimento (art. 1.368-C, Código Civil).
Uma das principais relevâncias práticas dessa distinção é a de que, para os entes despersonalizados, o princípio da legalidade deve ser mais restrito: tudo lhe é proibido, salvo o permitido em lei, nos costumes ou em princípios jurídicos (princípio da legalidade estrita). É diferente do que sucede aos entes personalizados, que, por terem personalidade jurídica, tudo podem fazer, salvo o vedado em lei (princípio da legalidade ampla). Assim, por exemplo, se um espólio contratar um “pacote de viagem” em uma agência de turismo, esse contrato é nulo por escapar ao que a lei e o costume admitem para o espólio. Os entes despersonalizados possuem uma capacidade de direito limitada a atividades estritamente vinculadas à sua natureza e à sua finalidade. Eles jamais poderiam “adquirir patrimônio que não tivesse uma íntima relação com a sua atividade”, como afirma o notável civilista brasiliense Daniel Carnacchioni (2013, p. 377).
3. Pessoa vs CPF e CNPJ
Não se pode confundir o conceito civil de pessoas (naturais e jurídicas) com os conceitos fiscais de CPF (Cadastro de Pessoas Físicas) e CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas). Estes últimos são números cadastrais destinados a individualizar todos os potenciais contribuintes e – embora o CPF geralmente abranja pessoas naturais e o CNPJ, pessoas jurídicas – o fato é que há diversas exceções. O CNPJ é destinado a contribuintes que, na sua atividade, vinculam-se a fatos geradores típicos de pessoas jurídicas (como ISS, ICMS etc.), razão por que há pessoas naturais, entes despersonalizados e, até mesmo, unidades integrantes de pessoas jurídicas com CNPJ.
O empresário individual, previsto no art. 966 do CC, é uma pessoa natural que exerce atividade empresarial e, por isso, além do CPF, possui um CNPJ para que, sob este último número cadastral, sejam vinculados os tributos gerados por sua atividade empresarial.
O grupo de consórcio, embora seja um ente despersonalizado, deve ter CNPJ.
Igualmente os estabelecimentos de uma sociedade (popularmente, as várias filiais de uma pessoa jurídica) e os órgãos públicos, embora sejam meras unidades de uma pessoa jurídica, devem ter CNPJ (Instrução Normativa RFB nº 1.634/2016).
Como se vê, o fato de um ente ter CNPJ não significa que ele é pessoa jurídica. Daí decorrem consequências práticas.
Por exemplo, ao fazer um pedido de penhora de bens no nome de um empresário individual, convém que o credor informe ao juiz o CPF e o CNPJ do devedor para que a busca de contas bancárias seja mais completa.
Quem dispõe sobre personalidade jurídica, direitos da personalidade, titularidade de direitos e deveres é o Direito Civil, e não o Direito Tributário, de maneira que as discussões relativas a bens penhoráveis, legitimidade processual e congêneres devem pautar-se no Direito Civil.
Não se nega que, com o CPF e o CNPJ, a identificação das pessoas é mais precisa por se livrar do risco de homonímia. O próprio CPC já exige a indicação do CPF e do CNPJ do réu como requisito da inicial (art. 319, II, CPC). Isso, no entanto, não implica que quem tenha CNPJ necessariamente seja pessoa jurídica.
4. Anomalias: caso da repetição de indébito tributário
Passamos a tratar de um assunto pacificado na jurisprudência do STJ e, em nome da estabilidade da jurisprudência – um dos pilares do Novo Código de Processo Civil (art. 926) –, entendemos que ela deve se manter como está até que haja eventual lei em sentido em contrário. Todavia, apesar de entendermos pela manutenção da orientação jurisprudencial só por conta da necessidade de uma jurisprudência estável, tomamos a liberdade de discutir o seu mérito para expor uma anomalia que a falta de clareza legislativa acerca dos entes despersonalizados causou.
O STJ é pacífico em entender que, no caso de sociedade com vários estabelecimentos, cada estabelecimento teria legitimidade processual própria para pleitear a devolução dos tributos que foram indevidamente cobrados com base em fatos geradores nascidos no respectivo estabelecimento.
Convém esclarecer que cada estabelecimento possui um CNPJ próprio (embora o nome empresarial seja o mesmo) para controle dos tributos gerados em cada um deles.
Se, por exemplo, uma sociedade chamada Tudo Elétrico S/A possui mil estabelecimentos (“lojas”) espalhados pelo país, cada um dos estabelecimentos possuirá um CNPJ próprio (geralmente muda-se apenas os últimos números do CNPJ). À luz do entendimento do STJ, se a União instituísse uma taxa inconstitucional cujo fato gerador fosse a venda de uma mercadoria, cada estabelecimento, indicando o próprio CNPJ, deveria propor uma ação distinta (admitida a cumulação por meio de um litisconsórcio), pedindo a devolução das taxas indevidamente cobradas. O curioso é que, nesse exemplo, haveria 1.000 ações propostas por estabelecimentos que possuem o mesmo nome empresarial (“Tudo Elétrico S/A) e diferentes CNPJ.
Se o Tudo Elétrico S/A propusesse ação indicando apenas um CNPJ, ele seria tido por parte ilegítima para pedir a devolução dos tributos gerados da atividade dos demais estabelecimentos. A ação seria extinta sem resolução do mérito, o que poderia gerar prejuízos incalculáveis diante da impossibilidade de “consertar” a legitimidade processual mediante a propositura de nova ação em razão da provável consumação do prazo prescricional para a repetição de indébitos tributários (o prazo costuma ser de 5 anos).
O fundamento dessa orientação do STJ é o princípio da autonomia do estabelecimento, extraído do art. 127, II, do CTN (STJ, AgRg no REsp 1488209/RS, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins, DJe 20/02/2015).
O maior paradoxo é que, segundo o mesmo STJ, se o Fisco for propor uma ação contra a sociedade empresária cobrando tributos gerados por um estabelecimento, poderá ser penhorado qualquer bem da sociedade, ainda que não vinculado ao estabelecimento gerador dos tributos. O fundamento disso é o de que a titularidade de bens e de dívidas é da pessoa jurídica, e não de cada estabelecimento, conforme regras de Direito Civil (STJ, REsp 1355812/RS, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell, DJe 31/05/2013).
Temos, rogando-se as devidas vênias, por absolutamente injustificável a contraditória posição do STJ, que se vale de dois pesos e duas medidas na discussão acerca da autonomia patrimonial (direitos e deveres) da pessoa jurídica e dos estabelecimentos.
O princípio da autonomia do estabelecimento só deve ser aplicado apenas para fins de controle tributário e de administração tributária, e não para alterar as regras civis sobre titularidade de direitos e deveres.
Os estabelecimentos são entes autônomos apenas para efeito de controle fiscal, e não para efeito civil. O Direito Civil é quem dá essas regras, de maneira que é absolutamente injustificável conferir legitimidade ativa isolada e exclusiva para estabelecimento de uma sociedade, pois quem tem personalidade jurídica (quem tem direitos e deveres e quem pode figurar numa ação) é a pessoa jurídica, e não os seus estabelecimentos, que são meros membros da pessoa jurídica (como os braços e os pés o são em relação à pessoa natural).
5. Fundos: natureza jurídica
Há inúmeras espécies de fundos no nosso ordenamento. O problema é definir a natureza jurídica de cada um deles. Alguns podem ser uma mera segregação contábil; outros podem ser entes despersonalizados; outros, pessoa jurídica. O imbróglio é grande pelo fato de o legislador nem sempre se preocupar em indicar expressamente a natureza jurídica do fundo.
Muitos fundos valem-se da figura do patrimônio de afetação para segregar um patrimônio de uma pessoa jurídica (geralmente a incumbida da administração do fundo) a fim de compor um ente despersonalizado. É o que ocorre com o fundo de investimento imobiliário (Lei 8.668/1993) e o grupo de consórcio (art. 3º, Lei 11.795/2008).
Isso também ocorre com diversos fundos que são criados para operacionalizar interesses públicos, a exemplo do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR (Lei 10.188/2001), Fundo Garantidor de Parcerias – FGP (art. 16, Lei 11.079/2004), Fundo da Marinha Mercante – FMM (art. 22, Lei 10.893/2004), Fundo de Catástrofe (art. 2º, § 1º, Lei Complementar nº 137/2010), Fundos Garantidores de Projetos de Infraestrutura de Grande Vulto – CPFGIE (art. 33, Lei 12.712/2012, e Decreto nº 8.188/2014), Fundo de Garantia à Exportação – FGE (art. 1º, Lei 9.818/1999), Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias (art. 14, Lei 13.334/2016) e Fundo de Defesa de Direitos Difusos – FDD (arts. 13 e 20 da Lei 7.347/1985 e Decreto nº 1.306/1994) e o Fundo Patrimonial (Lei 13.800, de 4 de janeiro de 2019).
É preciso verificar a lei de cada fundo para lhe definir a natureza jurídica, que pode oscilar de uma mera segregação patrimonial de uma pessoa jurídica (como o FAR e o FGE, que só têm fins contábeis) até a formação de um ente despersonalizado (como o FGP e o FAEP) ou, até mesmo, de uma pessoa jurídica (como uma fundação).
No caso dos fundos de investimento, eles são entes despersonalizados, são considerados condomínios de natureza especial e estão regidos genericamente pelos arts. 1.368-C ao 1.368-F do CC, dispositivos que foram acrescidos pela Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019). Alguns fundos de investimento possuem leis específicas, como o fundo de investimento imobiliário (Lei 8.668/1993).
Se o fundo constituir um ente despersonalizado ou uma pessoa jurídica, é ele quem deve figurar como parte em contratos e em outros atos jurídicos, ainda que sob a representação de alguma pessoa jurídica que o administre. Afinal, ele tem aptidão para ter direitos e deveres por força de lei, apesar de não ter personalidade jurídicaO fato de não ter personalidade jurídica limita a sua liberdade: só lhe é permitido praticar atos que a lei ou os costumes autorizam (legalidade estrita), ao contrário da legalidade ampla estendida às pessoas naturais e jurídicas..
Se, porém, ele for uma mera segregação patrimonial, é a pessoa jurídica titular dos bens que praticará atos jurídicos. É o nome dela que figurará em ações judiciais e em contratos, por exemplo.
O tema, porém, é controverso e há serventias notariais e de registro público que se recusam a colocar o nome do fundo que não seja pessoa jurídica como parte em atos jurídicos, mesmo quando eles são entes despersonalizados, o que nos parece um equívoco.
6. Condomínio edilício, de lotes, urbano simples e em multipropriedade
6.1. Natureza jurídica
Há controvérsias acerca da natureza jurídica do condomínio edilício. Forte corrente doutrinária tem-no como pessoa jurídica, com apoio do enunciado nº 90/JDC (“Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício”). Essa, porém, não é a corrente que prevalece na jurisprudência. O STJ é pacífico em entender pela ausência de personalidade jurídica para o condomínio (STJ, REsp 1736593/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 13/02/2020).
Preferimos seguir a orientação do STJ, pois o rol de pessoas jurídicas está nos arts. 41 ao 44 do CC sem incluir o condomínio edilício. Este, ademais, nasce com o registro no cartório de registro de imóveis, foro inadequado para pessoas jurídicas. Se o edifício ruir plenamente, o condomínio edilício é extinto, o que soa estranho para uma pessoa jurídica (arts. 1.357, CC). Ao nosso aviso, o condomínio edilício é um ente despersonalizado e, como tal, só podem fazer aquilo que a lei, o costume ou os princípios jurídicos admitirem.
Condomínio pode contratar porteiros e celebrar contratos afetos à sua atividade de administração da coisa (ex.: locação de áreas comuns para empresas prestadora de serviços aos condôminos), pois o costume e os princípios gerais de direito credenciam-lhe. Não podem, porém, praticar atos totalmente desconectados de sua atividade por estar sujeito à legalidade estrita própria dos entes despersonalizados.
Tudo quanto é exposto aqui sobre o condomínio edilício também deve se estender para os condomínios de lotes, urbano simples e em multipropriedade, pois essas outras espécies de condomínios seguem, no que couber, as regras de condomínio edilício.
6.2. Aquisição de imóveis pelo condomínio: controvérsia
A lei autoriza o condomínio edilício a, por meio de procedimento de adjudicação, tornar-se proprietário de imóvel de condômino em razão do inadimplemento do preço da construção, conforme art. 63, § 3º, da Lei 4.591/64. Além disso, há a permissão de o condomínio edilício adjudicar a unidade periódica no caso de inadimplência de condômino no regime de multipropriedade (art. 1.358-S, CC).
Esses dispositivos (art. 63, § 3º, Lei 4.591/64 e art. 1.358-S, CC) merecem interpretação extensiva para também permitir a aquisição de imóveis pelo condomínio nos seguintes casos: (1) adjudicação da unidade imobiliária do condômino para quitação de contribuições condominiais inadimplidas; (2) aquisição de direito real de terrenos destinados ao aproveitamento do próprio condomínio. A propósito, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) do TJSP caminha nesse sentido, como dá notícia a notável jurista e juíza Tânia Mara Ahualli em sentença que admitiu o registro da compra, por um condomínio, de uma área destinada à ampliação das vagas de garagem (1VRPSP, Processo nº 1116258-77.2017.8.26.0100, Juíza Tânia Mara Ahualli, DJ 23/02/2018).
Fora desses casos, não é viável a aquisição de imóveis pelo condomínio, de modo que o cartório de notas e de imóveis deve negar praticar atos relativos a compra de imóveis fora dos casos supracitados. Não poderia, por exemplo, um condomínio sair a comprar e revender imóveis espalhados pelo País para obter lucro com aluguéis ou com revendas, pois ele não possui personalidade jurídica.
A propósito daquela hipótese de aquisição de imóvel destinado ao aproveitamento do próprio condomínio, temos que a aquisição não precisa ser do direito real de propriedade, mas também pode ser de outros direitos reais. Assim, por exemplo, o condomínio poderia figurar como titular de um direito real de servidão de passagem sobre o imóvel vizinho a fim de facilitar o trânsito de pessoas de seu condomínio. Também seria viável o condomínio comprar um terreno contíguo destinado ao uso comum dos condôminos (ex.: para ser um campo de futebol ou uma área de estacionamento).
Tivemos ciência de um caso em que o incorporador queria oferecer um terreno contíguo em dação em pagamento como forma de saldar dívida sua consistente em não ter concluído a construção e em não ter mobiliado o prédio. Temos que, nesse caso, como o contrato de venda dos imóveis “na planta” é feito com cada condômino, consideramos ser viável que o próprio condomínio figure como adquirente desse terreno dado em pagamento, mas será necessário haver o consentimento expresso de cada um dos condôminos que firmaram o contrato com o incorporador.
Todo esse raciocínio se estende também ao condomínio de lotes, que também é um sujeito de direito despersonalizado ao qual se aplicam, no que couber, as regras de condomínio edilício (art. 1.358-A, § 2º, CC).
O mesmo se dá em relação ao condomínio urbano simples, que também – ao nosso sentir – é ente despersonalizado, pois a ele se aplica, no que couber, as regras de condomínio edilício (art. 61, parágrafo único, CC).
Por fim, a aquisição de imóvel por condomínio depende de aprovação da unanimidade dos condôminos presentes em Assembleia Geral, o que não se confunde com o consentimento de todos os condôminos, tudo por força do § 3º do art. 63 da Lei 4.591/64. Condôminos que faltarem a assembleia não poderão opor-se ao que foi lá deliberado por unanimidade. O Conselho Superior da Magistratura de São Paulo tem igual entendimento para os cartórios de imóveis paulistas (CSM-SP/TJSP, Apelação nº 1024765-14.2015.8.26.0577, Rel. Des. Manoel de Queiroz Pereira Calças, DJe 27/02/2018).
6.3. Usucapião por condomínio edilício
O condomínio edilício pode usucapir bens móveis ou imóveis, pois, embora seja um sujeito de direito despersonalizado, ele pode praticar atos compatíveis com finalidade. Basta que estejam presentes os requisitos do usucapião. No mesmo sentido, embora sob o pressuposto de que o condomínio teria personalidade jurídica (premissa da qual dissentimos, conforme já exposto), é o enunciado nº 596/JDC (“O condomínio edilício pode adquirir imóvel por usucapião”).
Indaga-se: o imóvel usucapido precisa ter conexão com a atividade do condomínio (ex.: um terreno vizinho usado como espaço de lazer dos condôminos)?
Parece-nos que não, pois, do contrário, estaremos a prestigiar o proprietário negligente do bem usucapido. O condomínio pode usucapir imóveis que não possuem conexão com sua atividade. Todavia, o condomínio ficará com limitações de uso em razão das restrições próprias de sua condição de sujeito despersonalizado. Recorde-se que esses entes despersonalizados só podem fazer aquilo que a lei, o costume ou os princípios jurídicos admitirem, de maneira que o condomínio que usucapiu um imóvel distante acabará por aliená-lo a terceiros.
6.4. Responsabilidade subsidiária dos condôminos por dívidas do condomínio perante terceiros, penhorabilidade das unidades autônomas e início da prescrição
Condomínio não tem personalidade jurídica e, portanto, as suas dívidas são também dos condôminos, os quais devem pagar contribuições necessárias a que o condomínio honre os compromissos. Está, pois, implícito no dever do condômino em contribuir para as despesas do condomínio (art. 1.336, I, do CC) a responsabilidade subsidiária de cada condômino pelas dívidas do condomínio, de maneira que, se o condomínio não pagar suas dívidas e se não for encontrado bens penhoráveis em nome do dele, poderá o credor endereçar a cobrança aos responsáveis subsidiários: os condôminos na proporção do respectivo dever de contribuição.
Não há necessidade em invocar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para esse caso, pois o condomínio não tem personalidade jurídica. A responsabilidade subsidiária dos condôminos decorre de seu dever de contribuir para as despesas comuns.
Em razão dessa responsabilidade subsidiária, as unidades autônomas dos condôminos poderão ser penhoradas pelos credores do condomínio. Não poderá o condômino invocar a impenhorabilidade do bem de família, pois se trata de dívida vinculada indiretamente ao seu dever de contribuir com as despesas do condomínio (art. 3º, IV, Lei 8.009/1990). É esse o entendimento do STJ (REsp 1473484/RS, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 23/08/2018).
Entendemos, em razão da subsidiariedade da responsabilidade, a pretensão contra os condôminos por parte dos credores do condomínio só nasce após a frustração da tentativa de penhora de bens deste último, de maneira que somente a partir daí passaria a fluir o prazo prescricional contra os condôminos (art. 189, CC).
7. Dano moral contra entes despersonalizados
Paira discussão acerca do cabimento de dano moral contra entes despersonalizados. Há quem o negue por falta de personalidade jurídica, de modo que só pessoas teriam direitos da personalidade.
É preciso observar o tipo de ente despersonalizado para responder a essa questão. Por exemplo, a solução dada para um condomínio edilício pode não coincidir para um fundo de investimento.
7.1. Caso do condomínio edilício e das figuras parelhas
Em relação ao condomínio edilício e às figuras parelhas de condomínio (o condomínio de lotes, o urbano simples e o multiproprietário), a posição prevalecente é no sentido do descabimento de dano moral não só pela falta de personalidade jurídica, especialmente porque o condomínio é uma massa patrimonial que reúne os diversos condôminos apenas por um vínculo predial, e não por um vínculo de affectio societatis, de maneira que o condomínio não tem honra objetiva. Os condôminos, porém, individualmente, podem reivindicar indenização por dano moral. Em poucas palavras, quem tem honra são os condôminos, e não a massa patrimonial chamada condomínio.
Esse é o entendimento do STJ, que negou a um condomínio edilício (Condomínio Jardim Morumbi de Presidente Prudente) o pedido de indenização por dano moral formulado contra condôminos que haviam celebrado uma impactante festa (com som alto, nudez, intenso fluxo de pessoas e banheiro químico) em desacordo com as normas do condomínio e em desrespeito a uma liminar judicialmente concedida. Nesse caso, cada condômino poderia, individualmente, reivindicar indenização por dano moral, mas não o condomínio edilício (STJ, REsp 1736593/SP, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 13/02/2020).
Há, porém, poucos julgados do STJ, de modo que não se pode afirmar que esse entendimento já está pacificado lá. Aliás, temos que essa orientação deve mudar quando sobrevierem outros casos concretos, como o de inscrição indevida do nome do condomínio edilício em cadastro de inadimplentes
No mesmo sentido, o TJSP negou dano moral ao condomínio por falta de personalidade jurídica e reconheceu que apenas os condôminos poderiam sofrer esse tipo de dano, como no caso de atraso na entrega das obras da área comum (TJSP, Ap. 01313959720098260003/SP, 29ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Hamid Bdine, DJ 21/08/2014) ou de protesto indevido em nome do condomínio (TJSP, Ap. 0063460-49.2009.8.26.0000, 29ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Maria Lúcia Pizzotti, j. 28/4/2014).
Ressalvamos nosso ponto de vista pessoal, firmado no sentido de que o condomínio edilício pode sim sofrer dano moral em alguns casos, conforme exporemos no próximo subcapítulo.
7.2. Caso dos demais entes despersonalizados
Ao nosso sentir, embora todos os entes despersonalizados – com inclusão dos condomínios edilícios – não tenham personalidade jurídica, é-lhes facultado ter direitos e deveres naquilo em que a lei, os costumes e os princípios jurídicos permitirem e aí devem-se incluir, no que couber, os direitos da personalidade, cuja violação caracteriza dano moral No mesmo sentido, em dissensão com o recente entendimento do já citado julgado do STJ, que entendeu que ente despersonalizado não poderia sofrer dano moral, estão os juristas Ana Flumignan, Silvano Flumignan e Wévertton Flumignan (2020)..
Assim, por exemplo, havendo protesto indevido de um fundo de investimento imobiliário, temos que deveria ser caracterizado o dano moral.
De fato, entendemos que os entes despersonalizados também possuem honra objetiva, pois eles também dependem de sua reputação para a prática de alguns atos.
Por exemplo, um fundo de investimento depende de não ter o “nome sujo” para celebrar alguns negócios, de maneira que um protesto indevido contra ele pode frustrar-lhe a realização de alguns negócios.
Se não se admitir o dano moral aí, isso acabaria por inviabilizar a própria responsabilização civil do agressor, pois será pouquíssimo provável que os milhares de quotistas titulares do fundo de investimento proponham ações individuais para pleitear indenização. Recorde-se que, salvo exceções, os fundos de investimento costumam ser titularizados por inúmeros quotistas espalhados pelo país inteiro, os quais compram as quotas por meio de corretoras de valores mobiliários.
O mesmo ocorre em relação ao condomínio edilício, que também depende do “nome limpo” para a celebração de alguns atos, razão por que um protesto indevido contra o condomínio deveria ser admitido como causador de dano moral contra ele.
Há, porém, atos que não atingem a honra objetiva do ente despersonalizado, e sim das pessoas que estejam vinculadas a ele.
Por exemplo, no caso de uma desregrada festa realizada por um condômino, quem sofre dano moral são os demais condôminos, e não o condomínio edilício em si, pois este não terá nenhum razoável prejuízo com esse evento irregular. Por isso, em uma situação como essa, o condomínio edilício não sofre dano moral.
Igualmente, no caso do atraso da entrega das áreas comuns por uma construtora, quem sofre dano moral são os condôminos, que não podem fruir o conforto desse espaço, e não o condomínio edilício, cujas atividades em si não sofrem nenhum razoável prejuízo.
Portanto, preferimos entender que os entes despersonalizados, com inclusão dos condomínios edilícios, podem sofrer dano moral, desde que, no caso concreto, tenham sofrido algum ato que cause razoável prejuízo potencial ao exercício de suas atividades.
8. Conclusão e resumo
O legislador é lacônico ao tratar dos entes despersonalizados, o que gera inúmeras polêmicas doutrinárias e jurisprudenciais, como as já citadas neste texto. O ideal seria que o legislador disciplinasse, com maior clareza, os entes despersonalizados para dissipar esse cenário de insegurança jurídica. De qualquer forma, enquanto esse céu legislativo obscuro reina, expusemos, neste artigo, as soluções que reputamos mais convenientes às diversas polêmicas envolvendo o assunto.
9. Referências bibliográficas
CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de direito civil: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 377.
FLUMIGNAN, Ana Beatriz Ferreira de Lima; FLUMINGAN, Silvano José Gomes; FLUMIGNAN, Wévertton Gabriel Gomes. STJ errou ao excluir dano moral contra condomínios? Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-02/direito-civil-atual-stj-errou-excluir-dano-moral-condominios>. Publicado em 2 de março de 2020.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: lei de introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 329-330.