1) É facultado aos Tribunais de Justiça atribuir às Varas da Infância e da Juventude competência para processar e julgar crimes de natureza sexual praticados contra crianças e adolescentes.
O art. 148 da Lei 8.069/90 dispõe sobre a competência da Justiça da Infância e da Juventude. Entre as situações submetidas expressamente à justiça especializada, não se encontra o julgamento de ações penais por crimes cometidos contra crianças e adolescentes, situações que, em regra, competem à vara criminal comum. Em razão disso, o STJ considerava que a Vara da Infância e da Juventude era incompetente para julgar crimes sexuais cometidos contra menores. Essa orientação, contudo, não prevaleceu no STF, que decidiu ser possível aos Tribunais de Justiça, no âmbito de sua organização e da divisão judiciária nos estados, atribuir tal competência às Varas da Infância e da Juventude:
Habeas corpus. Penal. Processual penal. Lei estadual. Transferência de competência. Delitos sexuais do Código Penal praticados contra crianças e adolescentes. Juizados da Infância e Juventude. Violação do art. 22 da CF/1988 e ofensa aos princípios constitucionais. Não ocorrência. Ordem denegada. I – A lei estadual apontada como inconstitucional conferiu ao Conselho da Magistratura poderes para atribuir aos 1.º e 2.º Juizados da Infância e Juventude, entre outras competências, a de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes, nos exatos limites da atribuição que a Carta Magna confere aos Tribunais. II – Não há violação aos princípios constitucionais da legalidade, do juiz natural e do devido processo legal, visto que a leitura interpretativa do art. 96, I, a, da CF/1988 admite que haja alteração da competência dos órgãos do Poder Judiciário por deliberação dos Tribunais. Precedentes. III – A especialização de varas consiste em alteração de competência territorial em razão da matéria, e não alteração de competência material, regida pelo art. 22 da Constituição Federal. IV – Ordem denegada (HC 113.018/RS, j. 29/10/2013).
Em seguida, o STJ modificou sua orientação:
“É facultado aos Tribunais nacionais atribuir à Justiça da Infância e Juventude, entre outras competências, a de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes” (AgRg no HC 492.073/RO, Quinta Turma, j. 19/09/2019).
“A Sexta Turma desta Corte, ressaltando a necessidade de obediência ao princípio da segurança jurídica, decidiu acompanhar o entendimento assentado nas duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser possível atribuir à Justiça da Infância e Juventude, entre outras competências, a de processar e julgar crimes de natureza sexuais praticados contra crianças e adolescentes” (AgRg no HC 441.298/AC, Sexta Turma, j. 02/10/2018).
2) Em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos.
Embora não se trate de testemunha, o ofendido tem especial relevância na apuração do crime. Por conta disso, o legislador considerou relevante sua oitiva, dedicando-lhe um capítulo próprio na parte concernente à prova, e a jurisprudência tem especial apreço por sua palavra, “devendo seu relato ser apreciado em confronto com os outros elementos probatórios, podendo, então, conforme a natureza do crime, muito contribuir para a convicção do juiz”, como ensina Magalhães Noronha (Curso de direito processual penal, São Paulo: Saraiva, 2002, 28ª. ed., p. 111).
A doutrina mais tradicional sempre recebeu com enormes reservas a palavra do ofendido e, em virtude disso, conferiu-lhe pouco ou mesmo nenhum valor probatório. Isto porque em razão de sofrer diretamente as consequências do delito, lhe faltaria a isenção necessária para que seu relato pudesse ser confiável a ponto de fundamentar a condenação
Sem embargo, contudo, de tais ressalvas e sob determinadas condições, têm a doutrina e a jurisprudência reconhecido grande valia no depoimento do ofendido, conforme realça Tourinho Filho: “Em certos casos, porém, é relevantíssima a palavra da vítima do crime. Assim, naqueles delitos clandestinos – qui clam comittit solent – que se cometem longe dos olhares de testemunhas –, a palavra da vítima é de valor extraordinário” (Código de Processo Penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2005, 9ª. ed. 2005, p. 296). Portanto, nesses delitos, cometidos às ocultas e naqueles em que não se vislumbra, no proceder da vítima, nenhuma intenção em incriminar pessoa até então desconhecida, seu depoimento assume valor decisivo. É exatamente nisso que se fundamenta esta tese, que se refere aos crimes sexuais, por natureza cometidos sem a presença de alguém que possa corroborar o que narra a vítima:
“É cediço que esta Corte Superior atribui especial relevo à palavra da vítima nos crimes sexuais. Porém, a conclusão pela culpabilidade depende da coerência com os demais elementos de provas carreados aos autos. Precedentes” (AgRg no AREsp 1.631.659/SC, Quinta Turma, j. 09/06/2020).
“É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que, em crimes contra a liberdade sexual, praticados, em regra, de modo clandestino, a palavra da vítima possui especial relevância, notadamente quando corroborada por outros elementos probatórios” (AgRg no AREsp 1.586.879/MS, Sexta Turma, j. 03/03/2020).
Não se trata – como aliás ressalva a própria tese – de atribuir valor absoluto à palavra de apenas uma pessoa, que pode conduzir a condenações injustas. Trata-se de conferir-lhe a devida relevância quando outros indícios, reunidos, conferem verossimilhança ao relato.
3) Os crimes de estupro e atentado violento ao pudor praticados antes da edição da Lei n. 12.015/2009, ainda que em sua forma simples, configuram modalidades de crime hediondo.
Antes da Lei 12.015/09, os arts. 213 e 214 do CP tipificavam, respectivamente, o estupro e o atentado violento ao pudor. E, no art. 223, havia as formas qualificadas nos casos em que dos crimes decorressem lesões graves ou morte. Para classificá-los como crimes hediondos, os incisos V e VI do art. 1º da Lei 8.072/90 dispunham o seguinte:
V – estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
Havia divergência a respeito da extensão da hediondez: se abrangia as formas simples e qualificadas ou se apenas as qualificadas. O STF firmou a orientação de que ambas as formas deviam ser consideradas hediondas:
“1. A Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, ao relacionar quais os delitos considerados hediondos, foi expressa ao referir o estupro, apondo-lhe, entre parênteses, a capitulação legal: art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único. Pretendeu o legislador, atento à efetiva gravidade do crime, ao utilizar-se da conjunção coordenativa aditiva, significar que são considerados hediondos: (1) o estupro em sua forma simples que, na definição legal, corresponde a: constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça; (2) o estupro de que resulte lesão corporal de natureza grave e (3) o estupro do qual resulte a morte da vítima” (HC 81.360/RJ, j. 19/12/2001).
“I – A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que “os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, tanto nas suas formas simples Código Penal, arts. 213 e 214 como nas qualificadas (Código Penal, art. 223, caput e parágrafo único), são crimes hediondos“. II – Ordem denegada, com observação” (HC 93.794/RS, j. 16/09/2008).
O STJ seguiu a mesma linha, e assim tem decidido sobre fatos cometidos sob a vigência da lei anterior:
“Os delitos de estupro e de atentado violento ao pudor, nas suas formas simples e qualificada, estão incluídos no rol de crimes hediondos desde a edição da Lei n. 8.072/1990, não se exigindo a ocorrência de morte ou lesão corporal grave da vítima para que seja caracterizada a hediondez” (AgRg no HC 498.203/SP, j. 06/08/2019).
4) Os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor foram reunidos em um único dispositivo após a edição da Lei n. 12.015/2009, não ocorrendo abolitio criminis do delito do art. 214 do Código Penal – CP, diante do princípio da continuidade normativa.
Antes da Lei 12.015/09, o art. 213 do CP tipificava o ato de constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça. O art. 214 tipificava a conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Após a edição da lei, ambos os tipos se fundiram no art. 213, que, atualmente, pune como estupro ambas as condutas: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Nesse caso, não há abolitio criminis, mas continuidade normativo-típica, ou seja, a conduta permanece criminosa, apenas subsumindo-se a outro tipo penal diverso:
“2. O delito de atentado violento ao pudor, antes tipificado no art. 214 do Código Penal, com a reforma introduzida na legislação penal, foi aglutinado no art. 213 do mesmo Código, não havendo falar em abolitio criminis. Precedentes do STJ e do STF. 3. “Em respeito ao princípio da continuidade normativa, não há que se falar em abolitio criminis em relação ao delito do art. 214 do Código Penal, após a edição da Lei n. 12.015/2009. Os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor foram reunidos em um único dispositivo” (HC 225.658/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, DJe 2/3/2016)” (HC 238.917/SP, j. 14/03/2017).
5) Por força da aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, a Lei n. 12.015/2009 deve alcançar os delitos previstos nos arts. 213 e 214 do Código Penal, cometidos antes de sua vigência.
Antes da Lei 12.015/09, entendia-se que o autor de conjunção carnal seguida de atos libidinosos (sexo anal, por exemplo) praticava dois delitos (estupro e atentado violento ao pudor). Devido à unificação dos tipos penais, o STJ vem decidindo que o autor de estupro e atentado violento ao pudor, praticados no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, tem direito à aplicação retroativa da Lei 12.015/2009, de modo a ser reconhecida a ocorrência de crime único, devendo a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal ser valorada na aplicação da pena-base referente ao crime de estupro:
“2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica de que os crimes previstos nos arts. 213 e 214 do Código Penal – CP, após a redação dada pela Lei n. 12.015/09, configuram crime único. Todavia, devem as diversas condutas praticadas serem valoradas na primeira fase do cálculo da pena, ficando estabelecido como limite máximo para a nova sanção, a totalidade da pena anteriormente aplicada ao estupro e ao atentado violento ao pudor, de forma a se evitar a reformatio in pejus. 3. Por se tratar de inovação benéfica, novatio legis in mellius, a Lei n. 12.015/09 alcança todos os fatos ocorridos anteriormente à sua vigência. Na hipótese dos autos, considerando que a vítima foi submetida a conjunção carnal e atos libidinosos diversos, no mesmo contexto fático, deve ser concedida a ordem para reconhecer a ocorrência de crime único” (HC 441.523/BA, j. 30/05/2019).
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