No Brasil, não seria exagero dizer que as mais importantes mudanças, posteriores à Constituição de 1988, no plano da legislação infraconstitucional, são devidas ao direito do consumidor. O Código de Defesa do Consumidor, verdadeiramente inovador, revolucionou o direito privado brasileiro. A lei antecipou-se aos fatos e, em certa medida, os provocou. Nesses mais de 30 de vigência, o Código do Consumidor assentou certas práticas saudáveis, estimulou a consciência dos consumidores, caminhou, enfim, rumo à efetividade.
Que outra lei, além do Código de Defesa do Consumidor, trouxe tão significativos resultados sociais? Que outra lei se aproximou tanto dos valores, princípios e normas constitucionais? Por isso afirmamos com alguma tranquilidade: a legislação infraconstitucional que verdadeiramente promoveu as opções valorativas básicas da Constituição da República foi o Código de Defesa do Consumidor.
A doutrina, percebendo os imensos potenciais do CDC, abraçou a disciplina e a desenvolveu com maestria. A jurisprudência, por sua vez, aprimorou, com habilidade, as profundas implicações provindas do sistema de consumo. Ponderou-se recentemente: “Destaca-se o excepcional trabalho do Superior Tribunal de Justiça, que tem tido a sensibilidade de incorporar, em seus acórdãos, as construções doutrinárias que inspiraram o CDC e que o clarificam, com interpretações ousadas e criativas” (Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, t. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 352).
O CDC realiza o desejo da Constituição em proteger o consumidor. De fato, assim o é. Há três menções explícitas ao consumidor no corpo da Constituição. No art. 5º, no capítulo dos direitos e garantias fundamentais, o inciso XXXII estabelece: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. O art. 170, relativo aos princípios gerais da atividade econômica, prescreve: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, prescrevendo, a seguir, no inciso V, que seja observada a “defesa do consumidor”. Há ainda o art. 48 das Disposições Constitucionais Transitórias, determinando ao Congresso Nacional a elaboração do CDC.
Além das menções explícitas, existem muitas normas na Constituição da República que importam fundamentalmente não só para as relações de consumo, como para todas as outras. A dignidade da pessoa humana, fundamento da República (CF/88, art. 1º, III), é norma que perpassa qualquer relação jurídica, modelando-lhe o conteúdo. Relevante, ainda no artigo primeiro da Constituição, é o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV). Decidiu, a propósito, o STJ: “À luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, valor erigido como um dos fundamentos da República, impõe-se a concessão dos medicamentos como instrumento de efetividade da regra constitucional que consagrada o direito à saúde” (STJ, REsp. 775.233).
Também de alta importância são os objetivos fundamentais da República, dentre os quais se coloca a igualdade substancial (CF, art. 3º, III) bem como a solidariedade (CF, art. 3º, I). É preciso alertar que ficou no passado, no museu das ideias, a concepção de que tais princípios não têm força normativa. Tais princípios são normas jurídicas, para cuja concretização, no entanto, se faz necessária a mediação judicial.
O art. 1º do CDC estabelece: “O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias”. O que são normas de “ordem pública e interesse social? Ou seja, pragmaticamente falando, o que isso quer dizer? A expressão significa que estamos diante de normas cogentes, isto é, normas que não toleram renúncia. Normas em relação às quais são inválidos eventuais contratos ou acordos que busquem afastar sua incidência. Assim ocorre com o consumidor, assim ocorre com o trabalhador. A lei os tem como hipossuficientes, como a parte mais fraca da relação, a parte que depende da proteção legal. E tal proteção legal de pouco ou nada valeria se tais normas pudessem ser objeto de renúncia. Bastaria que a parte economicamente mais forte, através de contratos de adesão (CDC, art. 54), dispusesse unilateralmente prevendo condições que lhe são favoráveis, esvaziando assim as generosas normas do CDC.
No sentido do que dissemos, argumenta José Roberto de Castro Neves: “No primeiro capítulo desse livro, das disposições gerais, a lei oferece definições, inclusive da sua natureza. O art. 1º informa que ela é de ordem pública e tem interesse social. Com isso, a lei quis informar que seus dispositivos têm característica imperativa, ou seja, não admitem ser afastados pela disposição particular” (José Roberto de Castro Neves, “O Direito do Consumidor – de onde viemos e para onde vamos”, in RTDC vol. 26, abr/jun, 2006, p. 198).
Por muito tempo o direito privado, em especial o direito civil, foi sinônimo de autonomia da vontade, ou autonomia privada. Por intermédio dela, os particulares autorregulavam seus próprios interesses, mediante contratos escritos ou verbais. Naturalmente, tal autonomia reflete a filosofia, política ou econômica, de determinado período histórico, não podendo ser dele dissociada. Kant ponderou que a injustiça é possível quando determinamos regras para os outros, mas é impossível que haja injustiça quando estabelecemos regras para nós mesmos.
Atualmente, contudo, outros são os termos do problema. Está havendo, na sociedade contemporânea, um decréscimo da autonomia, buscando, justamente, proteger os mais fracos, os hipossuficientes. O Código Civil bem reflete essa tendência, ao dispor: “Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Mais adiante, no art. 2.035, parágrafo único, sentencia: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.
Reduz-se, assim, a autonomia da vontade para proteger a parte mais fraca. De pouco ou nada adiantaria estabelecer normas em favor da parte mais fraca se tais normais pudessem ser contratualmente afastadas. A função social dos contratos, inserindo-se no conteúdo dos pactos, atenua o valor do “pacta sunt servanda” (princípio da força obrigatória dos contratos, que reza que os contratos devem ser cumpridos a qualquer custo). Registre-se que, por outro lado, paralelamente à redução da autonomia, verifica-se um aumento da heteronomia. Autonomia, etimologicamente falando, vem do grego “nomos”, que significa regra, aliado ao prefixo “auto”, relativo a si próprio. É, portanto, o poder de dar regras para si mesmo. Já heteronomia é o poder de estabelecer regras para os outros. As leis são heterônomas.
Verifica-se, na sociedade atual, uma elevação da heteronomia, seja através das leis de ordem pública (heteronomia desejável e necessária), seja através do que poderíamos chamar de “heteronomia privada”, que se traduz no poder dos grandes complexos econômicos de ditar o conteúdo dos contratos para os consumidores, que outra alternativa não têm senão aceitar o que lhes é imposto ou não consumir o produto. Vulgarmente falando, pegar ou largar. Os contratos de adesão, por exemplo, configuram técnica de que se valem as grandes empresas para impor aos consumidores o conteúdo contratual que lhes pareça mais conveniente. Tal heteronomia, ao contrário da anterior, pode conter aspectos negativos e ofensivos da equidade.
O CDC tem características que lhe conferem luz própria. Algumas delas, por terem sido absorvidas por outras leis posteriores, já não são exclusividade sua, porém, de todo modo, merecem menção. São freqüentes, por exemplo, no CDC, as chamadas normas principiológicas, isto é, normas que veiculam valores, estabelecem fins a serem alcançados. Aliás, o direito atual se caracteriza por utilizar, cada vez mais, conceitos abertos (também chamados de conceitos jurídicos indeterminados) e normas com conteúdo semântico flexível.
O CDC apresenta a interessante característica de possuir categorias, conceitos e normas que tendem a se expandir para outros setores da experiência jurídica. Talvez isso tenha se dado porque, quando foi editado (em setembro de 1990) ainda estávamos sob a égide do Código Civil de 1916, que só veio a ser revogado mais de dez anos depois do início da vigência do CDC. Porém, como o Código Civil de 2002 consagrou boa parte das inovações do CDC, talvez hoje tal expansão se mostre menos importante. Por exemplo, a boa-fé objetiva – dever de agir com lealdade e cooperação, sem frustrar as legítimas expectativas da outra parte -, prevista, inicialmente, no CDC, foi adotada posteriormente pelo Código Civil, que a contemplou em três oportunidades (“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e da boa-fé”). O CDC, por assim dizer, atualizou a ordem jurídica brasileira, e não só no que se refere às relações de consumo, mas relativamente ao direito privado como um todo.
É nítida no CDC a preocupação com a efetividade de suas normas, jogando para um segundo plano discussões puramente formais. Também aqui o CDC vai ao encontro da tendência atual de privilegiar o fundo em detrimento da forma. É irrelevante, por exemplo, a denominação ou a forma jurídica adotada, para efeitos de proteção ao consumidor. Assim vem entendendo a jurisprudência: “A operadora de serviços de assistência à saúde que presta serviços remunerados à população tem sua atividade regida pelo Código de Defesa do Consumidor, pouco importando o nome ou a natureza jurídica que adota” (STJ, REsp. 267.530).
A jurisprudência tem se mostrado atenta aos reclamos de efetividade. Com ênfase se proclamou: “A Constituição não é ornamental, não se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais para os princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana”. Desse modo, “a tutela jurisdicional para ser efetiva deve dar ao lesado resultado prático equivalente ao que obteria se a prestação fosse cumprida voluntariamente” (STJ, REsp. 836.913). É inegável que os reclamos de efetividade permeiam todo o direito atual, com nítidos reflexos no direito processual. A tendência, portanto, é fazer prevalecer os elementos funcionais sobre os estruturais, tornando pouco relevantes as discussões puramente teóricas, sem grandes conseqüências práticas. É o que poderíamos chamar de pragmatismo inteligente do CDC.
Para aprofundar-se, recomendamos: Manual de Direito do Consumidor – À Luz da Jurisprudência do STJ (2020)