No dia 31.12.2020 foi publicada a Medida Provisória 1.023, que determinou a retomada do critério de ¼ de salário mínimo de renda mensal familiar per capita como requisito para concessão do BPC – Benefício de Prestação Continuada da Lei 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social), um dos benefícios pagos pela Assistência Social no Brasil aos idosos ou pessoas com deficiência que não possuam condições de prover seu próprio sustento (hipossuficientes).
O art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, voltou a vigorar com a seguinte redação:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.
- 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja:
I – inferior a um quarto do salário mínimo;
Para compreender a MP 1.023/2020 é necessário lembrar que esse dispositivo legal (art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93) foi objeto de diversas alterações ao longo de 2020.
Em um primeiro momento, a Lei 13.981/2020, buscando internalizar no âmbito legislativo o posicionamento jurisprudencial em torno dos critérios para concessão do BPC, estabeleceu o critério de renda em ½ salário mínimo.
Contudo, poucos dias após esse parâmetro normativo foi alterado pela Lei 13.982/2020, e foi revigorado para o ano de 2020 o critério de ¼ de salário mínimo para a renda mensal familiar per capita.
A Lei 13.982/2020, porém, determinava que a partir de 1.1.2021, o BPC seria concedido, novamente, com a demonstração de renda inferior a ½ salário mínimo. Entretanto, essa disposição foi vetada pela Presidência da República, de sorte que essa circunstância gerou uma espécie de vácuo normativo, na medida em que, com o veto da Presidência da República, foi extirpado do ordenamento jurídico o dispositivo legal responsável por disciplinar os requisitos de concessão o BPC a partir de 1.1.2021.
A partir dessa data o BPC, que originalmente é previsto no art. 203, V, da Constituição Federal, ficaria destituído de regulamentação infraconstitucional, visto que este dispositivo constitucional não é auto-aplicável (ADI 1.272/DF). Assim, coube à MP 1.023/2020 a regulamentação daquela norma constitucional, com vistas a permitir sua operacionalização na via administrativa do INSS.
Essas alterações em torno do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, culminando na MP 1.023/2020, podem motivar overruling na jurisprudência previdenciária?
Estamos a nos referir especificamente à jurisprudência que admite a flexibilização do critério matemático de renda para concessão do BPC (especialmente a Reclamação 4.374/PE, no STF, e o Recurso Especial repetitivo 1.112.557/MG, no STJ).
Overruling é instituto de Direito Processual que se insere no âmbito da Teoria dos Precedentes, especialmente em relação àqueles que são dotados de força vinculante, a exemplo do modelo existente na common law e parcialmente importado pelo Brasil no CPC/2015 – ou até mesmo antes, a partir das técnicas da Súmula Vinculante, da repercussão geral e do recurso especial repetitivo, ainda na vigência do CPC/1973.
O overruling, ou superação, concerne na necessidade de rediscussão da tese firmada em um precedente vinculante, em virtude de significativas alterações fáticas e normativas que tenham ocorrido desde a sua formulação.
O CPC/2015, no art. 927, §§ 2º a 4º, estabelece algumas condições a respeito da alteração da tese jurídica firmada em precedentes vinculantes (overruling):
Art. 927. (…)
- 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
- 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
- 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Do que foi exposto, apesar das sucessivas mudanças normativas em torno do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, compreendemos não haver fundamento suficiente para eventual overruling dos posicionamentos jurisprudenciais que mencionamos acima sobre a forma mais abrangente de aferição da hipossuficiência econômica para fins de concessão do BPC.
A reintrodução do critério de ¼ de salário mínimo previsto no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, como requisito para concessão do BPC vale de modo taxativo apenas para a via administrativa, perante o INSS, sendo que na via judicial adotam-se posturas de comprovação do estado de hipossuficiência econômica por outros critérios de prova.
Com a retomada (ao que parece definitiva) do critério de renda para concessão do benefício fixado em ¼ do salário mínimo, cremos que aquela jurisprudência permanece totalmente atual e fazendo sentido em sua ratio decidendi, sendo válida a discussão judicial da concessão do BPC por outros mecanismos de prova da hipossuficiência econômica.
Por fim, não se pode perder de vista que esses entendimentos que mencionamos, visto que contidos em precedentes formulados pelos Tribunais Superiores julgados na sistemática de recursos repetitivos, possuem eficácia vinculante sobre as demais instâncias jurisdicionais, conforme destacamos em nosso Manual dos Recursos Cíveis – Teoria e Prática:
“Nestas três hipóteses acima descritas [os três incisos do art. 1040 do CPC] deve-se ressaltar o caráter vinculante dos precedentes tirados pelos Tribunais Superiores, que devem ser aplicados obrigatoriamente ao conteúdo dos julgamentos realizados pelos tribunais locais.”
(DONOSO, Denis; SERAU JR., Marco Aurélio. Manual dos Recursos Cíveis – Teoria e Prática, 6ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2020)
Por todo o exposto acima, cremos que não se configura hipótese de overruling na jurisprudência previdenciária a partir da edição da MP 1.023/2020.