Foi divulgado nos meios de comunicação social o trágico evento envolvendo a modelo italiana Gessica Notaro Soutien, de 27 anos, atacada pelo ex-namorado, inconformado com o fim do relacionamento. O agressor usou na execução do crime um liquido corrosivo, desfigurando o rosto de Gessica.
A modelo, ex-finalista do concurso Miss Itália, passou por pelo menos duas cirurgias de reconstrução e dois meses isolada no hospital para reparar as consequências da queimadura por ácido. Deve aguardar mais um ano para iniciar uma série de cirurgias plásticas.
Vamos estudar, por meio de perguntas e respostas, as implicações penais do caso, de acordo com nosso ordenamento, lembrando que agressões como essa (e até piores), infelizmente, são frequentes no nosso país.
O crime envolveu violência de gênero?
De acordo com a Lei 11.340/2006 (art. 5.º), entende-se por violência doméstica e familiar toda a espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra mulher (vítima certa), num determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade, presente ou passada), baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (notaApesar de haver corrente (ainda embrionária) exigindo a habitualidade, tal requisito nos parece afrontar a intenção do legislador, que busca evitar qualquer forma de agressão.).
Como bem salientou o Conselho da Europa, trata-se de “qualquer ato, omissão ou conduta que serve para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio, a qualquer mulher, e tendo por objetivo e como efeito intimidá-la, puni-la ou humilhá-la, ou mantê-la nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental e moral, ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais”.
Logo, o caso espelha, sem dúvida, violência de gênero contra mulher.
Os artigos 2.º e 3.º da Lei Maria da Penha anunciam os direitos fundamentais de qualquer mulher (direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária), independentemente da sua classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião. Observa Guilherme de Souza NucciLeis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: RT, 2006. p. 861.:
“O óbvio não precisa constar em lei, ainda mais se está dito, em termos mais adequados, pelo texto constitucional de maneira expressa e, identicamente, em convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil, em plena vigência. De outro lado, o extenso rol de classificações realizado é, também, pueril, pois, quanto mais se busca descrever, sem generalizar, há o perigo de olvidar algum termo, dando brecha a falsas interpretações. Inseriu-se ‘independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião’. Omitiu o legislador, por exemplo, os termos ‘cor’ e ‘origem’ (existentes no art. 3.º, IV, CF/1988Art. 3º (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.) e a expressão ‘procedência nacional’ (art. 1.º, caput, da Lei 7.716/1989Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. ). Por acaso mulheres de ‘cores’ diversas gozam de direitos humanos fundamentais diversificados?”.
No entanto, no caso presente (proteção da mulher), a obviedade tem razão de ser, como bem alertam Helena Omena Lopes de Faria e Mônica de MeloSérie Estudo, n. 11, Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, out. 1998, p. 373.:
“É inegável, historicamente, que a construção legal e conceitual dos direitos humanos se deu, inicialmente, com a exclusão da mulher. Embora os principais documentos internacionais de direitos humanos e praticamente todas as Constituições da era moderna proclamem a igualdade de todos, essa igualdade, infelizmente, continua sendo compreendida em seu aspecto formal e estamos ainda longe de alcançar a igualdade real, substancial entre mulheres e homens. A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi, dentre as Convenções da ONU, a que mais recebeu reservas por parte dos países que a ratificaram. E em virtude da grande pressão das entidades não governamentais é que houve o reconhecimento de que os direitos da mulher também são direitos humanos, ficando consignado na Declaração e Programa de Ação de Viena (item 18) que: ‘Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. (…)’”.
De acordo com a nossa legislação, qual o crime praticado pelo ex-namorado?
A Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) não anuncia tipos incriminadores. É um estatuto essencialmente protetivo. Os crimes praticados no ambiente doméstico e familiar devem ser encontrados no Código Penal ou leis penais extravagentes.
O caso divulgado, se cometido no Brasil, é rotulado como vitriolagem, isto é, lesões viscerais e cutâneas gravíssimas, produzidas por substâncias caústicas (de Kaustikos, o que queima), causadoras de deformidade permanente ( art. 129, §2º, IV, do CP). Aliás, por ter sido praticado no contexto de violência doméstica e familiar, sofre também o aumento de pena do §10 do art. 129 do CP.
No que consiste a deformidade? É sinônimo de deformação?
Consiste a deformidade no dano estético, aparente, considerável, irreparável pela própria força da natureza e capaz de provocar impressão vexatória (desconforto para quem olha e humilhação para a vítima). Não se confunde com deformação:
“Vezo é, correntemente, tomarem-se como sinônimas as expressões deformidade e deformação. Tal, porém, não acontece. Estes vocábulos não são perfeitos sinônimos, pois se deformação, do ponto-de-vista médico, é a “alteração morfológica congênita ou adquirida da forma do corpo”, a deformidade, sob o aspecto médico-legal e jurídico, é o prejuízo estético adquirido, visível, indelével, oriundo da deformação de uma parte do corpo. A primeira refere-se à parte lesada; a segunda, à personalidade física do indivíduo. Assim, pois, se toda deformidade é consequência de uma deformação, nem toda deformação produz deformidadeFERREIRA, Arnaldo Amado. Doutrinas Essenciais de Direito Penal. O conceito de deformidade no Código Penal de 1940. vol. 5. p. 247/251. Out / 2010”.
A idade, o sexo e a condição social da vítima devem ser tomados em consideração no apreciar a deformidade?
Para HungriaNélson Hungria, Comentários ao Código Penal., v. 5, p. 340, sim:
“Ninguém pode duvidar que devem ser diversamente apreciadas uma cicatriz no rosto de uma bela mulher e outra na carantonha de um Quasímodo; uma funda marca num torneado pescoço feminino e outra no perigalho de um septuagenário; um sinuoso gilvaz no braço roliço de uma jovem e outro no braço cabeludo de um cavouqueiro.”.
A cirurgia reparadora, sendo viável, exclui a qualificadora?
Como vem decidindo o STJ, a realização de cirurgia estética que repare os efeitos da lesão não afasta a qualificadora da deformidade permanente, pois “o fato criminoso é valorado no momento de sua consumação, não o afetando providências posteriores, notadamente quando não usuais (pelo risco ou pelo custo, como cirurgia plástica ou de tratamentos prolongados, dolorosos ou geradores do risco de vida) e promovidas a critério exclusivo da vítima (HC 306.677/RJ, Rel. Min. Ericson Maranho, Rel. para acórdão Min. Nefi Cordeiro, DJe 28/5/2015).
Importa a região da lesão para ser considerada (ou não) deformidade permanente?
Ao contrário de outros países (Itália e Argentina), a nossa lei não considera a qualificadora apenas nos casos de lesão no rosto, abrangendo todo o corpo, mesmo que atingindo região visível somente em momentos de maior intimidade.
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