O comportamento da vítima antes e durante a prática do crime é objeto de extensos estudos na área da criminologia e tem efeitos importantes no momento em que se analisa o quão reprovável foi o autor da conduta delituosa. Como são inumeráveis as situações em que a análise do comportamento da vítima pode ter lugar no caso concreto, os tribunais têm decidido com frequência, como veremos, quais delas podem ser consideradas relevantes na aplicação da pena.
Com a evolução do estudo da vitimologia, abandonou-se a ideia de isolamento do autor do delito. A vítima, em muitas das oportunidades, colabora para o início e para o deslinde da ação criminosa em que está inserida. A partir de tais constatações, surge o que se denomina precipitação da vítima. É um conceito que parte do pressuposto de que muitas vezes a vítima está intimamente ligada à sua situação de vitimização. Isso tem imensa importância em termos concretos, não apenas para a análise da responsabilidade pelo delito, como também, caso se conclua sobre a existência dessa responsabilidade, para que se pondere sobre seu grau. Esta definição é fundamental, consequentemente, para a fixação da pena.
Nas situações em que existe uma correlação de culpas entre o agente e a vítima, a vitimologiaPiedade Júnior, Heitor. Vitimologia – Evolução no tempo e no espaço, Ed. Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 1ª edição, RJ, 1993, p. 113 trabalha com três hipóteses:
1) A vítima é menos culpada do que o agente: são os casos nos quais a vítima, apesar de não ter nenhum tipo de relação com o agente, atua de forma imprudente, negligente ou sem conhecimento da situação e acaba sendo atingida por um delito. É o exemplo do turista que ingressa, por falta de atenção, em um bairro de alta criminalidade e é assaltado. A vítima atuou sem cautela e foi atingida pela conduta criminosa. É fato que não pretendia que o crime ocorresse, mas certamente colaborou para isso, ainda que involuntariamente. Teve culpa, mas certamente muito menor do que a atribuível ao agente.
2) A vítima é tão culpada quanto o agressor: neste caso, vítima e agente concorrem de maneira praticamente idêntica para a ocorrência do crime. Exemplo que pode ser dado é a disputa dos famosos rachas, em que ocorre a morte culposa de um dos participantes por acidente com veículo (art. 308, § 2º, da Lei nº 9.503/97)Art. 308. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada: Penas - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (...) § 2o Se da prática do crime previsto no caput resultar morte, e as circunstâncias demonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa de liberdade é de reclusão de 5 (cinco) a 10 (dez) anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo.. Neste caso, ambos os agentes concorrem com culpa de maneira bastante proporcional.
3) A vítima é mais culpada que o agressor: os exemplos clássicos para os casos em que a vítima é mais culpada do que o agressor são os de lesão corporal privilegiada ou de homicídio privilegiado. Em ambos os casos, a legislação estabelece uma causa de diminuição de pena se o agente comete o crime sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Há, também, uma atenuante para as situações em que o agente atua não dominado, mas influenciado pela violenta emoção.
Neste caso, é a vítima quem desencadeia o processo agressor, sendo portanto mais culpada do que o agente. Note-se que a expressão mais culpada do que o agente deve ser lida no sentido próprio que lhe confere a vitimologia, não sob a ótica da teoria do delito, em que jamais o agente terá responsabilidade menor do que a da vítima.
As correlações de culpas entre o agente e a vítima que interessam para a aplicação da pena são aquelas em que a vítima é tão culpada quanto o agressor e em que é mais culpada do que ele.
Segundo dispõe o art. 59 do Código PenalArt. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível., a pena-base (1ª fase) deve ser aplicada em consonância com as circunstâncias judiciais, dentre elas o comportamento da vítima.
No Direito Penal não existe compensação de culpas (ao contrário do Direito Civil). Assim, a culpa concorrente da vítima não elide, não compensa a culpa do agente, mas pode atenuá-la, a depender das circunstâncias. Fazemos a ressalva a respeito das circunstâncias porque há situações em que, em razão das condições pessoais da vítima, seu comportamento não atenua a responsabilidade do agente. O STJ decidiuREsp 897.734/PR, Rel. Min. Nefi Cordeiro, DJe 13/2/2015, por exemplo, que nos crimes sexuais contra menores de catorze anos a experiência sexual anterior e a suposta homossexualidade não podem servir para justificar a diminuição da pena em razão do comportamento da vítima.
De qualquer forma, o comportamento da vítima só pode servir para favorecer o autor da conduta criminosa, não para prejudicá-lo. É o que vem decidindo o STJ em incontáveis julgados nos quais estabelece que esta circunstância judicial tem efeito favorável ou neutro. Daí porque estabelecemos acima que, para a aplicação da pena, a situação em que a vítima é menos culpada do que o agente não tem relevância. Nas situações em que a vítima se mantém inerte ou mesmo atua de forma a não prejudicar a empreitada criminosa, não é possível aumentar a pena-base com fundamento em seu comportamento:
“(…) O comportamento da vítima é circunstância judicial ligada à vitimologia, que deve ser necessariamente neutra ou favorável ao réu, sendo inviável sua utilização de forma desfavorável ao réu. Na hipótese em que não houver interferência da vítima no desdobramento causal, como ocorreu na hipótese em análise, deve ser, pois, neutralizada. Precedentes (…)” (HC 345.409/MG, DJe 09/05/2017).
“(…) Por derradeiro, o comportamento do ofendido, que “em nada contribuiu para o cometimento do crime” (e-STJ fl. 19), não pode igualmente ser valorado em desfavor do paciente. Nos termos da orientação do Superior Tribunal de Justiça, a mencionada circunstância judicial somente apresenta relevância jurídica para reduzir a reprimenda do réu. Assim, se o ofendido contribuiu para a prática do crime, a pena-base deverá ser diminuída; se, ao contrário, a vítima não facilitou, incitou ou induziu o sentenciado a cometer a infração penal, trata-se de circunstância judicial neutra. Precedentes” (…) (HC 275.953/GO, DJe 21/03/2017).
De fato, o único sentido possível a se extrair da circunstância relativa ao comportamento da vítima é de que se trata de algo a ser considerado a favor do agente. O comportamento neutro de quem é vítima de um delito já é esperado, e, por esta razão, não pode justificar uma pena maior